sábado, 30 de março de 2019

"Desconfiança", de Raymundo Netto para O POVO



Há meses Giselda desconfiava de Artur, o marido.
Puxava conversa, vasculhava e cheirava suas roupas, revolvia a carteira, ligava para o trabalho dele sem motivo aparente, mas não conseguia apurar nada. Mesmo assim, estranhava as suas atitudes: do jeitão indiferente à gentileza excessiva: “Tem caroço nesse angu!”
Inconformada, confessa para a irmã, em prantos, a sua dúvida. Juliana, por ainda ser solteira ou por qualquer outro motivo, manifestou certa satisfação: “Tá vendo, maninha? Homem é tudo igual. Não presta. Por isso não caso!”
Giselda, aflita, suplicou: “Você precisa me ajudar. É reservada, esperta. Descubra se ele me trai!” Juliana, ainda com um sorrisinho, aceita, mas já garante: “Todo homem trai!”
Com disponibilidade e muito empenho, Juliana passa a segui-lo. Checava que horas chegava ao trabalho, que horas saía, onde almoçava e com quem, perseguia discreta o seu roteiro de ônibus, conferia mensagens de celular e páginas de redes sociais, provocava assuntos mais íntimos, quando a irmã estava ausente à mesa, e ela mesma passou a fuçar as roupas, armário e as coisas dele.
Não demorou muito e, sem descobrir qualquer evidência, irritou-se. Não mais se escondia em sua perseguição diária, interrogando-o por qualquer coisa, ligando para o escritório, e abordando-o na rua, caso ele estivesse conversando com qualquer estranha. Um verdadeiro cão de guarda.
Numa manhã, ao acordar, soube que ele viajara. “Uma reunião, por conta do escritório”, explicou Giselda, com muita naturalidade. Ela se danou: “Sua tonta, você não entendeu? Que oportunidade! O malandro vai se aproveitar. Ah, vai!”
Naquele dia, sua indignação converteu-se em ira e, à noite, não conseguiu pregar os olhos. Ainda pela manhã, impacientava a irmã: “E o canalha ainda não voltou? Homens!” Chegou a ligar para ele e cobrar o seu retorno imediato. E ele voltou. E, ao voltar, no quarto ao lado da cunhada, a cama do casal parecia trovejar: “Cínico! Tem culpa aí, só pode!” Assim, pela primeira vez, sentiu a dor pungente de uma solidão.
Na manhã seguinte, sendo-lhe insuportáveis os paparicos e olhares lascivos do casal, Juliana dispensa o café da manhã e se queda ao portão a mirar a vida a passar furtiva na calçada, quando Artur, finalmente, sai da casa. Parou, sorriu para ela, lhe perguntou qualquer bobagem ao ouvido. Ele é doce e dá-lhe um beijo no rosto. O coração de Juliana, então, curvou-se à apoteótica conclusão: estava perdidamente apaixonada pelo cunhado. Ela abriu o portão e saiu, seguindo o rumo do nariz, entorpecida de qualquer coisa mundana. Descortinava-se um outro mundo, injustificado, porém alucinante.
Naquela noite, ela chamou a irmã ao seu quarto escuro. Giselda estranhou o tom austero e sentou-se ao seu lado na cama.
Juliana, com olhos em lágrimas, pegou a sua mão e diz que descobriu tudo. Ela estava certa. O marido a traía e ela própria, Juliana, era a causadora do infortúnio da irmã. Contudo, diante da torpeza de sentidos e assombro de Giselda, sem remorso, arrematou: “Trair com a irmã é até uma prova de amor!”



quinta-feira, 21 de março de 2019

"Novos Olhares para Monalisa – coleção Veridiana Brasileiro" no MAUC (23 de março)


Dia 23 de março, sábado, a partir das 10h, abertura da exposição Novos Olhares para Monalisa – coleção Veridiana Brasileiro.
A exposição estará aberta no Mauc (av. da Universidade, 2854, Benfica) até o dia 17 de abril de 2019 (das 8h às 12h e das 13 às 17h).
Veridiana, que além de colecionista é médica, iniciou sua paixão pelas artes visitando museus e galerias de artes, acompanhada pelos pais. Entre as obras, a “Mona Lisa”, de Leonardo Da Vinci, promoveu tanto encanto nela, que há 10 anos vem colecionando versões da pintura original.

