sábado, 4 de outubro de 2025

"A Capital Cearense dos Quadrinhos: Pacoti", de Raymundo Netto para O POVO

Pôster da Mostra. Autoria: João Belo Jr.
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Pacoti, a “Capital Cearense dos Quadrinhos”, em 2025, recebeu, entre os dias 2 a 4 de outubro, a terceira edição da Mostra Sesc HQ.

Como nas edições anteriores, a equipe técnica do Sesc preparou uma série de atividades para o público presente. Entre elas: lançamento de livros, palestras (com a participação de Paulo Monteiro, responsável pelo Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, em Portugal), oficinas (quadrinhos em sala de aula, desenho para quadrinhos, zine, roteiro para histórias em quadrinhos e desenho de personagens de mangá), feira de quadrinhos (Reboot Comics, editoras Avoante e Riso), teatro de bonecos (Grupo Formosura de Teatro, Bricoleiros e Companhia de Teatro Epidemia de Bonecos), apresentações musicais (Escola de Música de Guaramiranga, Escola de Artes BCA de Pacoti, banda Dona Zefinha, Batuta Nordestina e DJ Ada Porã), oficina de brinquedos ópticos (J. Cambé), disponibilização do serviço da Biblioteca Móvel do Sesc e a Exposição do Mendez (1907-1996), cartunista e caricaturista cearense de grande renome nacional.

A Mostra, desde sua primeira edição, lança a coleção DISCOnversando, álbuns em referência a LPs de artistas cearenses, adaptando as suas faixas em formato de HQs. Foram agraciados: “Além das Frentes”, de Eugênio Leandro, “Avallon”, de Abidoral Jamacaru, e, este ano, “Retrato”, de Luiz Fidelis. O artista, que é um dos maiores compositores e intérpretes de forró da atualidade, esteve na Mostra e apresentou-se no “Concerto Desenhado”, show musical no qual as HQs criadas para o álbum são projetadas em grandes telões de LED durante a apresentação. A maioria dos quadrinistas (desenhistas, roteiristas, coloristas) que participaram do álbum também se apresentaram durantes esses dias, falando sobre a sua carreira e o seu processo criativo.

Além das esculturas gigantes e coloridas de “Reco-Reco, Bolão e Azeitona”, personagens do quadrinista cearense Luiz Sá (1907-1979), desenvolvidas por Dim Brinquedim para receber os moradores e visitantes de Pacoti ao lado do arco de Nossa Senhora de Fátima, o município recebeu a do “Jumento Wanderley”, criação do quadrinista J.J. Marreiro.

Dez anos depois da criação da sua primeira sede, O Ecomuseu de Pacoti, parceiro do Sesc na Mostra, sob a direção do historiador Levi Jucá, recebe uma nova sede, conseguindo o grande feito de conservação e preservação do patrimônio arquitetônico da cidade, ao transformar a antiga sede da Delegacia e Cadeia Pública de Pacoti em um riquíssimo equipamento cultural, no qual, entre outros, receberá o acervo de Mário Mendez.

Desde a sua primeira edição, a Mostra reconhece, por meio do Troféu Luiz Sá, profissionais que têm relevância na história dos quadrinhos cearenses. Este ano, a comenda foi entregue com toda justiça ao quadrinista e professor Daniel Brandão, fundador em Fortaleza do Estúdio Daniel Brandão, escola de desenho, quadrinhos, mangá e outras artes gráficas que, há 23 anos, promove a Nona Arte e forma não apenas quadrinistas, mas desenhistas e profissionais de artes visuais.

Nas edições anteriores, receberam o troféu o professor e historiador Levi Jucá e o quadrinista e cordelista Klévisson Viana.

Por tudo isso e muito mais que sabemos vir por aí, a arte dos quadrinhos no Ceará está em festa. Parabéns ao Sesc, nas pessoas de Luiz Gastão, Henrique Javi, Alemberg Quindins e Sofia Dantas.

Vivas a Nona Arte e a Mostra Sesc HQ de Pacoti!




