A campainha da porta tilintava anunciando a
saída de Júlio, o servente da “Diorama”, uma loja de taxidermia. O rapaz não escondia
de ninguém, nem do patrão, o seu descontentamento com aquele emprego, mas sem
outra opção no momento....
O
estabelecimento pertencia ao sr. Vitório, homem velho, amargurado, de físico
atarracado e ar sombrio, mas extremamente habilidoso com as mãos quando de seu
ofício de dar “vida” a animais mortos.
Todos os
dias, Júlio chegava e mal recebia uma boa-tarde de seu patrão, liturgicamente empastado
por trás de sua mesa de trabalho, avental e mãos sujos de argila ou gesso e os
olhos espremidos no mirar profundo de um corpo devassado.
Ali, não
havia janelas. À luz apenas de pequenos faróis – e de alguma nesga intrusa de vitrais
coloridos da porta –, as sombras tremeluziam no ar inebriado de solidão e
silêncios imorredouros. Por todos os lados, prateleiras de livros de zoologia,
carcaças, ossos e recipientes de vidro com vísceras conservadas em formol ou
álcool, e paredes, teto e assoalho entulhados de animais – ou partes deles – “perpetuados”:
macacos, felinos – dos pequenos aos de grande porte –, psitacídeos de diversas
cores, cães, tucanos, guarás, gaviões, cobras, iguanas etc.
Pegava a
vassoura, o espanador e iniciava a limpeza, assistindo de esguelha ao trabalho
meticuloso de Vitório, a compor máscaras mortuárias, conferir medidas
corporais, manipular manequins de arames e moldes de resina, curtir peles e
couro, colando-os e costurando-os pacientemente.
Não
admitia, enquanto isso, “perguntas tolas”, a não ser quando ele mesmo – o que
acontecia raramente – terminava a sua peça e, numa admiração michelângica,
chegava-lhe junto, maravilhado, impondo aqueles cadáveres revividos aos seus
olhos, numa glorificação sinistra e quase divina de sua arte. Depois, a passos
leves de se andar em nuvens, conversava com seus animais, chamava-lhes pelo
nome, acarinhava-os a penugem ou o pelo, maternalmente admirando-os através dos
olhos de vidro colorido e brilhantes de próteses cuidadosamente escolhidas.
Vitório não
era querido na vizinhança. “Diorama”, que mais parecia aos vizinhos uma casa de
horrores, destoava do bairro a evoluir para um comércio elegante, de avenida
próspera e voltada para o futuro. Da mesma forma, os poucos clientes que lhe
restaram pareciam tão sombrios e excêntricos quanto ele.
Naquela
noite, a campainha tocara uma segunda vez. Vitório, iluminado apenas pela sua
luminária de mesa, desconfiou e a direcionou à porta, assistindo o aproximar de
um estranho segurando um punhal: “Me passa tudo que tem, velho, senão acabo com
você!”
Vitório,
como se o ignorasse, mandou: “Fosse embora!”. O bandido, alucinado, pulou sobre
ele, derrubando-o no chão. Agarrou-o violentamente pelas alças do avental e o
ameaçou. Mas o velho, indiferente, insistiu: “Eu não tenho nada... Mate-me!”
Irado,
iniciou-se a pancadaria. Se não dinheiro, qualquer coisa, mas dali não sairia
de mãos abanando.
Nisso, o
salão é tomado por sons estranhos, crescentes e ensurdecedores: rugidos,
guinchos, grunhidos, berros, piados estridentes, passos e bater renitente de
asas. Assustado, o larápio, diante das sombras a agigantarem no escuro, tapava
os ouvidos, quando sentiu que saltavam por todos os lados sobre ele,
mordendo-o, bicando-lhe os olhos, rasgando o seu rosto e a sua pele com garras
potentes. Ele gritava, até algo comprimir o seu pescoço, e, mudo, buscou em vão
o seu punhal...
Na tarde
seguinte, Júlio chegava à loja. O cheiro de químicos no ar. Estranhou a
ausência do velho, os livros dispersos no chão, vidros quebrados, gaiolas e
paredes vazias. Não havia mais animais, apenas dependurado no alto da parede um
corpo humano, um tanto disforme, estripado e com grandes olhos brilhantes de
vidro.
