segunda-feira, 22 de julho de 2024

"Itapipoca: a Capital Cearense da Megafauna (Parte I)", de Raymundo Netto para O POVO


Prédio da antiga maternidade Matargão Gesteira, em breve, a sede do 
Museu Pré-Histórico de Itapipoca (Muphi)

A capa do jornal O POVO, em 12 de janeiro de 1961, alarmava: “ITAPIPOCA, SEDE DE IMPORTANTES PESQUISAS CIENTÍFICAS”.

Naqueles dias, chegava à “Terra dos Três Climas” uma expedição de paleontólogos renomados. Entre eles: Carlos de Paula Couto e Fausto Luís de Sousa Cunha, ambos diretores do Museu Nacional, autores de publicações que tiveram alcance e impacto internacionais. Também na equipe, Francisco de Alencar, do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará, e o itapipoquense José Paurilo Barroso, na verdade, o principal causador desse movimento, sendo ele, em 1953, o autor da carta enviada, por intermédio de Gustavo Barroso, ao Museu Nacional, na época, a instituição mais qualificada e equipada para investigações na área, relatando a existência abundante de ossadas fósseis na região do sopé da serra de Uruburetama.



Carlos de Paula Couto e Fausto Luís de Sousa Cunha (1961)


O paleontólogo Carlos Couto surpreendia ao responder para o jornal “ser provável, pelos indícios já encontrados, desenterrar das cacimbas ou depósitos em escavação, esqueletos inteiros de mastodontes”. As cacimbas a que se referia eram “bebedouros” naturais gerados por depressões em formações rochosas que acumulavam água das chuvas. Ali, animais de grande porte, como mastodontes, tigres dente-de-sabre, preguiças gigantes (o maior mamífero terrestre que já viveu no Brasil), entre outros, há 10 mil anos, se inclinavam para matar a sede, às vezes caindo nelas sem conseguir escapar, ou, quando em período de estiagem, morrendo ao seu redor, sendo posteriormente empurrados para dentro delas por enxurradas e sendo soterrados. Esses sítios paleontológicos são de imenso valor para os estudos da “fabulosa fauna pré-histórica assinalada em Itapipoca”. E não se limitam apenas aos mamíferos, mas a aves, répteis e espécies vegetais.

O paleontólogo Celso Ximenes, curador do Museu de Pré-História de Itapipoca (o Muphi), fundado em 2005, afirma: “Nenhum lugar do Brasil tem tantas espécies de animais pré-históricos como em Itapipoca.” E por isso defende que Itapipoca seja reconhecida como a Capital Cearense da Megafauna Pré-Histórica, ciente de que Santana do Cariri é considerada a Capital Cearense da Paleontologia, devido à quantidade e qualidade de seus fósseis. Porém, é em Itapipoca, e não em Santana, que podemos encontrar esse grande volume de animais de grande porte que, em conjunto (são sete os sítios paleontológicos), denominamos de MEGAFAUNA.


Sítio paleontológico (Lajinhas)


O Muphi atualmente assume em Itapipoca o papel de preservação do seu patrimônio paleontológico e arqueológico, conduzindo pesquisas e cursos de formação (Antropologia e Paleontologia) em parceria com diversas instituições, além de realizar trabalhos de divulgação científica, educação patrimonial e promover o turismo cultural.

No seu acervo, além de réplicas constituídas de alguns desses animais gigantes, a partir de ossadas originais, traz diversas peças, como fêmur, costelas, vértebra, mandíbula, dentes, utensílios de pedra polida e de pedra lascada e malacológicos (instrumentos feitos de conchas), sendo alguns deles tombados pelo Iphan. Aliás, entre as ações do atual prefeito Felipe Pinheiro, está sendo reformada a sede da antiga maternidade Matargão Gesteira para acolher a nova sede do Museu Pré-Histórico, então, ampliado, com planos para atrair cientistas, estudantes, pesquisadores e turistas de todo o mundo, em busca de estudar e conhecer esse patrimônio paleontológico riquíssimo em um espaço mais adequado e estruturado em conformidade com o seu potencial científico, educacional e turístico.