 

"O Nelson Rodrigues que Habita em Nós", por Beny Barbosa


Quando concluí a leitura de Coisas Engraçadas de Não se Rir, de Raymundo Netto, uma frase de Nelson Rodrigues me veio à cabeça, meio destroçada, é certo, mas o sentido estava ali dentro daquelas histórias. Fui me certificar com a IA se a autoria era dele e pimba! Era mesmo: “o moralista é um cínico disfarçado”.

O título, muito bem elaborado, já indica que teremos leituras paradoxais entre o que vem a ser engraçado e a desgraça humana. Aquilo que culturalmente não é aceito pela sociedade conservadora é disfarçadamente aceito sob olhos com espasmos de miopia. Desse modo, Raymundo Netto, de modo muito peculiar, à Nelson Rodrigues, nos joga na cara estruturas sociais que, apesar das transformações ocorridas ao longo do tempo, ainda permanecem lá, sólidas, resistentes e, muitas vezes, violentas.

Dadivosa, Bigode, Eudócia e Ozires Filho são personagens fictícios, mas que andam por aí: em bares, em mercados, em igrejas, em escolas e em...prostíbulos. Caso a gente frequente um desses lugares criados pela civilização burguesa, certamente nos deparamos com eles e elas, mesmo usando nomes diferentes para se disfarçarem e andarem por aí, impunemente, alheios às críticas dos hipócritas de plantão. E sorvendo os seus desejos mais íntimos, daqueles que a gente não admite nem diante do espelho.

Assim como em Nelson Rodrigues, Raymundo Netto tem a coragem de colocar as mulheres em papel de protagonistas, sem medo e dispostas a arcar com as consequências de suas escolhas diante de homens abobalhados, como aqueles criados pela avó. Não vou negar que torci por elas, entre risos e franzir de testa.

“Nerds” me tocou profundamente, quando ele faz uma narrativa forte, utilizando-se, de certa forma, do realismo fantástico. Muito me lembrou de um conto meu (“O Super Kaká”), mas com final diferente. Trouxe à cena, o sofrimento daqueles e daquelas alcunhados de esquisitos por uma sociedade que teima em ser linear.

Coisas Engraçadas de Não se Rir é uma obra que não tem marcação de tempo, mas de modus vivendi de pessoas reais, que vagam entre o aprisionamento e a liberdade de ser o que se é, sem as máscaras sociais que comumente usamos para poder sobreviver.

“A arte é a mentira que nos ajuda a ver a verdade.”  (Nelson Rodrigues)




 

domingo, 21 de setembro de 2025

Programa "Leruaite" da TVC com Falcão e como entrevistado Raymundo Netto



No “Leruaite”, programa do bregastar Falcão, na TVC, entrevista com RAYMUNDO NETTO, escritor, quadrinista, editor e documentarista cearense. Fala sobre sua obra que transita entre o romance, o conto, a crônica e a literatura infantil, com olhar atento para a preservação da memória e da cultura.

Além disso, no programa mais altamente mais ou menos da TV mundial, toda a filosofage ecumênica, piramidal e esculhambativa do Falcão e seus cupinchas.

Assista ao programa, curta, compartilhe e, se quiser, deixe seus comentários.

  ACESSE: https://encurtador.com.br/frqZW



 

"Lendas e Canções Populares: 160 anos", de Raymundo Netto para O POVO


Raymundo Netto, embora tenha um exemplar original de 1865, 
preferiu postar a foto com a obra que teve a honra de editar
(clique na imagem para ampliar)

“[...] desprezado dos salões, encontrarei bom gasalhado na oficina, na choça, no seio do povo; o operário entoará no trabalho estas canções, as crianças as repetirão no lar e o veterano, o recrutado, o escravo, o oprimido... derramarão muitas lágrimas ao escutá-las. E assim, cumprirei a minha missão.”

Foi dessa forma que o poeta Juvenal Galeno (1836-1931) concluiu a “História deste Livro”, uma espécie de apresentação do autor à volumosa obra Lendas e Canções Populares que, em 2025, completa 160 anos.

