Ela passa ao
lado de um botequim de mercado, um
daqueles cheirando à gordura, a caldo de cana e a suor farto de carregadores, agricultores,
caminhoneiros. Vinha com sede, muita sede. Cria coragem, entra e pede um copo
de água.
Diante
de olhares lascivos ao seu colo branco de estudante, toma à mão o copo
americano, limpa o bordo com a ponta dos dedos compridos e o leva à boca
vermelha. Enquanto bebe, vê a imagem dele no fundo do copo. A imagem também a
reconhece e a abraça com saudade plena. Juntos, de mãos dadas, saem do
botequim, sem se importar com o mundo ao redor, mesmo se havia mundo, e
caminham se expressando apenas por sentimentos.
Assim,
atravessam a cidade. As casas e edifícios se curvam ao seu rastro, deitando
telhas e segredos nas ruas e por cima de seus moradores de calçada. No meio do
caminho, um portal os devora. Lá dentro, descobrem o teto marchetado em
cristais coloridos e espelhados. Olhando para cima, eles se veem, se encontram
e se encantam de novo. Ele, subitamente, sente sua mão reclamar uma dor. Ela se
preocupa. Toma a mão dele e a coloca entre as suas, quentes e febris: “Vou
tirar essa dor de você... para sempre.” Então, como se o mundo fosse de vidro e
o tempo coubesse num único ponteiro, eles trocam olhares, se emprestam e se
amam.
Depois,
ela diz ter que ir embora, não lembra o porquê, mas se fazia hora: “Eu vou
esquecer você.” Pede um táxi, que logo chega, todo envolto em néon. Ela acena
um beijo para o amante. É quando percebe o rosto embaçado, como uma digital. Entra
e senta na poltrona de trás, pois aquela ao lado do motorista está ocupada por
uma pessoa morta, coberta por um lençol, com quem o motorista conversa.
No
meio do caminho, sem lhe perguntar, o táxi toma outro destino. Ela chama pelo
motorista, mas ele só tem ouvidos para o morto. Param em uma travessa e o
taxista começa a gritar com ela: “Saia do meu carro! Saia, vamos, e não me
procure mais!”
Apavorada,
desce e escorre pela primeira porta. Ali, encontra quatro mulheres negras e
mudas, cobertas de sal, expostas em uma vitrine escura. Por detrás dela, surge um
homem, arranca a sua roupa, cobre de sal o seu corpo e a coloca na vitrine junto
com as outras.
Dias-há, o silêncio e o incômodo de uma luz intensa e amarela sobre elas. Então, não se lembra como nem quando, quebram o vidro e todas saem correndo confusas e peladas pelas ruas desertas.
Dias-há, o silêncio e o incômodo de uma luz intensa e amarela sobre elas. Então, não se lembra como nem quando, quebram o vidro e todas saem correndo confusas e peladas pelas ruas desertas.
Ela
chega a um hotel, sendo recebida pela gerente a falar por um idioma estranho –
que mais parecia desenho – a recender no ar. A anfitriã pega-lhe pela mão, a
deita em uma banheira de louça transbordando lágrimas, esponja seu corpo
demoradamente, penteia as ondas de seus cabelos e a veste um robe de celofane revestido
de estrelas. Ela, quase adormecida, fita e pergunta ao espelho: “E ele?” –
“Ainda está aqui, em seu quarto.” – Seu coração distraído exulta: “Preciso vê-lo
agora!”
Sem
sentir o chão em que pisa, acompanha a gerente por desvãos escuros, úmidos e
cheio de escadas. Nas paredes, o papel ressoa o som de asas coloridas por
borboletas. Entretanto, à porta do aposento, enquanto a mulher bate, ela prevê:
“Não é ele quem está por trás dessa porta, mas a esposa dele. É ela!” Começa a
chorar... e a rir... a puxar os cabelos por trás do pescoço comprido. Sente uma
intensa dor nos olhos e esfrega-os. Eles descem pelo dorso de suas mãos e ela
se vê completamente cega.
Tem
sede, pede um copo de água. Olha para o fundo e não vê mais nada: “Ela o
esqueceu? Mas se o esqueceu, por que ainda de tanta sede?”
Sai
do botequim e traz a imagem do morto envolto em lençol pelo resto de seus dias.
(*) escrito a partir de uma narração de sonho que ouvi.
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