(continua)

 


 

 


 

domingo, 23 de junho de 2024

"Esperança", de Raymundo Netto para O POVO


Ao contrário do que o nome insinuava, Gastão era um genuíno “mão de vaca”. Aos mais próximos, perguntassem pelo seu dinheiro, respondiam: “nem a cor”.

Esperança, quando moça, solteira e sonhadora, deixou-se levar pelos ouvidos: ela tinha tudo para conquistar aquele coração ainda virgem e distraído do mundo. Afinal, o rapaz até que era bem-apessoado e, mexericavam, apesar da tímida, humilde e descuidada aparência, possuía fortuna. Dito e feito. Gastão se rendeu, não fácil, aos encantos das pernocas de Esperança, pendulares na calçada do armarinho “Kerim”, negócio herdado de família. Entretanto, contrariando os contos de fada, nos quais o “felizes para sempre” vem logo após o casamento, neste, de Gastão e Esperança, mesmo antes dele a coisa já descia ladeira abaixo. Para começar, Gastão exigiu que os pais de Esperança bancassem tudo, da igreja à lua de mel, pulando a festa, que só servia para encher o bucho e a cara de oportunistas. “Gastar com festa para quê?” Porém não abriu mão dessa “economia”, levando-a consigo para as núpcias em imprevisto motel barato, deixando os pais de Esperança na maior penhora.

Retornando de uma lua sem queijo nem mel, encontramos uma Esperança abatida, magra e com imensa dificuldade de se adaptar à rotina imposta pelo marido. Faltava de tudo naquela casa. Às vezes, nem onde sentar. Quando reclamava, ele dizia: “Para quê gastar com mobília? Precisamos de espaço.” Mas o pior mesmo era a ausência de água encanada. Sempre que precisasse, ela teria que pegar água do poço no quintal. O barulho estridente das roldanas dava-lhe nos nervos. Gastão, debruçado em suas obsessivas contas, acompanhava esse movimento diário: “Lavando a louça do café... aguando as plantas... lavando a casa... lavando a louça do almoço... tomando banho... preparando o meu...”

Esperança se queixava: estava cheia de calos nas mãos, sentia dores nas costas, aquilo lhe tomava o dia inteiro, não poderiam contratar uma empregada? “Gastar com empregada para quê? Uma estranha em casa? Só se for para nos roubar!”

Aos domingos, na hora do almoço, Gastão dizia ser tomado por uma súbita saudade dos sogros e se convidava à mesa, mesmo quando Esperança ficava em casa: “Gastar com almoço para quê? A comida da sua mãe é incomparável.”

Durante anos, Esperança haveria de continuar a sua labuta exaustiva de puxar a balde a água da casa, diante das desculpas prontas do marido. Queria vestido novo para ir à missa: “Gastar para ir à missa? Deus está aqui também!” Queria ir à cabelereira: “Gastar com cabelos? Corta bem curtinhos... eu gosto!” Queria viajar: “Gastar com viagem para que se vai voltar sempre?”. E se queria comer alguma coisa diferente, ele liberava uma caixinha de creme de leite e a despejava no que estivesse mais perto, fosse pão, ovo, macarrão... Sobretudo, Gastão também achava um absurdo as contas da farmácia e, tendo detectado um “sopro no coração”, decidiu não gastar com remédios e médicos. Então, após receber cobrança de fornecedor, teve um piripaque e defuntou ali mesmo, prostrado sobre o seu venerado livro-caixa. A notícia se espalhou, os familiares correram ao local e encontraram Esperança apática ao lado do marido morto. Todos demonstravam um dissimulado interesse, choravam, abraçavam a viúva e se ofereciam para ajudar nos preparativos dos rituais fúnebres. Foi quando Esperança pegou um velho surrão sujo e com esforço colocou o morto dentro. Fechou o saco, o arrastou ao quintal, o jogou dentro e bem no fundo do poço e mandou um pedreiro selar a sua boca de uma vez por todas. Diante do pasmo geral, a mulher, suando em bicas e batendo a sujeira das palmas das mãos calejadas, asseverou: “Gastar com buraco para quê?”

