segunda-feira, 16 de setembro de 2024

"Vixit*", de Raymundo Netto para O POVO


Texto do livro Quando o Amor é de Graça!,

indicado para o Vestibular da UVA 2025.1

 

Depois do entardecer lunar, ante o mexerico das estrelas e de um sol cris, solavancava, como um galope à beira-mar, o suspiro derradeiro.

O pensamento distante se perdia e roto banhava-me da luz que chegava daquele olhar perdido na apatia do passado presente.

Como se manifesto de miasmas, sentia o corpo a se aquebrantar no aroma incandescente a inchar-se no escuro lembramento, como um corredor frio e senzalavrador de medos.

Senti febre de me roubar o ar. Na garganta, a palavra feria purulenta, amarga e frouxa como sangue, a correr venosa na pele, a se desmanchar em escamas, a me pedir: “Desista!”

Contudo, não sabia a voz que o mar cedo já me batia às paredes do coração, ensurdecendo a cada dia, conforme a indecisão infantil das marés e dos ocorridos, dos conflitos, dos aflitos, da insânia na soleira de minha porta.

Inapto ao mundo e à vida, lancei pedra na Lua, saltei por casas de angústias que não se calam. Devastei pessoas que traziam flores nas palmas das mãos e sorrisos nos dedos, mas que não suportaram viver por trás de paredes brancas que construí na esperança de pouso e de ninho.

Um dia, entre nuvens dos olhos e do céu, recolhi um desejo azul, tingindo de firmamento o rosto por debaixo da máscara de sorriso contraído e arranquei a pele e os espelhos para nunca mais encontrar-me outra vez. E a perdi. Perdi-me só, completamente.

Durante anos, sem sabê-lo, percorri o (meu) mundo à procura daquela imagem que cuidei destruir, mas nos sonhos, muitas vezes recortados e infrequentes, via com assombro aquele rosto que não o meu, e ainda tão mais eu.

Às noites, cansado de esperar a queda de meteoros, promovia deicídios, feria os rituais, deitava no teto, desenhava caricaturas por sobre espelhos, tentava ignorar aquele “ninguém” que estava sempre ao lado a acenar com a cabeça: “Agora!” “Agora, ainda não!”

Tinha que escolher. Havia tempos, escolhi por não escolher. Não podia fechar portas, nem janelas. Não gostava de multidões. Vozes demais entonteciam. Detestava a mentira. Não suportava posses, nem manias, nem soberba, muito menos ciúmes, certezas ou prisões. Queria ser livre de tudo. Ria e me condoía da hipocrisia do mundo.

Não queria crescer, suportar a vida ou a morte. Não queria sonhar e fundei o meu país no reino da ideia, vizinho ao da loucura, onde escrever foi a única forma que encontrei para gritar em silêncio.

 

(*) Vixit era uma expressão usada entre os romanos para anunciar a morte de uma pessoa com mais delicadeza. Corresponderia a “Ele(a) viveu”, no sentido de que “não vive mais” ou mais objetivamente: “Morreu”.

 




 

domingo, 1 de setembro de 2024

"Itapipoca: artes rupestres II", de Raymundo Netto para O POVO


A “Pedra Ferrada” de Itapipoca, em 1924, foi estudada por Carlos Studart Filho, em seu conhecido ensaio “A propósito de uma petrografia encontrada na fazenda do Mucambo em Itapipoca”, publicado pela Revista do Instituto do Ceará, no qual destaca: “Apresentavam-se traçadas com tinta vermelha [segundo Martius, uma mistura de barro vermelho com urucum e dissolvido em azeite] sobre a parede de uma gruta bastante ampla e representavam numerosos grupos de silhuetas em séries paralelas. [...] Além dos desenhos apontados [silhuetas humanas], distinguia mais, perfeitamente nítida e clara, a silhueta de um bovídeo a pastar; via-se também uma ave de longas asas abertas [...] E é para servir aos profissionais que queiram lançar mão das petrografias para seus estudos que deixo aqui assinalada a existência da Pedra Ferrada.”




Estrigas, décadas depois, observava que as pinturas tinham dimensões distintas, assim como seu estado de vivacidade. Algumas permitiam apenas perceber-se os traços de contorno que determinavam a forma. Em outras, porém, tanto o contorno como a forma estavam bem mais nítidas, destacando-se até pelo colorido diferenciado na rocha.

O pesquisador e artista, teórico em arte, em seu texto, impressiona-se com os detalhes ainda perceptíveis, destaca a “composição simples e de pureza transcendente”, assim como “a elegância e a graça que o artista – considerava-o(a) um(a) colega – captou e refletiu dentro do formalismo de atitude e de linhas reais do modelo”.





Cita duas figuras humanas que parecem estar dançando, “com flexão de pernas e braços, e a elegância com que o fazem lembrar as dançarinas de balé”. Outra figura humana, diferente das demais, têm traços que impressionam, podendo ser interpretado como “a representação de um ser misterioso, com caráter mágico ou feiticeiro, num flagrante exercício de suas atividades.”

Uma observação feita ainda no estudo de Studart Filho é que, ao contrário do que se pensava, essas pinturas não eram feitas às pressas e sem intencionalidade, pois deveria ser bastante custoso e difícil o preparo dessas “tinturas”, sendo necessário um tempo maior para essa execução. 

“Todos esses trabalhos – afirma Estrigas –, todos os seres ali pintados, parecem ter tido suas imagens apreendidas pelos sentidos do seu autor ou autores, em um momento vivo das atividades desses modelos, e, nessa atitude, foram aprisionados, em pintura, nas paredes da gruta. [...] Esses trabalhos de arte [...] constituem-se a nossa manifestação artística pré-histórica cujo local escolhido para a sua execução foram as paredes internas de grutas, e não restam dúvidas quanto às formas que representam e ao seu caráter de qualidade estética.” 

Ao final de seu estudo, após uma análise da escultura pré-histórica em alguns cachimbos de barro e de citar alguns outros sítios de pinturas e/ou gravações rupestres cearenses, conclui desejando que o estudo e a investigação sobre essas inscrições continuem e que se preservem os originais por meio de documentos, antes que os próprios efeitos naturais do tempo os eliminem.

Qual o sentido desses sinais e a quem devemos atribuir a sua criação? Seriam indicativos de tesouros enterrados ou submersos por flamengos ou jesuítas? Marcos de cemitérios, terrenos sagrados de antigos povos indígenas? Foram desenhados por grandes pajés para defender seu grupo de demônios, ou foram eles, os próprios demônios, os gnomos ou gênios fabulosos os seus autores, daí o terror que causavam (ou causam) a supersticiosos? Certo mesmo é que eles estão por aí, em muitos lugares no Ceará e fora dele, e merecem, sim, a nossa atenção. 

Para os mais curiosos, assistam: “Vestígios pré-coloniais cearenses”, de Roberto Bomfim e Augusto Bastos: https://www.youtube.com/watch?v=7Uo2tkrp85g&t=6s




Ilustrações: Nice Firmeza