segunda-feira, 26 de abril de 2021

"Trégua", de Raymundo Netto para O POVO

 


Deu-se que assim quedou-se sozinha numa quitinete antiga, inda dura de pagar, aos maus cuidados do esquecimento. Tentaria, mas voltar para casa dos pais, nem pensamento, nem coragem.

Angustiava-lhe, contudo, o banheiro. Às horas escuras, as baratas reinavam. Por vezes, queria usá-lo, mas à visão nojenta e aterradora de dezenas delas desistia-lhe a vontade. Percebia-lhes nas gretas da parede, nas frinchas do piso, no descuido do ralo, por todos os cantos. Saíam elas protegidas, ligeiras, com propriedade tradicional de uso.

No abrigo escuro da noite, no travesseiro, além do seu cheiro em tudo, podia ouvir centenas de terríveis patas a deslizar. Corriam, acasalavam-se. Mais baratas, cada vez mais. Pânico!

Ao banheiro, quando inevitável, sentava-se no aparelho: abraçada aos joelhos, encolhia as pernas e acompanhava de olhar para cima a lâmpada num estalar piscativa. Sabia, a qualquer momento de saltar pela porta nunca fechada. Angustiava-se a chorar. Arrependimento matasse, morria.

Pela manhã, acendia a luz do banho, e assim a deixava, por tempo, com suficiência para dominar o território, anunciar o tratado de paz: baratas e ela. Só depois se encorajaria ao chuveiro, sempre alerta ao descuido de uma ou de outra a apresentar-se sem respeito à suposta trégua.

Esforçava-se, por isso, a passar o dia fora: em busca do emprego, a merendar, a pretexto de visita, em casa de amigas, a encostar-se no banco da pracinha, a repensar a volta no último degrau da escada.

Na quitinete, quando vencida, olhava pela porta do banheiro e lá estavam as malditas.

Naquela noite, o calor sufocava. Sem banhar-se, sem o sono, enlouquecia.

Acendeu a luz. Alvoroço entre os insetos. Pacto rompido. Recuaram. Silêncio.

A moça se despiu. Pendurou as roupas em inalcançáveis. Passos inseguros a encostaram a um canto. Pronto. Imaginou: “a água as espanta!”

Molhava o corpo nu, alvo e belo, quando a lâmpada deu último estalo e caiu como a noite. Escuro absoluto. Silêncio quebrado. Centenas de patas. O derradeiro grito se ouviu, agonioso, devorado por seguinte silêncio a ecoar até a chegada de outra moça fugidiça a responder ao convite da tabuleta de frente do prédio: “Temos Vagas”.




terça-feira, 13 de abril de 2021

Documentário "A Fortaleza da Cultura", lançamento HOJE, 13 de abril no Canal FDR


O documentário em média-metragem A Fortaleza da Cultura (35 min), iniciativa da Fundação Demócrito Rocha em parceria com a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (SecultFOR), se une ao Álbum Fortaleza Ilustrada na celebração dos 295 anos da cidade de Fortaleza (13 de abril de 2021).

Segundo Raymundo Netto, criador do projeto e responsável pelo argumento, a produção tem como objetivo apresentar ao público as experiências coletivas criativas e criadoras existentes na cidade, despertando a reflexão e o debate sobre a cidade e seu campo e diversidade cultural, o nosso repertório urbano, a preservação de nossas identidades, as manifestações tradicionais populares, em especial, nos bairros da periferia, “os mais ricos espaços de criação de modos de vida e de experimentação estética”. (Fortaleza 2040).


Nele, convidamos alguns representantes da resistência de nossa cultura, riqueza transmitida de geração a geração, para nos apresentar o que fazem, como fazem e o que sentem, e a sua história, de onde veio e para aonde vai: mestre Zé Pio (Boi Ceará)/Barra do Ceará, mestre Kiliano (reisado Nossa Senhora de Fátima) /Barra do Ceará, Bruno Perdigão (Bloco Carnavalesco Luxo da Aldeia)/Mercado dos Pinhões, Zé Testinha (quadrilha Zé Testinha)/Vila União, Edmar Freitas (quadrilhas juninas)/Messejana), mestre Lula e mestra Karla (Capoeiristas da Associação Zumbi Capoeira)/Granja Portugal e Raimundo Praxedes e Janaína Baobá (Maracatu Nação Baobá)/Bela Vista.

Esperamos que apreciem, curtam e compartilhem essas histórias d’ A Fortaleza da Cultura.


Documentário A Fortaleza da Cultura

Lançamento no Canal FDR: 13 de abril de 2021 às 19h e reprise dias 24 e 28 de abril às 18h.

Canal FDR:  48.1 (aberta) | 23 (Multiplay) | 24 (Net) | 138 (Brisanet)

Endereço Virtual: https://youtu.be/lj0lrJUv3VY














 

segunda-feira, 12 de abril de 2021

"Ilusionista", de Raymundo Netto para OPOVO


 Samuel, quando veio ao mundo, em vez de chorar, clamava: “quero ser mágico!”

Assim, desde de a sua meninice, peregrinava por jornais, revistas, manuais e internet e colecionava álbuns de figurinhas em busca de conhecer e se aproximar dos grandes prestidigitadores de sua época. Nesse intuito, fugiria da casa paterna resolvido a apreender os segredos milenares e maravilhosos do ofício.