Na semana seguinte estava ela, com os pais, mordendo ávida e feliz um croissant duro em um café francês. C’est la vie.



 


 

quarta-feira, 19 de junho de 2024

"Uma Palavra sobre Chico Buarque: o escritor", de Raymundo Netto


Sobre a sua persona de escritor, podemos afirmar que Chico Buarque, esse canceriano carioca, é um imenso poeta. Para comprovar, basta não ser surdo nem cego. Sua obra poética – muitas vezes enredada à dramaturgia e à crônica –, a diversidade de eu-líricos, a riqueza temática, o ritmo (que sobrevive à ausência melódica), entre outros fatores linguísticos asseguram a qualidade desse poeta-letrista.

No entanto, não é, pelo menos de todo, essa voz que entranha a sua prosa. Desconsiderando algumas obras de menor projeção, sua carreira literária teve seu início com o inquieto, alucinado e quase experimental romance “Estorvo” (1992), que li ainda quando da primeira edição, e não gostei. Porém, como não apito, tornou-se o ganhador do Jabuti, assim como outros títulos seus.

Em 1995, veio outro romance, “Benjamim”, rico em imagens, tendendo ao cinematográfico. Ao contrário de “Estorvo”, narrado na 3ª pessoa, traz um personagem bastante curioso, o tal Benjamim Zambraia, uma espécie de flaneur neurótico que tinha a impressão de estar sendo sempre observado e/ou filmado em um cenário de regime militar. Ótimo livro – o que mais gostei, simplesmente –, escrito com muito apuro e um final surpreendente, apesar de.

Em 2003, compôs “Budapeste”, livro enaltecido com louvores de inovação por José Saramago. O personagem, um ghost-writer, o proscrito, o temor de qualquer escritor(a), aquele que “progride nas sombras” e tem vaidade com seu anonimato. É perceptível na leitura da obra o emprego do esmero necessário que se presta à construção realmente literária, mas sem necessidade de firulas e rodeios, sendo diversamente onírico, humorado e recheado de boa imaginação e, em muitos pontos, complexo, como a língua húngara, quase uma personagem da trama.

“Leite Derramado” (2009), foi o último livro de Chico Buarque que tive acesso (não li os romances “O Irmão Alemão”, “Essa Gente” nem o livro de contos “Anos de Chumbo”). Muito interessante, de leitura saborosa, a história do velho Eulálio, mesmo que aparentemente – ou certamente – delirante, traz alguns elementos do passado do personagem, revolvendo um pouco da história do país, questões familiares, misturando passado, presente e senilidade, sempre com algo de humor e ao mesmo tempo, direta e indiretamente, remetendo sobre reveses da vida e a fragilidade mental e psíquica dos idosos. Mesmo que em alguns pontos se perceba a caduquice contagiar o desenvolvimento do texto, é certamente uma ótima leitura.

Independentemente de controvérsias e suspeitas sobre premiações do mercado editorial, privilégios midiáticos, entre outros humores, Chico Buarque conquistou o Prêmio Camões de Literatura – num cenário bem buarqueano, eu diria –, o maior da língua portuguesa, e é difícil dizer que não o mereça, embora na bagunça de meu coração e na desordem do armário embutido, ainda sinta que o poeta é mais urgente que o prosador... e amanhã há de ser outro dia.



 


 

segunda-feira, 27 de maio de 2024

"A Dupla", de Raymundo Netto para O POVO


Não tendo outro jeito, separou-se.