Penso, Raymundo, que você você montou esse conto com cuidado e esmero, como trabalhava o velho Vitório. Ficou muito bom, me fez lembrar demais o nosso amigo Poe.
ResponderExcluirZelinha, obrigado. Faço sempre assim, levando em consideração o tempo que tenho: o esmero de 1 semana, o esmero de 1 dia, o esmero para 1 hora... rsrs Mas me esforço, bichinha. rsrs Amador sempre, porém responsável! Avante, Zélia!
ExcluirRaymundo, este conto mexe com minha imaginação porque pertence a um gênero favorito para mim. Mais uma vez você foi capaz de me deixar com os olhos grudados no texto, assim como Airton Monte o fazia. E mais uma vez eu constato que escrever é como debulhar palavras e universos do espírito.
ResponderExcluirAdoro literatura fantástica "raiz", meu amigo. Vez ou outra escrever à antiga me faz um bem... Obrigado pela leitura.
ExcluirJúlio voltou sobre os próprios passos. " Por um triz ", pensou, ao ver o corpo espetado na parede. Há algum tempo Júlio tinha sensações, a mais recorrente era a de que lhe esvaziavam o corpo. Sentia falta de órgãos; não sabia quais, eram sensações. Voltou correndo para casa; morava a poucas quadras daquele ponto. Correu o mais rápido que pôde. Não olhava para trás; outra sensação o aterrava: estariam aqueles bichos todos atrás dele! Chegou, entrou, porta fechada às suas costa. Mal atravessou a sala para um copo d'água na cozinha, a campainha tocou. Sentiu tremerem todos os seus órgãos; estavs inteiro. Estremeceu ainda mais. Soou mais uma vez a campainha; deu meia-volta. Voltou a soar a campainha; à porta, olha pelo olho mágico ( é o novo! ). Mal crê no que vê. Destranca a porta; a porta é aberta:
ResponderExcluir__ Seu ..., cai-lhe a língua.
__ O que é isso, Júlio?!
__ É qu'escapei por ... Quero dizer ... Podia ter sido eu. O S ... O Senhor não veio até aqui para me levar de volta àquele quadro, veio?
___ hummmm ... Não. Vinha passando a caminho do Vitório; estava do outro lado. Vinhas correndo feito um petseguido; acenei e nada. Entraste. Atravessei a rua; aqui estou, mas de passagem.
__ Não vá, Seu Raymundo Netto! Entre! Ele não está em casa.
__ Eu sei, Júlio. Eu sei de tudo o que aconteceu lá. Mas é que preciso das duas bolas de gude que Vitório usou nos olhos do cabra; são da minha coleção. Fui.
Ah! Seu Netto,
Na mesma noite, tilinta a campainha duas vezes. No primeiro tilintar , tem-se a saída do coadjuvante; no segundo, a entrada do ator principal, aquele que tomaria o espetáculo do quadro só para si. Um quadro e tanto. Pena que Seu Vitório carregou seu diorama para outras plagas. Onde aportará? Quem será o próximo?
Armando, mais uma vez um conto por cima de outro. Está na hora de você escrever sua prosa. Gostei das bolas de gude. Práticas. rsrs Abração.
ResponderExcluirVibrei com o enredo e o final! "Grande olhos brilhantes de vidro". Massa! É lendo e aprendendo com os mestres. Dei valor de mais da conta, colega Raymundo Netto!
ResponderExcluirVibrei com o enredo e o final! "Grande olhos brilhantes de vidro". Massa! É lendo e aprendendo com os mestres. Dei valor de mais da conta, colega Raymundo Netto!
ResponderExcluirMuito grato, Bonfim, pela sua leitura e retorno. Fique conosco no AlmanaCULTURA.
ExcluirAviso
ResponderExcluirRaymundo,
vais a fundo
dissecando palavras.
Cuidado, Netto!
Mira, admira mais de perto.
Estão vivas. E são bravas.
Henrique Beltrão
Ressuscitador de metáforas
rsrs Obrigado, meu amigo e poeta Henrique!
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