Avaliando esse texto, vimos que Galeno afirma ser a sua produção poética uma “missão”. Aos 29 anos, tal qual o arquétipo do herói romântico, abraça essa causa com idealismo, sobejado de emoção e se rebelando contra as convenções sociais que, na época, oprimiam – e oprimem – os mais vulneráveis na sociedade, aqueles que seriam eternizados em seu projeto literário: o escravo, o recrutado (da Guerra do Paraguai), o jangadeiro/pescador, o vaqueiro, o operário, os trabalhadores, os analfabetos, as mulheres, crianças e os velhos etc.

Importante destacar: para cumprir essa tarefa, não se recolheu ao conforto do gabinete de sua casa no aprazível cimo da serra de Aratanha. Ele, filho varão daquele que era um dos maiores comerciantes de café no estado, decidiu ser a sua pena uma humilde exploradora, movida pela curiosidade de trilhar a serra, o sertão e as praias em busca da realidade do povo sofrido a quem dedicaria a sua obra: “Acompanhei-o passo a passo no seu viver, e então, nos campos e povoados, no sertão, na praia e na montanha, ouvi e decorei seus cantos, suas queixas, suas lendas e profecias; aprendi seus usos, costumes e superstições, falei-lhe em nome da pátria e guardei dentro em mim os sentimentos de sua alma. Com ele sorri e chorei, e depois escrevi o que ele sentia, o que cantava, o que me dizia, o que me inspirava”.

Para entender um pouco sobre a envergadura dessa obra ímpar na Literatura Brasileira, imagine que ela nasceu em pleno Romantismo: no mesmo ano, enquanto num berço encontrávamos a jovem “Iracema”, de Alencar, noutro estava o título da musa popular de Galeno. Ambos cearenses; obras completamente distintas.

Embora tenha cruzado várias escolas literárias – quase completou 95 anos – e nunca tenha se afastado da romântica, é interessante perceber as notas realistas encontradas em suas canções, provando conhecer bem sobre as tintas com que pintava.

Lendas e Canções Populares, impressa em tiragem pouco comum naqueles tempos, foi um sucesso no Brasil, apresentando o ambiente, os costumes e essas personagens “nortistas” tão exóticas para a corte no sul do país, merecendo uma série de “juízos críticos” que lhe chegariam de diversas regiões brasileiras, assim como também de Portugal, onde lusitanos se entusiasmavam com essas inspirações ingênuas – como a de trovadores – do ainda muito desconhecido povo brasileiro.

Também viriam as críticas, claro, e não poucas, que mereceriam nos próximos anos defesas extensas de um Araripe Jr. e de Franklin Távora, entre outros grandes expoentes literários, como o próprio Alencar.

Juvenal Galeno nasceu em 27 de setembro de 1836. Adorava comemorar seus aniversários, e talvez por isso tenha vivido tanto. Mesmo cego, colecionando moléstias da idade, sem praticamente descansar de sua rede, havia sempre um novo poema.

Nós, seus leitores e leitoras, ganhamos de presente a sua história, a sua luta e a sua obra.

Parabéns, Juvenal Galeno, que vivas na sua justíssima e legítima imortalidade.




 

"Coisas Engraçadas de Não se Rir", por Gabriel Petter


O que seria da literatura sem o temperamento da vida?

Coisas Engraçadas de não se Rir, novo livro de Raymundo Netto, traça a sensação de conversas casuais entre amigos à mesa de um bar, onde as “causas” mais absurdas brotam espontaneamente, como uma licença poética para o excesso de aversão ao mundo “normal”.

Acreditem, essa obra é muito mais comum do que gostaríamos de admitir, principalmente por tratar também de sexualidade e relacionamentos amorosos, campos em que as possibilidades são muito maiores do que as limitações impostas pela sociedade e suas instituições. Aliás, são justamente essas as questões que dominam a totalidade do livro, dividido em 48 textos curtos, transitando facilmente entre crônica e conto, também situados na tragicomédia.