A promoção da Exposição é do Sesc Ceará e conta com a curadoria da arquiteta e artista plástica Andréa Dall'Olio, que traz ao Mauc cerca de 140 releituras da emblemática pintura.

Assim, há um mundo de gentes e estilos e fazeres artísticos nessa exposição pluralíssima.

Vale a pena conhecê-la.
Quer mais: o acesso é GRATUITO.

terça-feira, 19 de março de 2019

"Barulho de Dentro", exposição de Juliana Siebra na Casa Vândala


Clique na imagem para ampliar!

A Casa Vândala convida para a abertura da exposição "Barulho de Dentro", de Juliana Siebra, a partir das 18h.
A exposição é apresentada por texto de autoria de Yuri Firmeza, e o evento contará com o show das artistas Emischramm, Clapt Bloom, além do lançamento de mais uma edição da cerveja Molotov, feita com folhas de Ciriguela, e que homenageia a artista Simone Barreto.
Mais sobre a Exposição “Barulho de Dentro”:
Um corpo feminino diante da grande fogueira de um piquete, um raio ideal caindo de um céu com diferentes tons de azul, uma desafiadora dança com répteis, uma mão, que deslocada, atravessa a experiência de tocar o vazio. Os desenhos de Juliana Siebra sugerem pequenas narrativas que transitam entre o fantástico e o autobiográfico.
Nesses “instantes narrativos” a autora trata de temas como a infância, a solidão e os sonhos. “Há uma infância, como toda sua alegria política, que nos faz lembrar, por exemplo, a poesia de Manoel de Barros”, diz Yuri Firmeza em trecho do texto que apresenta a exposição.
“O desenho que dá nome à exposição nos mostra um corpo atravessado pelas forças do mundo. Contorcido, com uma das mãos sobre a boca, a expressão nos sugere um grito que preenche o suposto vazio branco do papel.” A artista, através de seus desenhos, comunica sensações e nos faz ver mundos fantásticos.
Durante a noite acontecerá a apresentação de Emischramm, projeto criado por Emília Schramm, que se iniciou em 2012 com covers despretensiosos na internet, e de lá para cá ela produziu sozinha dois EPs inteiramente autorais, “Emischramm” (2014), e o “menina azul estrela” (2017). Gravados com o celular, adotam um estilo extremamente lo-fi. Nesse novo projeto, que ainda não foi lançado, ela, juntamente com as artistas Ayla Lemos (voz e violão) e Laire Souza (voz e teclado) cantam sobre feminismo, subjetividades e amadurecimento com sonoridades que remetem ao folk dos anos 60 e 70.
Logo depois, também se apresentará a artista Clapt Bloom, com o seu mais novo projeto "In Bloom”. Clarissa (Clapt) também toca nas bandas "Intuición, "New Model", "Hijas de Puta" e se autoproduz através do Selo Berlin Tropical. O "In Bloom" finalizará a vernissage uma atmosfera kitsch que é extensão dos experimentos eletrônicos da artista. Dentro de sua viagem particular, a realizadora destila um universo pop esfumaçado, soturno e sem final feliz.

Projeto "Cordel com a Corda Toda na Escola"