No começo, sempre difícil, buscava a companhia solitária e ilusória das multidões. Com o tempo, aquietou-se, arranjou um apartamentinho, organizou-o com suas coisas, acomodou e acostumou-se. Melhor: passou a curtir o silêncio e a sua solidão, esta, sim, para ele, libertária.

Numa ironia terrível, bem própria da incoerente existência humana, na qual afirmamos amar a vida, todavia nos deitamos com a morte, enquanto gostava daquela situação, sentia precisar de mais alguém. Apesar disso, ciente de ser um incompreendido e da sua indisposição em acordar qualquer coisa que lhe restringisse o mínimo de espaço – tinha asmas emocionais –, decidiu viver a dois consigo mesmo.

Então, nos restaurantes, bares e cafeterias, passou a pedir tudo em dobro. Dois cafés, dois pães, dois pratos, dois pares de talheres... e até a se divertir em jogos de tabuleiro, de cartas e palavras cruzadas. Dava gosto vê-lo alegremente falando alto, conversando, lendo livros regados a chás, discutindo o cardápio e planejando viagens juntos. Fazia longas caminhadas no parque pela manhã. Um cuidava da saúde do outro, sempre achando que esse outro, por ser da mesma idade, deveria estar tão bem quanto.

A princípio, os vizinhos e moradores do bairro estranhavam, mas, com a rotina, já os reconheciam como gêmeos, percebendo nos modos, na fala e até no olhar, naquele instante, quem era quem.

Sabemos, entretanto, que a vida em comum é um exercício. Com o tempo, a falta de privacidade e o excesso de intimidade podem pôr abaixo a mais sólida relação. Ele começou a desanimar. Irritava-se com frequência. Diante das discussões, jogavam na cara um do outro os seus mais inconfessáveis e inegáveis defeitos e contradições. Assim, aquela convivência se tornou intolerável. E, um dia, como é comum acontecer nesses momentos, estavam no café, quando surge à luz da manhã uma moça belíssima. Não demorou para que eles chamassem a sua atenção. Ela, curiosa e atrevida, aproximou-se, pediu licença e sentou-se à mesa.

Desacostumados com outro contato que não entre eles próprios, apresentaram-se, atrapalhados, a lhe perguntar coisas, as mais banais e supérfluas. A moça sorria: “Calma, rapazes, um de cada vez...”. Ao sair, colheu os números de seus celulares.

Sim, eles estavam completamente apaixonados. Mas tinha que ser pela mesma mulher? Agora, o que estava ruim ficou ainda pior: evitavam-se, faziam refeições em separado, brigavam para usar o banheiro, trancavam-se em seus quartos à espera daquela ligação. E ela ligava. Incompreensivelmente, para um e logo depois para o outro.

Um dia, ao acordar, ele sentiu um estranho vazio. Correu à sala e encontrou um bilhete. O outro fugira de casa para viver ao lado dela, o seu grande amor. Fizesse o que quisesse com suas coisas. Não queria saber de mais nada. Por fim, desculpasse. Se possível, enviaria notícias.

Aquilo foi demais. Ele, abandonado e irremediavelmente sozinho, não resistiu e se matou, não suportando a inigualável dor daquela dupla traição.




 

sábado, 11 de maio de 2024

"Ziraldo no Ceará (COMPLETO)", de Raymundo Netto para O POVO


A última vez que Ziraldo veio ao Ceará participar de uma Bienal aconteceu em 2010, a convite meu, quando estava curador da programação da Bienal Internacional do Livro do Ceará, cujo tema era “O Livro a Leitura e os Sentimentos do Mundo”.

