Zenaide, em registro de sua Primeira Comunhão
Dizia Drummond: “Fosse eu Rei do Mundo,/
baixava uma lei:/Mãe não morre nunca”, mas como sou apenas um Raymundo, cuja
lei se limita à desconfiança de todas as leis, à busca da impossível liberdade
(inclusive das coisas materiais que não preenchem o espírito) e à aventura de assistir
e colorir pensamentos e humanidades, o que posso fazer é continuar celebrando a
vida que acontece. E, exatamente no dia destinado àqueles que se foram, ela,
essa mãe, parte ao seu encontro marcado. Do peito, o suspiro anônimo de profundo
consentimento e, de repente não mais que de repente, do silêncio se fez e se
faz um poema.
No horizonte, me germinam as memórias
queridas, os momentos singulares e imorredouros de uma vida tomada pelas rédeas
da coragem, determinação e abundante amor. Eu acredito não haver um só momento
em minha vida em que ela estivesse ausente, pois habita inapelavelmente no que
sou, de forma que me são tomados os ouvidos, mesmo agora, pela voz de suas
palavras, e, nas angústias, pela sua tácita companhia.
Seguindo o coração diligente, foi mãe de
seus irmãos, depois de seus alunos, antes de ser mãe de seus seis filhos, e
também antes de assumir a maternidade de outras centenas de pessoas que
buscavam seu amparo em momentos de aflição, de dor, de desespero. Uma mulher
que não dá chance a queixumes e cuja a vida é breve num “cuidar que se ganha em
se perder”.
Em seu consultório, montado em casa,
atendia seus pacientes com alegria, num sorriso que abraçava. Enquanto enrolava
o algodão na pinça, contava histórias, tomava conhecimento dos dramas pessoais,
aconselhava, orava ou cantarolava alguma canção feliz – para desviar os maus
pensamentos, dispersar energias negativas ou o cansaço.
Ao vê-la repousar distraída no leito
frio, envolta em luminoso adorno de pétalas brancas, uma lembrança me seduziu:
era uma almoço na casa de minha avó, sua mãe. Um dos últimos. Na sala pequena,
tomada pelos dez filhos, esposos e esposas, uma música antiga vibrava no ar. Um
dos filhos tomou de abraço a vó Zilma, já bem velhinha e por vezes até apática,
e dançou com ela. Os demais filhos passaram a revezar-se na dança. Quando minha
mãe assumiu a sua vez, minha avó levantou os olhos acinzentados e repartiu um
sorriso. Difícil mensurar o quanto de vida havia nele. Quantas histórias de
amor e de compartilhamento ele continha. Estava ali a sua despedida e a sua
gratidão. Mãe e filha, em um instante de milagre, entendendo por “milagre” a
mais sublime e sincera expressão de doação e renúncia que se pode esperar na
Terra.
Sim, eu sei que a saudade, como canta Manuel
de Barros, “não precisa do fim para chegar”, e vai doer, mas vai doer
diferente, como a música que nos embala uma distância sem volta e nos tira do
mundo “que gira depressa” num ensejo gratuito de paz e de recordações.
Hoje, estou feliz, minha mãe saiu da
“gaiola”: é livre! E na certeza de que os poetas, como aqueles que amam, “podem
ver na escuridão”, trarei comigo a dona Zenaide, com toda a gratidão desse
encontro maior do que o mundo: “Uma passarinha
me ensinou uma canção feliz e quando solitário estou, mais triste do que sempre
sou, recordo que o ela me ensinou.” Nunca adeus!
http://raymundo-netto.blogspot.com.br/2011/10/quando-o-amor-e-de-graca-vi-mae-zena.html
Uma leitura que deixa as lágrimas descerem tranquilas no contorno do rosto.
ResponderExcluirSimplesmente lindo!
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ResponderExcluirLinda homenagem Netto! Sua mãe foi um exemplo de vida e fé, deixou muitos corações entristecidos, mas repletos de gratidão! Que Dona Zena, continue espalhando sua Luz!
ResponderExcluirConheci sua măe, em breves passagens o suficiente para ver que era uma mulher especial, dona de extrema força em meio a delicadezas!!!Tão viva em suas palavras nesse texto que é puro amor, agora livre "repousa distraída" e abre suas asas para o universo!
ResponderExcluirQue lindo!Agraciada por completa com sua mensagem..foi forte.A minha mãe pode está passarinhando...
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