Os deleites e desgostos de vínculos que vão do casamento monogâmico ao relacionamento aberto mostram que não há nada na vida e no sexo, mas que este seja um elemento determinante na vida humana e em nenhum processo de subjetivação. Seja o poeta que ressignifica sua obra para amar pela primeira vez ou o gênero que nutre um desejo secreto pela sogra, como personagens que viajam pelas páginas do livro apenas permeadas por desejos e sentimentos reprimidos, fantasias, fetiches, é isso que os moralistas condenam nos outros, mas não renegam para si.

O que torna esta coletânea de textos ainda mais prazerosa é pensar que, para a maioria das pessoas, é mais cômodo pensar que práticas morais “desviantes” são apenas marginalizadas, restritas a espaços consagrados para os exercícios “perversos”.

O livro é de fato engraçado, mas de uma graça constrangedora. Não para rir. Coisas Engraçadas de não se Rir pode ser adquirido diretamente com o autor e tem ilustrações de Guabiras.

Vale a pena conferir.

 

Para adquirir o livro:

livrodoray@gmail.com (e-mail do autor e chave-PIX para pagamento e envio do endereço para entrega)




 

“O Riso Feito Faca: algumas considerações sobre ‘Coisas Engraçadas de não se Rir’, de Raymundo Netto, por Carlos Carvalho


Para ver de perto, clique na imagem

Atores e atrizes costumam dizer que é muito mais fácil fazer chorar do que rir. Eles estão certos, pois fazer rir é uma arte que exige de todos aqueles que a exercem uma maestria que beira um dom, uma dádiva.

No campo da literatura, o riso costuma exigir muito mais dos autores do que as construções semânticas que podem causar no leitor sensações de dor, nojo, indignação e cortes na carne de fazer espirrar sangue. E é esse tipo de riso que observamos nos contos “tortos” de Raymundo Netto, em seu Coisas engraçadas de não se rir (2024) que, feito faca, “cortam a carne” de leitoras e leitores, tirando-os de suas zonas de conforto e jogando-lhes na cara situações engraçadas de rir, mas também de não se rir.

Coisas engraçadas de não se rir foi publicado no ano de 2024, com revisão de Mayara Freitas, projeto gráfico de Dhara Sena, Raymundo Netto e Welton Travassos, com ilustrações de Guabiras e design de Welton Travassos.  

O livro é constituído de 43 contos, sendo alguns mais breves que outros, mas que seguem de muito próximo aquilo que nos diz Edgar Allan Poe (1809 - 1849) em seu ensaio Filosofia da composição, de 1846, ou seja, observam as questões relativas ao tamanho, unidade de efeito e método lógico. É claro que os escritores não têm a obrigação de saber ou seguir tais direcionamentos, mas escrever da melhor maneira que conseguir, colocando no papel ou na tela aquilo que desejam, pois, como muito bem nos diz Sérgio Sant’Anna (2021:157): “o conto não existe”. Assim, não deve ser preocupação do contista dizer “o conto é isso”, “o conto é aquilo”.

Mick Jagger, acrescenta Sant’Anna, não fala sobre as coisas: ele é a própria coisa acontecendo. E assim, mais importante que qualquer teorização, é fazer literatura que esteja sempre na vanguarda e em conexão com a realidade que insiste em esmagar o ser humano. No entanto, ainda conforme Sant’Anna (2021:160), não adianta fazer arte de vanguarda se tiranizo as pessoas ao meu redor e colaboro com o fascismo. Fazer literatura também é sobre isso.

Raymundo Netto é sabedor dos caminhos que atravessam a cultura, a arte e a literatura. É um escritor consciente das mudanças e dos impactos que um bom texto pode causar. Logo, ao trançar suas narrativas com o fio do riso, Netto o faz com a semelhante habilidade com a qual Dalton Trevisan costurava seus contos com o fio da dor, da faca no coração. Assim, ao mergulhar nas histórias que compõem o livro de contos em questão, percebe-se nitidamente o domínio da narrativa curta que o autor de Os Acangapebas adquiriu ao longo do tempo.