O projeto “Cordel com a Corda Toda na Escola”, iniciativa da Associação de Escritores, Trovadores e Folheteiros do Estado do Ceará (Aestrofe), com recursos da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, no programa “Mais Infância Ceará”, estará presente nos municípios de Maracanaú, Canindé e Quixeramobim, respectivamente, nos dias 28 de fevereiro, 21 e 22 de março de 2019.
Com apoio da Secretaria Estadual da Cultura no “Programa Mais Infância”, a nova etapa do projeto leva oficinas de xilogravura, lançamentos de livro e recitais a escolas públicas de municípios cearenses.
O projeto contempla o lançamento do livro Viagem ao Reino Encantado do Cordel, dos autores Klévisson Viana e Arlene Holanda, com ilustrações do xilogravador e escritor cratense Maércio Lopes Siqueira, bem como oficinas de xilogravuras com o mestre João Pedro do Juazeiro, cantoria de viola com o jovem repentista Guilherme Nobre e recitais com Francisco Melchíades, Paulo de Tarso, Rafael Brito e Evaristo Geraldo da Silva.
O projeto é completamente gratuito para as escolas. Livros e apostilas serão doados para o acervo das escolas, bem como folhetos de Literatura de Cordel em formato tradicional. Na ocasião serão promovidas, também, exposição e feira de artigos relacionados à nossa cultura e poesia popular.
Serão realizadas diversas ações dedicadas ao gênero literário Cordel e às artes que com ele têm afinidades. Nesta etapa, os coordenadores esperam contemplar cerca de 1.000 crianças e educadores de forma direta e indireta com oficinas, lançamentos, apresentações, recitais e livros produzidos dentro do projeto. 
A Escola Municipal José Belisário de Sousa, em Maracanaú, as escolas São Francisco, Adauto Bezerra e Biblioteca Cruz Filho, em Canindé, além da Escola Agrícola Dep. Leorne Belém e E.E.M.T.I Cel Humberto Bezerra, em Quixeramobim, receberão palestras com Klévisson Viana e Arlene Holanda, autores do livro Viagem ao Reino Encantado do Cordel, oficinas de xilogravura com o renomado gravurista João Pedro do Juazeiro, cantorias com Guilherme Nobre e recitais com diversos declamadores.

Atendimento à imprensa

Helena Félix: (85) 3217-2891 / 99675-1099 e-mail - aestrofe@gmail.com
Arlene Holanda: (85) 99725-4938 e-mail - arleneholanda@gmail.com
Bruno Paulino (Quixeramobim): (85) 99608-6569 e-mail - bruno_enxadrista@hotmail.com
Noélia Bastos (Canindé): e-mail - noeliabastos@yahoo.com.br

segunda-feira, 18 de março de 2019

"Evidências", de Raymundo Netto para O POVO



Caminhava na calçada quando, em um monturo encostado ao poste, notou uma volumosa pasta colecionadora azul. Curioso, olhou para os lados – não era de remexer em lixo – e a pegou. Era uma espécie de álbum de recordações. Passou as suas páginas e encantou-se com a mulher sempre presente nelas – provavelmente, a autora daquele registro. Levou-o para casa.
Nos próximos dias, tornou-se a sua leitura de cabeceira. A moça, sem dúvida, uma obsessiva. Ali, o passo a passo de uma história de amor. Havia colagem de fotos – muitas delas eram cuidadosamente recortadas e cobertas por canetas hidrográficas coloridas –, ingressos, pulseirinhas, guardanapos, restos de flores, fios de cabelos, cartões, poemas em esferográficas. Nas fotos: encontros em restaurantes, folia de carnavais, festas a fantasia, reuniões familiares, momentos íntimos, comemorações de aniversários de namoro e de casamento.
Como não cair fundo de paixão por alguém tão dedicada a um seu amor? “Mas por que jogaria aquilo no lixo?” Então, ele passou a não prestar para mais nada nessa vida. Aonde andasse, seu olhar incessante procurava por aquela a tomar por inteiro todos os seus suspirosos pensamentos.
Um dia, estava em um café quando, finalmente, ela apareceu. Vinha com uma senhora – reconheceu a mãe. O mesmo sorriso das fotos. Mais magro, assim como ela, e os cabelos mais curtos. Esperou o momento certo, inventou uma desculpa e se aproximou. Pediu para sentar, se poderia ligar, queria lhe contar uma história. Nada demais. “Vê-se tratar-se de um cavalheiro, minha filha”, assentiu a mãe. Assim, somente assim, ela ofereceu o número de seu telefone.
Naquela mesma noite ele ligou. Conversaram muito. Ela o ouvia sem entusiasmo. Mas ele era insistente e falava de lugares e de coisas que ela gostava. “Que coincidência, mãe...” Daí, conseguiu o primeiro encontro. Depois, o segundo e mais outros e outros: “Minha filha, você tem que se distrair...”. Desde então, ela já lhe confidenciava a sua tristeza e decepção. Fora casada. O marido a quem devotara tanto amor, a traíra covardemente. “Nem todos são iguais. Você tem que acreditar”, afirmava o bom ouvinte, pegando-lhe a mão trêmula e beijando-a quase como quem prova do ar pela primeira ou uma última vez.
Porém, após meses de uma convivência despretensiosa e agradável, de passeios e confissões mútuas e intermináveis, ela percebeu que o companheiro não se conformava apenas com a sua amizade. Ela gostava dele, sim, e muito, mas como amigo, um bom amigo somente. Tinha que ser sincera e o foi, dilacerando o coração do pobre homem, iludido de amores. “Pode me procurar depois, viu, mas somos apenas amigos...”
Não demorou muito, ele exigiu dela um novo encontro, nem que fosse o derradeiro. Precisava lhe mostrar algo. Ela relutou, mas não poderia negar isso a ele.
Encontraram-se no banco do parque. Ele estava soturno, tão triste quanto uma noite sem estrelas, trazendo, agarrado ao peito, uma sacola. Logo que sentou-se, ele passou para ela um álbum, mas não aquele, outro, de autoria própria, com inúmeras fotos dos dois, recortadas cuidadosamente e coladas em glitter e canetinhas hidrográficas, além de guardanapos, cartões, letras de músicas de gosto comum...
Ela não acreditava no que vira. Seus olhos escancaravam-se a cada página folheada. As lágrimas tombavam por sobre aquele pequeno museu pessoal, quando ela olhou para ele, meneou a cabeça lentamente e agarrou-se firme ao seu pescoço, numa convicção perversa:
– Minha alma gêmea!



