Solano chegava em sua casa, exatamente no mesmo horário de todos os dias.
Maria, a nova empregada, o recebeu com um enfado de
sempre, à varanda, ao juntar mais folhas nos pequenos degraus:
— Doutor, uma pessoa veio aqui procurando o dono da
casa.
— Uma pessoa, é? Quem, Maria?
Estranhava, enquanto conferia os envelopes de contas
que coletara na caixa de correio. Afinal, não era de receber visitas. Tinha
poucos, quase nenhum, amigos. Os parentes não via há tempos. Na verdade, ninguém
em absoluto o procurava em casa, onde residia no sossego de sua quartelada solidão.
— Não sei, doutor. Eu disse que o senhor não tava. Ela
falou que era importante, que o senhor sabia e coisa e tal, e ficou aí, um
tempão, esperando em pé no jardim.
— Não disse o que queria? Você não deu meu número de
telefone? Não falou que horas eu chegaria?
A mulher, quase como confusa — já não fosse de tão poucas
ideias —, deu-lhe as costas largas, levando para dentro o saco de lixo na mão:
— Não conheço... Não falo nada, não, doutor. Deus me
livre!
Solano irritou-se com a ignorância, mas, a princípio,
não deu maior interesse. Durante a noite, entretanto, pensou na tal
"pessoa". Quem seria? O que queria? E eu sabia de quê? "Bobagem!",
concluía, afinal, antes de dormir.
Todavia, no dia seguinte, no café, perguntou para Maria:
— E ela não deixou nenhum bilhete?
— Quem?
— A pessoa que me procurou ontem.
— Não.
— Você não me disse... era um homem ou uma mulher?
— Mulher.
Por um motivo qualquer, o fato de ela ser uma mulher o
deixou ainda mais curioso:
— Era bonita?
— Quem?
— A mulher que me procurou ontem, Maria.
A doméstica o olhou aborrecida, largou a louça na pia, pegou
a vassoura, a pá e foi-se ríspida:
— Eu sei lá!
No decorrer do dia, o pensamento de Solano não o
permitiu trabalhar direito. Desconcentrava-se de instante em instante. Pensava
na mulher — era uma mulher — misteriosa. Poderia ser Fulana, que nunca mais
vira, um antigo amor... Não, ela não sabia onde estava morando hoje, e, ouvira
dizer que casara. Quem sabe a Sicrana? Uma amiga querida, há tempos residindo
na França... Não, se fosse ela teria ligado antes ou mandado alguma mensagem. Ainda
se falavam. Ou Beltrana? Um relacionamento recente, meio enrolado. Sabe-se lá
se não decidira revê-lo, matar saudades, pedir-lhe desculpas pelos
desaforos. Não, ela não iria para sua casa naquele horário, pois sabia que estaria
no escritório. O procuraria lá, certamente.
O certo é que aquela dúvida estranhamente o consumia e
passou a consultar a lista de nomes em sua agenda, na procura de algum, em especial. Olhava amiúde o seu correio eletrônico.
Esperava lembrar de alguém, de algum compromisso esquivo ou mesmo qualquer
aceno mais direto, como "Estive na sua casa ontem, Solano" ou coisa
parecida.
Mais tarde, ao voltar, tornou a perguntar:
— Maria, e como ela era?
— Quem?
— A mulher, criatura... a que me procurou anteontem!
Cor do cabelo, da pele, dos olhos? Gorda ou magra? Alta, baixa?...
— Ave Maria, doutor, eu lá presto atenção nessas
coisas... Lembro não.
Teve ímpeto de despedir a preguiçosa na hora, já não estava
lá muito satisfeito com seus serviços, mas perderia a única referência daquela
visita misteriosa.
— Certo, Maria, tudo bem. Mas se lembrar de alguma
coisa, qualquer coisa, você me diz, está certo assim?
Naquele final de semana, Solano decidira não sair de
casa de jeito nenhum. Quem sabe, justamente por ser um final de semana, a tal
pessoa poderia aparecer novamente? Pediu para a Maria caprichar na limpeza, o
que não fez muita diferença, e transpôs o dia a olhar a janela, impaciente, ver
as pessoas cruzando a calçada de seu jardim sem muros e, alucinando, quando
ouvia a sirene do portão, o latido de cachorro ou a campanhia do telefone:
— É ela, Maria? É ela?
— Ela, quem?
Na segunda, à noite, após o jantar, apareceu com uma
caixa de sapatos debaixo do braço e pediu que Maria, a muito custo e
desconfiança, sentasse com ele no sofá:
— Maria, minha querida, vamos fazer o seguinte: vou lhe
mostrar algumas fotos de amigas e eu queria que você prestasse bem atenção no
rosto delas. Acho que aquela mulher, lembra, aquela... pode ser uma delas...
Nada. Maria olhava com um desinteresse notável, mal
pegando nas fotografias, ainda acusando a vista ruim e se perdendo em perguntas
bobas:
— Maria, quer saber? Olha, vá para o diabo que te
carregue. Quero mais você aqui, não, sua imprestável. Pegue as suas coisas e rua!
Maria levantou-se com o mesmo olhar a meio-pau e disse:
— O senhor vai me pagar hoje, doutor? Então, eu vou.
Solano pagou e bateu-lhe a porta solene na cara.