Era abril, o mês do livro e do aniversário da cidade, e eu queria trazer alguns nomes caros à infância brasileira, além de outros que, mesmo não tão badalados naqueles tempos, decerto eram imortais na lembrança dos(as) leitores(as) cearenses de todas as idades, como Carlos Heitor Cony, Affonso Romano de Sant’Anna, Tiago de Mello, Marina Colasanti, Maurício de Souza, Pedro Bandeira, Ana Miranda e Ziraldo. Claro, no quesito literatura infantojuvenil, teríamos os(as) cearenses Horácio Dídimo, Socorro Acioli, Klévisson Viana, Elvira Drummond, Tércia Montenegro, Arlene Holanda, Almir Mota...

Como curador da programação, fiquei responsável em receber os convidados. Naquele dia, iria encontrar o Ziraldo no aeroporto. Disseram-me: “Este não dá trabalho – alguns deram –, pois sempre vem com a esposa ou com o agente dele. Bastava recebê-lo e deixá-lo no hotel.” Assim me disse a produção.

Contudo, não se deu assim. Ziraldo chegou sozinho! Quase correndo, assustado, no meio do povo. Perguntei-lhe pela esposa: “Depois da festa de aniversário que ela deu ontem, eu não sei nem quando ela vai acordar...” E o seu agente?: “Quebrou o dedo do pé.”

Chegamos ao Marina Park Hotel, onde se hospedaria. Apresentei a ele a equipe que estava ali à sua disposição, mas: “Raymundo, eu não fico sozinho!” Perguntou se eu tinha o contato do Mino. Eu tinha. Que eu marcasse um almoço com ele. Teria também uma entrevista agendada, mas não sabia onde, com alunos do jornalismo da UFC – era para a revista Entrevista, sob a coordenação do jornalista Ronaldo Salgado.



Enquanto acertava com o Mino o almoço no restaurante da Beira-Mar, tirei de minha mochila uma encadernação com todos os 10 números da revista da Turma do Pererê, pela Abril (1975), o seu retorno após a primeira “temporada” pela O Cruzeiro.


Ziraldo se emocionou. Disse que aquelas ele não possuía. Autografou ao seu estilo. Lamentou que naquele tempo estava chateado com a editora por conta de divergências. “Cabeça-dura”, preferiu cancelar. Por outro lado, sabia que poderia ter se empenhado mais, ter feito mais: “Ninguém falava ainda em Ecologia nem na valorização da fauna nativa ou da cultura brasileira... Tinha tudo para ser um sucesso maior!” Folheou demoradamente e depois devolveu a minha pequena coleção agora autografada.

De fato, a Turma do Pererê foi a primeira revista em quadrinhos brasileira feita apenas por um só autor, sendo também a primeira HQ a cores publicada no país.

Saímos do hotel para nos encontrarmos com o Mino no restaurante do Faustino, uma excelente vista para o mar. Muito bonito e divertido presenciar o encontro desses dois talentosos cartunistas, ainda mais ciente da importância de Ziraldo no rumo seguido pelo Mino, o pai do “Capitão Rapadura”, o herói que (quase) tudo atura.

Por volta das 15 a 16h, chegou o Ronaldo Salgado acompanhado de um bom grupo de jovens estudantes do 6º semestre do curso de Comunicação.

Pedi que Ziraldo tentasse não se estender muito, pois a mesa dele na Bienal aconteceria no início da noite. Ele me tranquilizou... “Nem gosto muito de falar. Em 15min, eu termino.” Quando sentou-se à mesa, começou a perguntar o nome de um por um dos jovens entrevistadores. Quando o(a) estudante respondia, ele perguntava: “E por que do seu nome?”. Pronto, ali fiquei certo que seria uma longa, muito longa entrevista.




***

 

Após horas de entrevista com aqueles estudantes, chegamos com algum atraso ao antigo Centro de Convenções, sede da Bienal Internacional do Livro. Aliás, foi a última edição da Bienal a acontecer ali. Passamos rapidamente pelo auditório montado para recebê-lo. Como imaginávamos, estava lotado: eram crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos ansiosos em ver de perto o Ziraldo, realmente um ídolo de diversas gerações.