Percebe-se, a partir de Coisas engraçadas de não se rir, um salto qualitativo na sua escrita, que o coloca entre os melhores autores cearenses contemporâneos. Por ser cronista (leiam do autor o livro Crônicas Absurdas de Segunda), Raymundo Netto traz para o seu conto as minúcias que os olhos treinados do cronista e do jornalista (o autor também é jornalista) conseguem capturar de maneira leve, objetiva e sutil, fazendo com que suas histórias pareçam aquelas conversas que ainda se dão a bordo de cadeiras na calçada.  

E é usando de sua habilidade enquanto escritor, que Raymundo Netto recorre ao riso como o élan necessário para costurar as narrativas do seu mais recente trabalho. Dessa forma, em Coisas engraçadas de não se rir, o riso se apresenta como forma de subversão e corta tal qual a faca só lâmina de João Cabral de Melo Neto, ou como na releitura de A palo seco, de Belchior, quando diz: “e eu quero é que esse canto torto/feito faca corte a carne de vocês”.

A subversão é, conforme o dicionário Aurélio (2010), o ato ou o efeito de subverter (-se). É ainda a insubordinação às leis ou às autoridades constituídas. É a revolta contra elas. É a destruição, a transformação da ordem política, social e econômica estabelecida. É uma revolução. Assim sendo, o verbo subverter abriga o sentido de voltar de baixo para cima; revolver, agitar e, entre outros, revolucionar. E é também pra isso que serve a literatura.

No conto de Raymundo Netto, essa subversão se dá aos olhos do leitor quando o autor se utiliza do cômico e do riso, unindo tudo aquilo a que se propõe na construção dos contos que compõem o livro. Assim sendo, é preciso lembrar que conforme Henri Bergson (1859 - 1941), em seu livro O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade, de 1899, que apenas o humano é cômico. Uma paisagem, afirma ele, poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; mas nunca será risível. Bergson lembra que é bastante comum ouvirmos a expressão “o homem é o único animal que sabe rir”. Para ele, essa expressão ficaria mais completa se a ela fosse acrescido outra que diz “um animal que faz rir”. E assim teríamos: O homem é o único animal que ri e que faz rir.

Ainda conforme Bergson, o riso é sempre “o riso de um grupo” e “tem uma função social”. Mas afinal, o que devemos compreender pela palavra “riso”? O riso consiste no ato ou efeito de rir. Também pode ser compreendido como alegria, satisfação ou coisa ridícula. Rir também significa zombar ou ridicularizar. Destarte, o riso é por natureza, subversivo, ou seja, é algo capaz de transformar ou destruir o que está posto, estabelecido.

Por muito tempo na história da humanidade, o riso foi considerado pecado, coisa do diabo. Isso ocorria, certamente, pela capacidade que tem o riso de ridicularizar; subvertendo valores estabelecidos e tidos como imutáveis. Assim sendo, o riso foi por muito tempo considerado não apenas um pecado mortal, mas imoral e destruidor do Estado e da fé, por exemplo. Dessa forma, o riso foi censurado, sendo punidos com a morte todos aqueles que ousassem desafiar a Inquisição.

Lembremos, por exemplo, das passagens nas quais os monges copistas são assassinados no livro O nome da rosa (1980), de Umberto Eco por, teoricamente estarem rindo a partir da leitura que faziam do livro A comédia, supostamente o segundo livro da Poética, escrito por Aristóteles.  Em tempos outros, sob sistemas autoritários, o riso continuou a ser perseguido e criminalizado. Muitos artistas, no entanto, utilizaram sua arte para fazer frente aos desmandos das elites políticas, ao arcaísmo da sociedade, bem como ao Estado e seus aparelhos ideológicos constituídos. Assim sendo, é possível afirmar que o autor de Coisas engraçadas de não se rir se utiliza do riso como forma de subverter determinados valores socioculturais observáveis no espaço e no tempo da produção dos seus contos. O riso, tal como está dito no livro de Umberto Eco, mata o temor.

