segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

"A Paixão", de Raymundo Netto para O POVO



Envelhecera 10, 15, 20 anos, desde a última provocação: "Perverso!"
Com o ânimo de uma traça, ele carregava um sentimento sem nome e sem cor desde a última vez que a vira, há muito tempo.
Andaram juntos por aí sem nominar a relação, sem horas para os encontros e despedidas. Não carecia, ele pensava, de tão sinceramente espontâneas: eram amigos, mais do que amigos, menos que namorados – às vezes mais do que isso, mais do que tudo de bom acima desse chão.
Para ela, confessava todos os seus pecados, contava as suas histórias, desfiava seus medos, abria um rombo em seu coração minado. Em troca do ouvido atento e despretensioso, a tratava com gentilezas, dava-lhe presentes, aconselhava, apresentava-lhe todo um mundo que ela jamais poderia conhecer não fora a sua companhia. E se iam num vaivém de ternuras e afetos, despejando sorrisos quase juvenis e cantando o amor febril, sem impor nas costas um do outro nenhum peso de mentiras, falsas convenções ou pregar ilusões melosas ou palavras desnecessárias, até o derradeiro dia quando, num heroísmo quixotesco, para preservar aquela tão querida, a lhe confessar um súbito amor, concedeu-lhe a liberdade: "Vai, é melhor, nem eu gosto de mim!"
Ela não engoliu isso e transfigurou-se. Acabou-se o encanto e a boca antes suculenta do beijo falseou-se em mordida amara. Encerrada a princípio numa implosão brutal, a questionar a relação entre céu e inferno, a afogar-se no travesseiro, a escrever suas mágoas todas, a tatuar seu ódio no corpo, a livrar-se de cada lembrança sua, como se fora possível embrulhar numa caixa os seus mais arraigados sentimentos. Diante do seu fracasso, fez-se invisível. Mas não era a única. Outra, de um passado anterior, também há anos tentava colocar em ordem seus pensamentos e angústias, culpando aquele mesmo homem por tudo de ruim que acontecera e que ainda aconteceria com ela, além do tempo perdido, a unha encravada, uma dor no dente, os gastos com remédios e o barulho no túnel carioca.
Elas se descobriram na internet – a primeira orbitava a segunda – e, logo, também a primeira, em fúria, cuspia para ele: "Por que você não morre logo?"
Entre elas, foi amor à primeira vista. Compartilhando suas dores comuns, passaram a se corresponder, trocar ideias, confessar com uma curiosa disposição o discurso consensual: "Perverso!" Certas de que ele era um acidente, mas sendo possível sobreviver a ele, crucificaram-no, torceram-lhe a perna e o juízo, desejaram-lhe todo o mal do mundo. A primeira ainda se ria quando afirmava com toda ridícula certeza: "Nada não. O pior castigo para ele é ser ele próprio..."
O rapaz, entretanto, trazia o defeito imperdoável da sensibilidade. Sentiu naquele dia uma coisa ruim a tomar-lhe a cabeça. Angustioso, pôs-se a pensar na febre a calcinar-lhe o espírito e, ao analisar-se de raiz deu-se a conhecer um sentimento até então desconhecido: o arrependimento!
Arrependeu-se por cada minuto devotado àquelas mulheres, de cada beijo dado, cada abraço, cada minuto em suas companhias. Essa rejeição pungente o devorou por dentro e acinzentou seu olhar. Em pouco tempo, deixou-lhe no espírito um oco de labirintos, profundamente perdido numa confusão louca de ruim e a certeza de que a mulher apaixonada é um perigo.
Livrai-o, Senhor, da mulher que lhe dedica a paixão...



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