Preparava-me para subir ao palco e chamá-lo quando deu-se um “embaraço devastador”: Ziraldo estava agoniado com uma cutícula de unha: “Eu não vou conseguir falar se eu não tirar isso!” Liguei para a produção: “Pelamordedeus arranjem logo um alicate de unha para esse homem!” Dirigimo-nos à Sala VIP e ali ficamos até ele resolver esse aparente gigantesco imbróglio...



O tema que escolhi para a sua palestra, claro, não poderia ser diferente: “Ler é mais importante do que estudar!”

Ziraldo chegou ao palco ao som de palmas entusiasmadas e afetuosas. Muitos ali o tinham bem de perto, da cabeceira, na voz materna, em momentos de divertidas solidões. Descumprindo qualquer protocolo, falou abertamente com a naturalidade encantatória dos loucos. Distribuía sem pudor as suas impressões do mundo, a sua visão sobre a educação, sobre a leitura e as suas pequenas fascinações.




Ao final, uma fila interminável de pessoas trazia seus livros para autografar. Ele atendeu a todos. Permaneci ao seu lado e, daí, mesmo enquanto autografava, falava comigo. Precisava que eu conseguisse algum lugar com telão para ele assistir ao jogo do Flamengo que aconteceria naquela noite: “Tenho que terminar antes do jogo. Você gosta de futebol? assiste comigo?”



Na verdade, não mesmo. Contudo poderia recorrer novamente ao Mino. Liguei para ele, pedi mais esse favor, e ele aceitou. Disse-me que aguardaria por nós dois no restaurante Dallas, onde poderiam encontrar o tal telão. Como o Mino não dirige, deixaria um motorista para ambos.

Resolvido isso, Ziraldo ainda me falou que soube que estávamos distribuindo R$ 5,00 para que os estudantes comprassem livros na Bienal, a tal “Notinha Legal”: “É um desserviço. Livro com esse valor não presta!” Por coincidência (ou não), uma garota estava com um livro dele na mão e eu perguntei quanto custou. Respondeu toda sorrisos: “Só R$ 5,00. Está em promoção.” Ele baixou a cabeça, desenhou o autógrafo e resmungou: “Por isso é que eu não ganho mais dinheiro. Só R$ 5,00...”

De repente, um homem surgiu por trás da fila e acenou-lhe com um livro, mais um de seus títulos, na mão: “Ziraldo, você gostou da edição? Está bonita, né?” Ziraldo mirou apertando os olhos: “Está... Mas eu não estou lembrado de a gente ter acertado esse não, viu? Vamos ter que conversar...”








A fila parecia não ter fim e ele começou a se aperrear: “E o jogo? Vou perder o jogo?” Sugeri: “Resume o autógrafo. Não desenha.” “É mesmo, né?”, disse. Porém, logo depois, chegou uma mocinha. Perguntou o nome dela: “Marília”. Então, rapidamente ele se pôs a desenhar ondas do mar, um barco, um sol... É, não adiantava, ele amava tudo aquilo. Dava gosto ver a alegria daquelas pessoas abraçando-o, pedindo-me para tirar fotos com ele, mães trazendo filhos que, como ela, descobriram o Ziraldo ainda na infância. A sua presença, nunca tive dúvidas, seria para esse povo cearense um presente impagável.

À noite, conforme acordado, o deixei no Dallas com o Mino e, antes de eu voltar para casa, perguntou se eu poderia ir com ele na manhã do dia seguinte à Revistas & Cia, do Silvyo Amarante, pois estava curioso em conhecer o espaço e queria fazer umas comprinhas... Lembrou-me: “Eu não fico sozinho, Raymundo!”


***

 

O voo do Ziraldo partia por volta do meio-dia e por isso, muito cedo, eu já estava no hotel para pegá-lo e levá-lo à revistaria do Silvyo Amarante.