E é por essa razão, entre inúmeras outras, que Coisas engraçadas de não se rir, de Raymundo Netto, mostra-se em consonância com seu tempo por seu caráter universal, contestatório e atemporal, e assim o será enquanto houver alguém que, mesmo pelos cantos da boca, insista em rir do que quer que seja.

 

Carlos Carvalho

Doutor em Linguística Aplicada,  

professor na Universidade Estadual do Ceará (Uece)

e cronista nas horas vagas.


 

"Coisas Engraçadas de Não Se Rir", por Bruno Paulino


Comecei a ler Coisas Engraçadas de Não Se Rir, novo livro do grande cronista Raymundo Netto — para tentar descansar um pouco a cabeça da correria louca dos últimos dias.

O livro reúne várias histórias curtas, crônicas bem leves, algumas líricas e outras cômicas. Estou deliciando-me com seu estilo bem simples — mas exaustivamente laborado, pois preciso, enxuto. Adoro a sutileza, o fino da ironia, e a aparente “despretensão” com que Raymundo Netto escreve e brinca com as palavras.

Dei muita risada com a crônica "Literatura Cearense versus Brad Pitt".
Raymundo Netto tem olhos abertos para o mais trivial do cotidiano — o absurdo e o rotineiro que ninguém enxerga ele consegue ver e transformar numa sátira bem acabada, — coisa de poeta.

Escrito com “a pena da galhofa” e um tantinho das tintas da “melancolia” e do melodrama, acho que o livro, por fim, diverte a todos.

Lembrei de Nietzsche, quando no seu Ecce Homo, assertivamente recomendou: “Ridendo dicere severum”.

Sou fã de carteirinha do cronista Raymundo Netto.

 

Bruno Paulino

Poeta, cronista, contista, cordelista, pesquisador e professor.



 

"A Diferença entre o Caramujo e o Caracol na Trilha Humana" (sobre o e-book de Marília Lovatel), de Raymundo Netto


“Um livro sobre muros que encarceram letras, sobre uma parede que separa o passado do futuro.”

 

O Despojo do Caramujo: breve romance de despedida, de Marília Lovatel, como não poderia deixar de ser, é um livro sensível e reflexivo. A voz empregada pela autora se assemelha à poética de Salvaterra: breve romance de coragem, e, como a primeira, prende o(a) leitor(a) ao descortinar a narrativa lentamente, em breves capítulos, às vezes com máximas, pistas que surgem como pausas para tomar fôlego, e descobrirmos as personagens – quatro muito bem construídas e que emocionam por sua humanidade e atualidade – e as suas dores, numa técnica que, me parece, a autora desenvolveu e se encontrou, não à toa ter sido com ela que foi a ganhadora do Prêmio Barco a Vapor, um dos maiores do país.

Marília é portadora de um currículo literário bem-sucedido e invejável, razão pela qual não me espantaria ser ela a ganhadora do Prêmio Kindle de Literatura 2025, com o qual concorre com o seu O Despojo do Caramujo. Deveria.

A concha pode até estar vazia, mas o livro, seu primeiro e-book publicado pela Kindle na plataforma da Amazon, é absolutamente CHEIO.

Recomendo demais a sua leitura.

Leia você também, acessando e deixando a sua avaliação em:

https://www.amazon.com.br/despojo-caramujo-breve-romance-despedida-ebook/dp/B0FPJJSGPQ/ref=sr_1_291?dib=eyJ2IjoiMSJ9.6wmvCEyOCfw-wHvKpf26lREQn79XnBPD-4IsnNJActKzVVx_WrFPkPaygf0lhmCQfyxiLVp5v0kXPoaGYwRMDQ.HpnYlfCPuDZyX0FDEAJRyyyRXzOTlAa0sz18_vSrF1k&dib_tag=se&qid=1757418895&refinements=p_n_publication_date%3A5560469011&rnid=5560468011&s=digital-text&sr=1-291&xpid=MV0djkF-f-Aof

 


 

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

"O Popular Luis Fernando Verissimo", de Raymundo Netto para O POVO


Foto: Sylvio Sirangelo


O leitor ou a leitora de Luis Fernando Verissimo quando assiste a suas entrevistas, não importa o período, nunca o encontra.