domingo, 17 de março de 2019

V Seminário Baú de Leitura (Gratuito - 21 e 22 de março)


Foto: Hyan Braga

V Seminário Baú de Leitura

Data e horário: 21 e 22 de março, a partir das 8h
Local: Auditório da Enel (rua Padre Valdevino, 150, Joaquim Távora).
Inscrições (GRATUITAS/Vagas Limitadas): (85) 3252-3343 e 98526-1201 | ongcasadoconto@gmail.com

O Seminário Baú da Leitura é uma realização da Casa do Conto, com o apoio da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará e da Enel, e reúne bibliotecários e mediadores de leitura de bibliotecas comunitárias contempladas com o projeto Baú de Leitura.
Em 14 anos de atuação, o projeto beneficiou 389 instituições, totalizando 155.600 livros distribuídos no estado do Ceará:
A iniciativa tem sido motivadora para criação de novas bibliotecas comunitárias, uma boa maneira de democratizar o acesso aos livros de autores cearenses e dos demais estados brasileiros, na região metropolitana e no sertão afora”, afirma Almir Mota, coordenador geral do projeto.
Desde 2012, quando iniciou parceria com o Sistema Estadual de Bibliotecas, o projeto colaborou para o surgimento de novas bibliotecas comunitárias, segundo levantamento: “são 162 bibliotecas inscritas a partir desta parceria e a procura tem aumentado, principalmente nos últimos anos. Considero uma grande contribuição na formação de leitores críticos”, explica Lucileide Nascimento, bibliotecária responsável pelo cadastramento das bibliotecas comunitárias.
A doação de acervos pelo projeto Baú de Leitura vai além da formação de bibliotecas comunitárias. Uma vez integrado através do cadastro de Bibliotecas Comunitárias da Secretaria de Cultura do Estado, o equipamento passa a integrar o Sistema Estadual de Bibliotecas do Estado do Ceará e a ter benefícios que vão além do recebimento do acervo do projeto do Baú de Leitura. Cadastre a sua biblioteca!
Aqueles que desejarem se candidatar a receber o Baú de Leitura precisam se cadastrar através do e-mail: bcomunitariasce@gmail.com | ou pelos telefones: 3101.2546 ou 3101.2547.