Durante o percurso, ele ligava para alguém. Contava alguma piada breve sobre “chifre” e outros temas curiosamente do gosto masculino e logo perguntava por que aquela pessoa não havia ido ao aniversário da Márcia, a sua esposa: “Rapaz, liga para Márcia, diz que estava doente, fala qualquer coisa, pois ela estranhou muito a sua ausência. Sério, só faltou você! Liga pra ela, liga!” Até chegarmos à loja do Silvyo – e depois que saímos de lá –, ele deve ter ligado para umas oito pessoas dizendo e pedindo a mesma coisa: “Só faltou você, meu amigo, liga pra ela, liga!”

Entre uma ligação e outra, me perguntava qualquer coisa sobre a cidade, sobre um ou outro artista e se indagava porque não tinha aceito participar de um evento no qual teria sido convidado no passado: “Raymundo, você sabe que eu só aceitei vir porque era no Ceará. Você está me pagando uma pechincha.” Respondi: “É mesmo? E você sabe que você foi, entre todos, o último e o único artista com quem negociei diretamente o cachê?” Deu uma risada: “Vejam só, negociei com a pessoa errada!”

Finalmente, chegamos.

O Silvyo o recebeu com a alegria de sempre. Além de sofisticado colecionador de revistas dos mais diversos gêneros, é inteligentíssimo e tem uma memória privilegiada. Cinéfilo, excelente contador de histórias e piadas, jogador compulsivo de frescobol, nas horas vagas se dá ao exercício de elaborar poemas quase épicos, utilizando palavras que se iniciam com uma única letra, como a obra “Mundografia Moderna”, cujo prefácio é de Chico Anysio, humorista que utilizava os versos do Silvyo em algumas de suas apresentações em teatros ou na TV.



Claro, o Silvyo o conduziria a caminhar pelo fantástico labirinto de estantes e caixas que é a sua “Fortaleza da Solidão”, apresentando não apenas as raríssimas coleções de revistas, miniaturas e estatuetas de personagens de quadrinhos, como também acervos de ilustrações de artistas nacionais e internacionais. Entre eles, o nosso saudoso Al Rio.

Diante de tantos nomes de peso, o Ziraldo não se fez de rogado e, num pedaço de parede, deixou também rabiscado um seu Menino Maluquinho a saudar o grande Silvyo que, aliás, também foi um dos palestrantes convidados naquela Bienal.







Ziraldo, durante o “passeio”, ia pedindo uma coisa e outra, colhendo “flores daquele jardim”. Depois, sentou-se na banqueta do Silvyo, na entrada da loja, atendeu telefonemas, foi fotografado pelos clientes que o reconheceram, contou algumas outras histórias e, depois, tomamos o rumo direto para o aeroporto. Entre as aquisições, as Playboy da Xuxa e da Luiza Brunet: “Vou levar. Acredita que eu nunca vi?”









No aeroporto, o problema era: tinha que comprar qualquer coisa para colocar o grande número de livros e revistas que ele havia ganhado e comprado. Não foi fácil. “O aeroporto de vocês é muito pequenininho...” Mas conseguimos. Quando na hora de guardar tudo na bolsa – “A Márcia não sabe mais o que fazer com tanta bolsa” –, ele perguntou: “E você não escreve? Cadê os seus livros?” Não tinha levado nada. Fiquei de enviar depois. Nunca o fiz. E assim nos despedimos. Cheguei a ligar para ele umas duas vezes, no máximo. As lembranças, praticamente todas, de sua vinda e companhia, estão aqui registradas. Foram apenas dois dias, mas memoráveis. Com a sua derradeira partida, todas essas passagens pintadas há 14 anos me voltam à mente. Tão distantes, que sinto como se fora um filme antigo. Esforço-me para lembrar mais detalhes, todos, porém muitos se perderam irrecuperavelmente, assim como a minha coleção da Turma do Pererê, valiosamente ali autografada, contudo, degustada criminosamente por meus vis cupins.