Foto: Aurélio Alves (para O POVO)
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Dentre as melhores páginas de Nelson Rodrigues estão as crônicas publicadas no
jornal Correio da Manhã, entre
fevereiro e maio de 1967, mais tarde reunidas na coletânea A menina sem estrela (hoje encontradas nos sebos em três edições diferentes);
dessa seleta o escritor, no seu estilo exagerado e trágico, tratou em duas peças
da Gripe Espanhola de 1918, nos seguintes (e terríveis) termos: “Morria-se em massa.
E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros
ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo
a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável
para os outros defuntos”, que – mesmo bem antes da pandemia do Covid-19 – nos
deixava assustados, ainda que fatos do passado tenha o poder de amenizar-se aos
poucos na memória coletiva, mas os poderes hiperbólicos (e hipnóticos) das palavras
do autor de “Vestido de Noiva” não nos permite esquecer aquele terrível drama quando
o recordamos 101 anos depois: “...vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo
e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho.
Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia
alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: ‘Aqui tem um! Aqui tem um!’.
E, então, a carroça, ou o caminhão parava. O cadáver era atirado em cima dos outros.
Ninguém chorando ninguém. E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores.
Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros
acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes”.
Porém o que nos deixa mais estupefatos
após a leitura dessas sangrentas linhas sobre a peste de 1918 vem por contraste
quando nos deparamos com a crônica dedicada ao carnaval do Rio de Janeiro de
1919 (lembremos que dos estimados 35.000 mortos no Brasil, o Rio “contribuiu”
com 12.700 óbitos, nessa que é considerada a pior pandemia da história, que
dizimou cerca de 5% da população mundial): “Toda a nossa íntima estrutura fora
tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída. (...) A espanhola trouxera no
ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a
pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas. (...) O
comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal
ou que outro nome tenha. Psicologicamente, ainda não ocorrera para nós a
abertura dos portos. (...) E tudo explodiu no sábado de Carnaval. (...) Desde
as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que
contaminou toda a cidade. Eram os mortos da espanhola — e tão humilhados e tão
ofendidos — que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias. Nada mais
arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam
uma modinha tremenda. Eis alguns versos: ‘Na minha casa não racha lenha./Na
minha racha, na minha racha./Na minha casa não falta água./Na minha abunda’.
etc. etc. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias; e iam assim de paroxismo
em paroxismo.”
Lembrei-me, imediatamente, dessas crônicas
(e da euforia suicida do carnaval de 1919) quando vi no jornal O POVO de
domingo, 26 de julho de 2020, a inacreditável foto da aglomeração no trecho da
Praia de Iracema conhecido como Praia dos
Crushes, em Fortaleza, logo após a liberação parcial da quarentena.
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