Debulhadas inúmeras folhinhas de parede, o adolescente se via perdido, sozinho e faminto num mundo de inimaginável realidade, até a chegada na cidade do famoso Gran Circo Internacional. Entusiasmado, Samuel se dirigiu a ele, enfrentando a fila de pretendentes a serviços temporários, pois faria qualquer coisa, desde que pudesse se aproximar de Eugênio Roudin, o mágico, o melhor de todos. 

Aceito, passava o dia varrendo e limpando a coxia, lustrando objetos e, no momento do espetáculo, carregando pesos, vendendo pipoca, milho verde, balões e brinquedos de néon. Ali, dessem qualquer espaço, Samuel não perdia a oportunidade de anunciar: “Seria o maior mágico do mundo!”

Às noites, no sereno frio da manta naftalínica, seduzido pelo vagalumear das estrelas perdidas na vastidão do cortinado negro, fantasiava o seu picadeiro de encantamentos.

Um dia, de tanto se enxerir, perturbar a todos e assediar Roudin, conseguiu arrancar dele a promessa de treiná-lo como seu assistente. Seu objetivo, enfim, se realizaria.

Porém, para a surpresa do mágico, apesar do entusiasmo e a declarada paixão pela arte do ilusionismo, quando Roudin pôs numa mesa uma série de objetos utilizados em seus truques, como baralho, cordas, lenços, flores artificiais, moedas, dados, argolas, entre outros, o rapaz se resumia a esfregar as mãos e fitá-los com uma ansiedade vazia de qualquer experiência. Roudin pensou: “Teria que começar do zero!”. Para piorar, quando o fez, tudo indicava que Samuel não tinha a menor aptidão para a coisa. Era desastrado, desconcentrado, uma tragédia: um coelho descia-lhe pela perna da calça, se enrolava em lenços coloridos, tropeçava em fios de náilon disparando papéis coloridos pelo colarinho, escapavam-lhe pombos pelas mangas da camisa, esparramavam-se copas e ouros pelo chão... nada haveria de dar certo.

Após várias tentativas e frustras recomendações, Roudin surtou. Era uma absoluta perda de tempo... do seu tempo! Já não entendia de onde o rapaz tirara aquela ideia de que um dia poderia ser mesmo um mágico de verdade. Era, isso, sim, um inútil e grandessíssimo pateta que jamais dominaria o universo da magia.

Os colegas de circo, sentados nas arquibancadas a admirar os ensaios do garoto, nunca haviam visto o elegante mágico perder as estribeiras. E alguns, por considerarem Samuel um tanto pedante pelas suas incontáveis afirmações de ser o maior mágico do mundo, diante de suas trapalhadas, gargalhavam e o vaiavam a valer, numa estrondosa, constrangedora e irremediável humilhação

Transtornado, Samuel assistia ali, por meio da plateia de seus próprios colegas e mentor, o coração dilacerar em rasgos perversos de solidão. Ainda diante do achincalhamento geral, abaixou-se, sacou um punhado de terra molhada por suas lágrimas, moldando com ela uma ave entre as mãos. Soprou seu bico e, como que puxando alfenim, fez crescer o grande pássaro vermelho a emitir sons dolorosos e estridentes. O fracassado artista, então, saltou sobre seu dorso, subindo em voo ligeiro através das estrelas costuradas na lona circense, sabe-se lá Deus para onde, determinado a nunca mais acreditar em sonhos.



quinta-feira, 1 de abril de 2021

AlmanaCULTURA Recomenda: LANÇAMENTO "Contos Escolhidos"


Clique na imagem para ampliar!

O livro Contos Escolhidos, de autoria de Angélica Sampaio e Grecianny Carvalho Cordeiro, já está disponível (versão impressa) e à venda no site da Editora Sol Literário, com direito a uma linda sacola personalizada, por meio do link www.editorasolliterario.com.br

Também está disponível a versão digital pela Amazon:

https://www.amazon.com.br/Contos-escolhidos-Angélica-Sampaio-ebook/dp/B0913GVVRS/ref=mp_s_a_1_7?dchild=1&keywords=angélica+sampaio&qid=1617286126&sr=8-7

Os(As) interessados(as) podem aproveitar e conhecer, pelo site da Editora, diversos outros títulos de ambas as autoras, em diversos gêneros e temáticas distintas e por preços convidativos.

Vá lá, conheça a prosa dessas autoras, o AlmanaCULTURA recomenda.

Sobre o Livro:

São narrativas mitológicas, principalmente, que brotam desde o mundo clássico greco-romano, passando pelas lendas medievais, resgatando mitos indígenas da região quixadaense, para desembocar numa narrativa lampiônica em que não há derramamento de sangue.

O leitor atravessa esse universo sem tédio e sem cansaço, diante da dinâmica da contação de histórias envolventes, que mesmo conhecidas, algumas, recebem contornos novos e sequestram o leitor de forma prazerosa.

Logo na primeira parte do livro, Angélica Sampaio, telúrica, como em suas outras obras anteriores, privilegia cenários quixadaenses e transita entre OVNIS pacíficos e antigas lendas indígenas.

A segunda parte do livro, que traz os contos de Grecianny Carvalho Cordeiro, leva o leitor a mergulhar em tempos heroicos do mundo greco-romano, com seus deuses e heróis. Logo na primeira narrativa, “Ragnarök”, o leitor experimenta
a fúria dos deuses e só respira normal quando chega à última linha do texto. 
O único consolo nesse percurso é que se o leitor nele morrer será de forma heroica e portanto as Valquírias o conduzirão ao Valhala.