Nos dias que se seguiram, porém, foi um tormento.
Solano mal dormia e se quedou numa ansiedade abismal. No trabalho, não rendia
mais nada. Os colegas o percebiam desatento e os superiores já o advertiam. Espremia
a mente na busca de mil rostos. "Quem seria aquela mulher, meu Deus? Quem?"
Ligava para uma ou para outra: "Foi você? Tem certeza que não? Não está
mentindo para mim, está?"
Ouvia horrores, telefones batiam na sua cara, rompia pactos
de silêncios e desafetos choravam mágoas eternas a negar perdões jamais concedidos.
E nada. Nada!
Possesso, pôs-se a crer que aquela mulher, já uma
sombra a lhe turvar a cabeça, poderia
voltar a qualquer momento e a casa estaria fechada. Nem a inútil da Maria, a
única que poderia reconhecê-la, estaria por lá.
Assim, quando voltava do serviço, ele, que nunca foi dado
a amizade com vizinhos, passou a perturbá-los, a perguntar se viram algum
movimento estranho em torno de seu jardim: "Alguém, quem sabe uma
mulher..." Eles estranhavam a presença daquele a quem chamavam de
"eremita", mas tampouco viram nada. Ainda o interrogavam, apenas por uma
curiosidade fútil particular:
— E roubaram alguma coisa do senhor?
Sim, o seu sossego.
Transtornado, chorando como uma menina, pegou o carro e
foi procurar a Maria numa assentamento distante. Quando chegou, quase de
madrugada, a trouxe de volta, após enchê-la com milhões de pedidos de desculpas
e promessas de vantagens salariais e, mesmo assim, só o conseguiu pois a
família de Maria não suportava conviver com aquele mau-humor e preguiça insuperáveis dela.
— Mariazinha, vou lhe pedir só mais um favor. Se essa
mulher aparecer...
— Que mulher?
— Aquela. Aquela. Aquela, Maria, lembra? Aquela do
jardim... Pois, então, se ela aparecer, a convide para entrar, ofereça um suco,
um café, biscoitos, mas não a deixe, pelo amor de Deus, ir embora até eu chegar,
está bem? Tranque a porta, se preciso! Tranque, Maria... Mas não a deixe sair
de jeito nenhum...
— Eita, doutor, cruz credo! — benzia-se a mulher, que
nunca entendeu aquele patrão, para ela, completamente maluco.
Dias e dias e nada da mulher nem de ninguém.
Solano, como esperado, surtou. Foi convidado a adiantar
as férias, procurar assistência médica, apoio profissional. E, se isso não
fosse suficiente, lamentavam.
Não saía mais do quarto, não se alimentava direito, não
conseguia ver a luz do dia. Era fato: ela, aquela mulher ironicamente sem
rosto, lhe tomara de sua vontade de viver. Na mente, dormindo ou acordado,
apenas uma torrente de lembranças vazias. Tudo lhe era acabado. Nada mais tinha
qualquer valor, sentido ou esperança. Acreditava, por algum deslocamento
interior de consciência, sabe-se lá, que aquele momento a ele negado por um
desencontro banal poderia ter sido o maior acontecimento, o grande ato que
justificaria a sua vida inteira de apatias e fracassos. Em delírio febril, clamava por
"ela" às noites inteiras, numa paixão inesgotável e ardente, como
poucas, mesmo das grandes novelas ou romances.
Até a Maria, em sua frieza de estátua, começou
sentir uma pontinha de pena dele. Numa das entradas em seu quarto para levar
uma canja, ouviu o lamento:
— Ai, Maria... Ah, que eu não vou suportar... Eu quero
morrer! Quero morrer!
— Doutor, e se o senhor morrer, quem é que vai me pagar
esse mês?
***
Era uma tarde fresca de verão. Um desempregado Solano
estava irreconhecível, magro, envelhecido, a barba por fazer. Sentado nos
degraus de sua varanda, assistia impassível a uma rabugenta Maria a catar as
folhas que escapavam-lhe as mãos num ziguezagueado na calçada.
Então, quando, na casa da frente, um casal alegre descia
ligeiro os degraus da varanda, acompanhado por pessoas a brindar a felicidade
com uma chuvinha de arroz mixuruca. A moça trazia o talhe bonito de rendas brancas.
Os cabelos cor de trigo sentavam em um coque de pequenos fios em desalinho. Os
olhos formavam pingentes cintilantes e o seu sorriso, certamente, era a coisa
mais generosa e sincera que Solano já vira no mundo.
Foi quando percebeu que a doméstica acenava desajeitada
para a noiva. Depois, num sorriso quase macabro, olhou para Solano e, com o
indicador em riste, acusou:
— Doutor, é ela... Aquela!
Não resisti e li tudo. Assim, não me sobra tempo sequer para jantar. Ai, ai, meu adorável Bruxo das Letras hipnotiza-me de tal forma que, primeiro, leio, tudo oque ele escreve. O resto fica para... Depois!
ResponderExcluir"Ocê" é demais"!
Abraço grande, escritora e amiga Lucineide.
ExcluirMaravilhoso! Somente o Solano estava mais curioso do que eu para saber quem era a tal mulher (risos). Parabéns, Raymundo Netto!
ExcluirLenice, o Solano e eu, diga-se de passagem...
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