Há sempre ali um “outro” homem com o olhar quase alheio e a fala tão plácida a dar a entender um certo desinteresse em esticar a conversa. Ao contrário do outro, as respostas, histórias e descrições se repetem muito frequentemente, sem momentos de arrebatamento, de movimentos ligeiros de mãos e braços, nenhuma súbita gargalhada, nem piadas, nada que evidencie o Verissimo do papel, aquele que por mais de 50 anos chegou à casa de brasileiros, seja pelos seus escritos, cartuns/quadrinhos ou adaptações para programas de TV ou cinema, divertindo, encantando e despertando reflexões sobre as coisas das mais desimportantes às mais existenciais.

Diante dessa minha “incomodação”, esse mistério que nem o irrequieto detetive Ed Mort poderia resolver, voltei à crônica “O Popular”, aquela que intitula o seu primeiro livro – com o curioso subtítulo “crônicas ou coisa parecida” –, publicado na década de 1970.

Verissimo nos conta dessa pessoa que tem “uma fatal curiosidade pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo insignificante”, aquela cujo “habitat natural é à margem dos acontecimentos”. Assim o descreve: “um sujeito com as mãos nos bolsos e um embrulho embaixo do braço”.

Não importa o que esteja acontecendo no mundo, esse tal sujeito pode ir, por exemplo, comprar alguma coisa no armazém e na volta parar e dar uma espiadinha num território de guerra, assalto ao banco ou numa liquidação em loja de artigos femininos. E não, não há perigo algum para ele, pois jamais será vítima de nada, como também nunca será ele o entrevistado. Os transeuntes, os passantes, esses sim, mas o Popular jamais!

Penso que o cronista é esse Popular, um fino e inviolável observador das coisas e das gentes. Mas essa percepção em si, por mais aguçada e minuciosa que seja, não nos impactaria se não fosse registrada em papel. Um fato que se deu para Verissimo aos 33 anos, por obrigação, pela necessidade pecuniária de sobrevivência da família – estava casado com a dedicada e gentil Lúcia Helena, sua guardiã, e tinha uma primeira filha, hoje, além de jornalista, roteirista e tradutora, também escritora: Fernanda Verissimo.

Nos anos seguintes ao “O Popular”, ocupando espaços em grandes periódicos do país, além de mais dois filhos – Mariana e Pedro –, acumulou uma produção extraordinária, como poucos, atingindo em cheio os seus leitores, e por eles sendo reconhecido pela brilhante agudeza, ironia e diversidade de seu humor e pela revelação de nossa risível sociedade (des)humana, promovendo e consolidando a grandeza do gênero crônica, um dos mais democráticos – cabe tudo nele – e o mais brasileiro de todos.

Porém, a vida, conforme o cronista, é apenas “um breve hiato de perplexidade entre dois vazios.” A morte, essa “titica”, é uma das únicas certezas da vida. Outra delas, assim penso eu, é a nossa incapacidade de aceitá-la plenamente.

Numa noite verissimas dessas, uma de suas “cobras” – a combinação do seu gosto por quadrinhos com suas limitações como desenhista, dizia – pergunta: “Será que há vida após a morte?

A segunda cobra responde: “Parece que sim, mas tem que ter pistolão!”

E, afinal, meu querido Verissimo, vai nos deixar sem saber o que o Popular traz nesse embrulho?

 





 

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

"A 'Subsequência' de Weaver Lima", por Raymundo Netto para O POVO


“A linguagem das Histórias em Quadrinhos trabalha com o tempo”. Com essa frase, o artista multimídia e arte educador Weaver Lima, curador da mostra “Subsequência”, com sede na Caixa Cultural, inicia e conclui a sua apresentação curatorial.  Projetou-me à mente a figura misteriosa de Ouroboros, a serpente – ou dragão – que tenta comer a sua própria cauda. Essa simbologia de origem incerta, encontrada em culturas e tradições, carrega diversos significados, entre eles, a natureza cíclica da existência, as interconexões, mas também a renovação e a transformação de tudo e de todas as coisas.

