domingo, 20 de maio de 2018

"Dolorosa", conto de Raymundo Netto para O POVO



A sisuda e determinada viuvez de Dolorosa era de causar espanto até no falecido.
Não fosse para comprar o pão matutino, nunca de sair às ruas, de oferecer-se em janela e muito menos de se desocupar em calçada. Durante o dia, flagrada em oração diante do bem cuidado oratório, onde descansavam aromáticas flores do campo em torno do derradeiro retrato de seu inesquecível amor. Depois, por horas, calava a respiração na imagem do morto, impressa ainda mais no peito em luto. Assegurava cumprir a clausura em vida, pois se dava por jurada ao ser amado, aquele que, dizia, só lhe contrariara uma única vez: na prematura morte!
Assistindo àquele martírio, imploravam os amigos: “Tão moça. Vai, mulher, viva!”. Para Dolorosa, todavia, amor que o tempo consome não é amor. O verdadeiro, único e exclusivo amor, herança maior do Deus que um dia os unira, sobrepujava a tudo, inclusive, a ausência física, merecendo ele toda e qualquer renúncia. Realmente era esse seu pensamento. Uma agonia, porém, a enredara, justo na solidão das eternas noites solitárias, quando suores e desejos eram contidos violentamente a pedradas de vergonha pela casta consciência. Sim, vivia ela um dilema secreto: o despertar do querer por outro homem.
João era um jovem auxiliar de padaria, bem mais moço que Dolorosa. Há meses, naquele estabelecimento, um descuido: trocaram olhares, e, num desses, Dolorosa fraquejou. No momento não sabia, mas João já a observava. Soube ele daquela viuvez defendida a todo custo. Isso o atraía profundamente. Também ele, às noites, em seu catre cheirando a farinha, se via perdido em lençol e no domínio da branquidão do corpo intacto daquela mulher. Imaginava ela entregue e em delírios, por tanto vigor reprimido. Naquelas manhãs, mesmo quando apartados pela lonjura incalculável do balcão, lia, escrito nos olhos divinos dela, a recusa ao toque alheio. Vê-la, sentir a polpa dos seus dedos ao receber os trocados do pão, buscá-la no interior das janelas da casa escura, passaram a ser as suas motivações de existir nesse mundo.
Um dia, Dolorosa despertou lívida e mais cedo que o de costume. Aguardou a abertura das portas de ferro da padaria. Correu ao longo do balcão e dirigiu-se ao rapaz. Entregou-lhe um dinheiro: “Moço, preciso ir à rua. Você poderia levar meus pães mais tarde em minha casa?”
João, surpreso, não recusaria. Assim, ao vê-la passar de volta, imediatamente enrolou os pães e plantou-se à sua porta, cuja soleira, há anos, não cruzava um coração masculino.
Dolorosa o aguardava. Ávida, abriu a porta e, por instantes, os dois permaneceram parados e mudos. O que João não sabia é que ela não o via exatamente como a vida o pintara, mas, sim, um quadro mórbido e repugnante. O corpo em ruínas e farrapos. Os ossos e traços de músculos revelados por entre carnes escuras carcomidas em vermes. A caveira sorridente a denunciar olhos amarelecidos, a língua negra e seca. Apenas os restos da imagem do homem que um dia o marido, e não o João, foi.
Depois, cerrada a porta, a respiração de ambos abrasava a casa de tal modo que os espelhos da sala embaçaram, recusando assistir ao ritual feroz e lascivo daqueles amantes que exalavam, no ardor do suor e do amor, o perfume frio e acolhedor da mais fiel sepultura.

terça-feira, 8 de maio de 2018

Uane 35 anos: Educação a Distância, mas sem Distância"


UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (Uane)
35 anos para todo o Brasil!

