segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

"Olhos Azuis", de Raymundo Netto para O POVO



Mas eu a amo até o fim dos tempos... e você não pode fazer nada para mudar isso!”
Aquela severa e quase heroica confissão rasgaria os curiosos ouvidos do condomínio inteiro. Mas quem poderia imaginar que ela partiria da quitinete tão silenciosa, cheirando a urina, e logo daquele inquilino, um homem de mais de 80 anos, baixinho, magro, quebrantado e que parecia mal se sustentar nas próprias pernas, tão raro de sair de casa ou de ser visto pelas áreas comuns do prédio?
Souberam depois que seu filho, contrariado com uma possível aventura de seu velho pai, discutia e ameaçava: se ele não se afastasse daquela “piranha”, o colocaria num asilo e tiraria dele o pouco do dinheiro que ainda lhe restara.
“Tenha modos, Ozires Filho! Você nem a conhece e a julga desse jeito”, desiludia o pai.
O filho, entretanto, não se comovia, mesmo assistindo ao belo par de olhos azuis – “herança do vovô, que era holandês” – a derramar em lágrimas a súplica por piedade. “Tenho certeza que a sua filha pensa da mesma forma, papai. Da próxima vez que eu souber que saiu e que deu dinheiro para aquela, aquela... – moderou –... já sabe: asilo! Temos dinheiro para bancar seus remédios e plano de saúde, não. E muito menos festejo de velho sem-vergonha.”
Resoluto, o filho dirigiu-se ao quarto para deixar as fraldas descartáveis e os medicamentos que havia trazido da farmácia, quando viu a sala vazia e a sua porta aberta. Correu e ainda assistiu ao pai, em desabalada carreira, vestindo a camisa e pegando um táxi que, por ventura, passava à porta. Ele correu atrás, gritou. Os vizinhos saíram à janela e acudiram nos “Pega! Pega ele!”, mas o veículo mouco ao tumulto partiu levando o velho resfolegante.
Ozires era comerciário aposentado e viúvo. A esposa vivera enquanto pudera com ele – um câncer a descansou –, mas o sabia cobiçado pelas mulheres no trabalho e no entorno. Galanteador, abusava de perfume e de palavras adocicadas em mentiras para tê-las próximo de si. Amava à debalde. Nunca alguém mais apaixonado. O casal de filhos, ainda adolescentes, a pedido da mãe, ia resgatá-lo no bar do seu Natanael, completamente bêbado, cantando a dor de cotovelo mais tórrida e incurável, chorando horrores: “Eu quero morrer. Me deixem morrer em paz! Eu mereço morrer...”
De fato, há meses, à surdina noturna de uma casa de shows, deu-se com Setembrina: “Mas me chamam por Seth”. Sentiu seu coração pulsar a paixão dilacerante, uma lambança espiritual. Desde então, com os seus insuficientes recursos, passou a ser seu protetor. Ela ligava todos os dias, por meio do celular novo pago pelo velho, assim como também ele a regalava com perfumes, sapatos, acessórios, roupas e bebida... em troca de uns poucos afagos, de um ouvido mesmo que desatento, daquela sensação gostosa de remoçamento e do fim de uma solidão.
Então, com a fuga do pai, Ozires Filho chamara logo a polícia. Estava furioso com ele, mas só o veria novamente na manhã chuvosa do dia seguinte, apenas em fraldas, no abandono da travessa escura e enlameada de um bairro distante. O corpo inerte, frio, roxo de pancadas e com os olhos cuidadosamente arrancados e desaparecidos.



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