Confira, a seguir, a programação do Seminário:

                                                                                                              Foto: Sol Coelho

PROGRAMAÇÃO NO SEMINÁRIO:
Dia 21 de março (quinta-feira)
08h: Credenciamento dos participantes/ café da manhã
08h30: Apresentação de música com a Biblioteca Comunitária do projeto Fabricando Som
09h: Palestra “O perfil das bibliotecas públicas comunitárias do Ceará: conservação e preservação do acervo”, com Aparecida Lavor.
12h: Intervalo do Almoço
13h30: Recepção dos participantes/credenciamento para oficinas.
14h: Oficina “A contação de histórias como premissa básica para formação de novos leitores”, com Mara Monteiro.
14h: Oficina “A música como instrumento para sensibilização nas contações de histórias e rodas de leitura”, com Teddy Williams.
16h50: Coffee break / encerramento das atividades.

Dia 22 de março (sexta-feira)
08h: Café da manhã/ Recepção e divisão dos participante nas oficinas.
08h30: Intervenção Slam da Okupa, com a Biblioteca Comunitária Okupação.
09h: Oficina “Fios, cores, histórias e memórias”, com Luisete Carvalho.
09h: Oficina “Mobilização comunitária na sua biblioteca”, com Júlia Barros.
12h: Intervalo do Almoço.
14h: Entrega de 7 (sete) Baús de leitura (400 livros cada).
15h: Aula-showEra uma vez, na batida do coração”, com os narradores Raimundo Moreira e Luisete Carvalho.

SERVIÇO:
Coordenação geral: Almir Mota
Coordenação executiva: Júlia Barros
Produção: Lara Leoncio, Mara Monteiro, Samuel Mota e Teddy Williams
Arte e designer: Klebson Alberto (Focarte)
Fotografia: Hyan Braga

Casa do Conto
Telefones: (85) 3252.3343/ 98753-6551/ 99623-3017
Fanpage: @ongcasadoconto