O título da mostra é intrigante. Subsequência é uma palavra encontrada na matemática e refere-se a “uma nova sequência formada pela seleção de alguns elementos da sequência original, mantendo a ordem inicial desses elementos”. Nas artes visuais, subsequência pode se referir a uma sequência de imagens que se desenvolvem ao longo do tempo. A palavra em si, vai além, naquilo que vem depois, como a consequência da sequência, algo que a sucede. Nos quadrinhos, por exemplo, seria algo que os transcendem, que rompem as suas “fronteiras” ou limites. Aliás, é preciso lembrar que, por definição, o gênero híbrido Histórias em Quadrinhos é uma sequência de imagens e/ou palavras utilizadas para, grosso modo, contar uma história. Esses elementos estão em sequência para que essa narrativa visual possa ser lida. Daí a denominação de “arte sequencial” aos quadrinhos. Contudo, conhecendo o espírito inconformista e iconoclasta do Weaver, imaginei que não encontraria ali nada parecido com Disney, Maurício e muito menos mangás. Estava certo: nada ali se prendia aos que vimos cotidianamente em revistarias. Os homenageados da mostra eram aqueles que abriam a trilha expográfica do Weaver: Marcus Francisco (falecido em 1980), autor do “TIPO blocomagazine” (ali, alguns originais inéditos e impressionantes da década de 1970), e o escultor, ilustrador, artista plástico, muralista, multipremiado e octogenário Hélio Rola, autor de quadrinhos non sense em “Rock’ndRolla and Leviana” (dele, algumas obras em quadrinhos em uma perspectiva bastante singular, sendo a maioria sem título). Ao todo, nove artistas cearenses de distintas gerações, técnicas e estilos, cuja produção transita entre artes visuais e quadrinhos: Felipe Kehdi (mestre em Ilustração e Quadrinhos pela Elisava, em Barcelona, Espanha, com duas animações, uma na parede e a outra no piso, proporcionando uma experiência de grande ludicidade e comunicação, além de leituras múltiplas), Camila Sombra (“Roupa Suja” (óleo e acrílica sobre tela) é incrível, assim como a arte ilustrada na cama e em travesseiros de sua instalação), Juliana Siebra (que abrigou um espaço com um colchão, encimado pela frase em neón: “Preciso de Mais tempo”, e ladeado por dezenas de ampulhetas, uma mesa com carimbos de estrelas, um sketchbook com desenhos da artista, uma linda HQ em P&B, “Sala de Comando”, na prateleira e diversas folhas em pergaminho que caíam do teto – como se o céu desabasse sobre ela, a personagem – com 10.958 estrelas desenhadas, uma por cada dia de sua existência), as gêmeas “Uinverso” (uma telha de vidro ou acrílico na qual eram projetadas imagens com cores e texturas diferentes, conferindo um certo movimento à peça), Érica R. (peças em bordado e crochê – e um “espelho invertido”), Luci Sacoleira (belíssimas capas pintadas da “Revista Caderno”, uma para cada mês do ano, e ilustrações que tomavam as colunas do salão) e Marissa Noana (uma representação dos povos originários, com grande sensibilidade).

Para mim, ficou claro que uma das propostas dessa excelente exposição era justamente revelar que existem outras formas experimentalistas ou não de se contar histórias graficamente. Que é preciso fazer uso da criatividade para a geração de novas possibilidades para essa linguagem, rompendo tabus estilísticos e formais, padrões convencionais da indústria do consumo de massa, muitas vezes focadas apenas no entretenimento puro e besta, mas que não despertam a reflexão ou a crítica e não têm compromisso com a evolução dessa arte. A “leitura” que pudemos fazer nesses quadrinhos pintados, pendurados ou projetados nas paredes, no piso, nas instalações é impactante, provando que devemos explorar mais esses espaços de novas “leituras”, ampliando o nosso repertório criativo e, segundo Fábio Zimbres, “preservando a surpresa da criação”.

Só lamento não ter escrito isso antes da exposição findar...