A Universidade Aberta do Nordeste (Uane) foi criada em 1983, quando a Universidade de Brasília (UnB) disseminou a experiência de educação a distância baseada no modelo da Open University de Londres. A sua primeira aula, do curso “O que é Política”, com apoio da UnB e da Superintendência de Recursos Humanos do Governo do Estado do Ceará, foi encartada em jornal em 8 de maio de 1983.
A Fundação Demócrito Rocha, instituída dois anos depois, assumiu o programa e, desde então, juntamente com vinte universidades brasileiras viabilizaram o projeto de cursos de extensão universitária a distância.
Até 1989, a Fundação Demócrito Rocha seria a única instituição privada não universitária no país a ser convidada para integrar a Rede Brasileira de Educação Superior Aberta e a Distância (Read), na época, recém-criada em Brasília por um circuito de universidades públicas e privadas, sob os auspícios do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), considerando a Uane “como a maior e mais importante experiência de educação superior não presencial, indicando-a como modelo não só para o resto do país, como também para outros países da América Latina que dispõem de grandes jornais e de um moderno sistema de radiodifusão.” (O POVO, 4 de novembro de 1989), sendo recomendada ao Poder Público e à iniciativa privada o apoio a seus programas educacionais, pela Secretaria do Ensino Superior do Ministério da Educação, por se tratar de “uma experiência pioneira, sem similar no Brasil” (Parecer MEC/SESU nº 263/88).
 Em 1º de novembro de 1989, a Fundação Demócrito Rocha assinou convênio com a Universidade de Brasília (UnB) para o desenvolvimento de um programa de ensino superior a distância no Nordeste por meio da Uane. Pelos termos do convênio, a UnB produziria cursos de extensão universitária, responsabilizando-se pela avaliação e certificação, enquanto a Uane se encarregaria da ampla difusão do Programa em Educação Continuada em Ciência e Tecnologia desenvolvido pela UnB, Universidade de Campinas (Unicamp), Organização dos Estados Americanos (OEA) e Federação Nacional dos Engenheiros.
Inicialmente, a Uane se limitava à publicação dos cursos de extensão universitária editados pela UnB, mas logo criou os círculos de estudos dirigidos, tira-dúvidas por correspondência, biblioteca circulante, serviços de reembolso postal, entre outros recursos.
Em dezembro de 1996, o representante da Unesco no Brasil, Jorge Werthein, assinou convênio com a Fundação Demócrito Rocha de parceria em projetos de Educação, Cultura, Ciências Sociais, Exatas e Comunicação, figurando seu selo nos fascículos e demais materiais produzidos pela Uane até 2015.
Com a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) e o reconhecimento da educação a distância como modalidade de ensino, a Uane ampliou seu raio de atuação, passando a oferecer além dos cursos de extensão, cursos técnicos profissionalizantes de nível médio e cursos livres.
Historicamente, a Uane utiliza os mais diversos recursos e ferramentas pedagógicas síncronas e assíncronas de ensino-aprendizagem, no intuito de assegurar o máximo de aproveitamento do aluno e mitigar os índices comuns de evasão, promovendo uma “educação a distância, mas sem distância”. Entre eles: material pedagógico impresso, em formato PDF e em html, videoaulas, radioaulas, webconferências, audiofascículos e ambiente virtual de aprendizagem (AVA), tutoria on-line, entre outros.
Os cursos, de forma geral, oferecidos pela Universidade Aberta do Nordeste (Uane/FDR) têm como objetivo primordial qualificar a população por meio da educação continuada e aberta desenvolvendo competências e habilidades articuladas com as premissas apontadas pela Unesco para a educação do século XXI, quais sejam: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver e aprender a ser.
Hoje, aos 35 anos e com muitos motivos e amigos para comemorar, a Uane, filiada a Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed), já ofereceu 68 cursos de extensão universitária, assistindo a mais de um milhão de alunos inscritos em todos os estados brasileiros, formou 24 turmas do curso Técnico em Secretaria Escolar e promoveu 11 cursos livres.
Seja você também mais um(a) amigo(a) da Uane/FDR. Fique com a gente:

ava.fdr.org.br



segunda-feira, 7 de maio de 2018

"Cebola Cortada", de Raymundo Netto para O POVO



“Nossa, você é mesmo dura como pedra!”
Casimiro achava incrível a enfática frieza da noiva. Desde que a conhecera, nunca de tê-la visto derramar uma única lágrima por nada nem por ninguém. Cria ele que, por ser mulher, deveria ela ser a porção sensível do casal. Mas não. Ao contrário, seria ele, no dizer do povo, uma manteiga derretida, enquanto Petra, a noiva, era inabalável: “Se é assim, o que fazer? Adianta chorar, adianta?”
Aquela objetividade o molestava miseravelmente. Dissertava: “O pranto feminino tem um quê de beleza, suavidade, ternura, como se a pedir ninho, proteção, segurança.” Petra ria e fazia pouco: “Não é por ser mulher que tenho que ser assim...” E não precisava mesmo. Contudo, até entre as amigas, era discriminada. Nunca de ser convidada como dama de honra, madrinha de casamento ou dos sobrinhos, nem de receber convite para leituras ou mesmo rodas de oração, simplesmente porque sabiam que Petra sequer umedeceria os olhos e muito menos expressaria qualquer emoção. Aliás, no próprio casamento, Petra não chorou. Todo mundo desmaiando, se descabelando, caindo em prantos mais sentidos e ela lá, devorando a mesa de doces às gargalhadas e enchendo deles os bolsos do paletó do marido que, sem graça, a censurava: “Meu bem, você não tem sentimentos, não?”
Alguns anos vieram, assim como os filhos, mas nenhuma lágrima se viu.
Não percebia ela, mas Casimiro vivia um colapso moral. Sentia-se pequeno e frágil comparado à esposa casca grossa. Os diálogos rarearam e, só assim, Petra se alertou. Decidiu salvar a relação e quis aprender a cozinhar para ele. Sim, até então, tudo que era consumido em casa vinha em quentinhas.
Um dia, estava à cozinha praticando a sua culinária de internet, quando começou a cortar cebolas. Não demorou muito para que estranhasse: e não é que estava chorando? Não acreditou. Enquanto esfregava o dorso da mão por sobre os olhos, ria-se de tanto chorar. Chorava pela primeira vez na vida e o fazia fartamente tal qual torneira arrebentada. “Que sensação maravilhosa!” Foi quando se deu conta do tempo que perdera. Daí, sem saber por que, lembrou-se do pai – morrera tão cedo... – a segurar a sua mãozinha de criança em um passeio na praça. Veio-lhe a saudade dos braços calorosos da mãe a lhe embalar o sono. As horas em cima do muro do colégio à espera dos pais e o medo de ser esquecida. A imagem do Eduardo, o vizinho que amara com todas as suas forças de adolescente, e que nunca lhe dera a menor bola. As amigas que lhe deram as costas. As discussões intermináveis com o marido. As primeiras doenças dos filhos... enfim, a sua vida inteira lhe era revelada naquelas cebolas.
Passou a se entregar a elas. Mal dormia pensando na hora de voltar à cozinha e iniciar o seu corte psicanalítico. A choradeira era tanta, que os filhos em zombaria lhe apontavam o dedo: “Mamãe está chorando! Mamãe está chorando!” E estava mesmo. Berrava e gemia revivendo as suas angústias e a desabafar pelos olhos. Aquilo, sentia, era libertador. E assim lhe foram todos os dias, até aquele em que, descuidosamente, ao remexer na roupa de lavanderia, encontrou um bilhete do dia anterior no bolso de Casimiro: “Meu amor, te espero. De hoje não passa! Beijos”. Logo a seguir, um endereço. Petra não acreditou: “Tanto esforço e o canalha se divertindo com outra? Que desaforado!” Indignada, trocou a roupa e se dirigiu ao covil daqueles amantes.
Não é preciso dizer como se deu estrondosa a sua entrada no apartamentinho. Casimiro e a amante, flagrados em lençóis, assistiam mudos à mulher de olhos coléricos a esbravejar. Petra então sacou da bolsa uma faca. O pânico tomou conta: “Não, querida, não faça isso... Não faça!” Em seguida, ela tirou da mesma bolsa uma enorme cebola, a maior de todas, e começou a cortá-la delirante frente ao casal estupefato, derramando por sobre eles as lágrimas de toda a sua vida.