sábado, 2 de março de 2019

"O Carnavalesco", conto de carnaval de Raymundo Netto


Deu entrada no hospital, carregado numa maca ligeira, o velho.
Sua respiração era curta, hesitante, e o olhar bacento. Curiosos, que o viram à porta, afirmavam:
— Esse não volta mais...
O sábado acordava em pleno carnaval, sob uma comemoração em gotas finas de chuva.
Oh, jardineira por que está tão triste, mas o que foi que aconteceu? Foi a camélia que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu...
O velho havia sido recolhido em seu quarto de pensão, aparentemente, morto. Era um milagre ainda respirar. Mas para quê?
Ele via no teto, distorcidas, aquelas luzes, e lembrava-se de um tempo quando as luzes o procuravam.
Era carnaval outra vez... Ah, como ele amava o carnaval...
Havia tempo, vinha a lembrança, desfilava no corso com as autoridades da cidade. Os populares nas ruas, sacadas e escadarias, davam-lhe as mãos, acenavam-lhe, aplaudiam e saudavam-no com uma generosa chuva de confetes, serpentinas coloridas e sorrisos cativantes.
Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim. Ah, Meu Deus, não faça assim comigo não. Você tem, você tem que me dar seu coração...
Sim, num palanque de madeira na praça do Ferreira era ele quem, portando as chaves da cidade, iniciava as festividades oficiais do carnaval. E como era esperado! Quanto fascínio e admiração ele provocava naquelas pessoas sempre tão alegres, tão sem tristezas...
Quanto riso, oh, quanta alegria, mas de mil palhaços no salão. O Arlequim está chorando pelo amor da Colombina no meio da multidão...
Saía, ainda jovem, pelas ruas da cidade a pular o carnaval. Seus joelhos eram fortes, o calor era grande, mas nada o impedia de dançar... Nada nem ninguém!
Enquanto isso, as bandas do Exército e da Polícia Militar tocavam, em meio aos foliões, as marchinhas gostosas dos carnavais daqueles tempos.
Na Duque de Caxias, desfilavam os negros cordões de maracatus. Lá pros lados da Gentilândia outros blocos surgiam a cada dia.
Tantos casos de amor ele vira desabrochar na euforia dos salões. Ele mesmo, quantos amores não colecionara durante os folguedos? Fizera tantas promessas, trocara juras... Onde, onde estariam todas elas?  Será que o esqueceram? Para que se enganar? É claro que não!
Se a lua contasse tudo que vê de mim e de você muito teria o que contar. Contaria que nos viu brigando e viu você chorando me pedindo pra voltar...
Buscou na memória a jovem Teresa, curvas inesquecíveis, que o recebera com honrarias de majestade, a pedido do Governador, no Palácio da Luz. Fora amor à primeira vista, porém, que fenecera em poucos anos ante a revelação de uma paixão maior: a folia! Esta, felizmente, só o abandonara com o advento da idade, da miséria e da doença.
Ah, e a Aurora, então? Jurara de pés juntos que não o deixaria por nada, mas por nada e com nada o deixou.
Se você fosse sincera, ô, ô, ô, Aurora. Ai, Meu Deus, que bom que era, ô,ô,ô, ô, Aurora...
Mesmo assim, a princípio, lavava sua dor a chiringadas de lança-perfume, embriagado com o som dos apitos e nas risadas livres da alegria popular.
Depois, o inevitável: caiu vertiginosamente num abismo de bebedeira que superava o carnaval e permanecia durante o ano inteiro.
 As águas vão rolar. Garrafa cheia eu não quero ver sobrar. Eu passo a mão no saca-saca-saca rolha e bebo até me afogar... Deixa as mágoas pra lá!
Foi muito fácil perceber que o seu reinado chegara ao fim. Sabia que estava um farrapo de gente. Ninguém lhe daria atenção, desde então... Ninguém! Eles não se dignavam nem a recebê-lo. Também pudera, daquele jeito.
Ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí. Não vai dar? Não vai dar, não? Você vai ver que grande confusão. Eu vou beber, beber até cair... Me dá, me dá, me dá, Oh, me dá um dinheiro aí...
Nas noites em que não conseguia chegar à pensão onde morava, dormia na praça e nos botecos. Até de um cabaré safado fora expulso certa vez. Era, definitivamente, uma réstia de rei.
Nos últimos carnavais, a bebedeira rolava frouxa e, misturada com diversas “novidades” que surgiam, ficava ainda mais fora de si. O “Momo”, como era jocosamente conhecido nos bares, lamentava a deturpação dos valores do amado carnaval, mas, depreciado, infeliz, ridículo e fraco sua voz não ecoava, ao contrário, produzia ruidosas gargalhadas da estranha confraria. Não havia mais nada a fazer. Seus sonhos foram definitivamente descosidos. Seu tempo havia passado, assim como o seu carnaval.
Pode me faltar tudo na vida: arroz, feijão e pão. Pode me faltar manteiga e tudo o mais não faz falta, não. Pode me faltar o amor, disso até acho graça. Só não quero que me falte a danada da cachaça!”
Num susto, sentiu os médicos apertarem-lhe o peito, na tentativa de fazer seu coração desesperançado reagir. Que ele tivesse mil corações, trocaria todos por uma única e derradeira noite de carnaval. Não abriria mão de nada! Sorveria todas as fantasias, colheria todos os abraços, dançaria a noite inteira, se possível. Mas não foi.
Os confetes e serpentinas não precisavam mais do seu rei. A folia tomava vulto independente de sua presença. As pessoas nem lembravam mais dele. Uma antiga foto sua, que ainda perdurava na parede de um outrora tradicional restaurante, fora trocada por um calendário de mulher pelada.
A chuva ainda caía na cidade, quando, numa banca de revistas, uma chamada minúscula numa coluna anunciava, com atraso, o enterro de um rei desterrado.
Quem parte leva saudades de alguém que fica chorando de dor. Por isso eu não quero lembrar quando partiu meu grande amor. Ai, ai, ai, ai, está chegando a hora... O dia já vem raiando, meu bem, e eu tenho que ir embora...