segunda-feira, 29 de abril de 2024

"Ziraldo no Ceará (Parte 2), de Raymundo Netto para O POVO



Após horas de entrevista com jovens estudantes, chegamos com algum atraso ao antigo Centro de Convenções, sede da Bienal Internacional do Livro. Passamos rapidamente pelo auditório montado para recebê-lo. Como imaginávamos, estava lotado: eram crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos ansiosos em ver de perto o Ziraldo, realmente um ídolo de diversas gerações.






Preparava-me para subir ao palco e chamá-lo quando deu-se um embaraço devastador: Ziraldo estava agoniado com uma cutícula de unha: “Eu não vou conseguir falar se eu não tirar isso!” Liguei para a produção: “Pelamordedeus arranjem logo um alicate de unha para esse homem!” Dirigimo-nos à Sala VIP e ali ficamos até ele resolver esse gigantesco imbróglio...



O tema que escolhi para a sua palestra, claro, não poderia ser diferente: “Ler é mais importante do que estudar!” Ziraldo chegou ao palco ao som de palmas entusiasmadas e afetuosas. Muitos ali o tinham bem de perto, da cabeceira, na voz materna, em momentos de divertidas solidões. Descumprindo qualquer protocolo, falou abertamente com a naturalidade encantatória dos loucos. Distribuía sem pudor as suas impressões do mundo, a sua visão sobre a educação, sobre a leitura e as suas pequenas fascinações.





Ao final, uma fila interminável de pessoas trazia seus livros para autografar. Ele atendeu a todos. Daí, mesmo enquanto autografava, cochichava comigo. Precisava que eu conseguisse algum lugar com telão para ele assistir a um jogo do Flamengo que aconteceria naquela noite: “Tenho que terminar antes do jogo. Você gosta de futebol? assiste comigo?”

Na verdade, não mesmo. Contudo poderia recorrer novamente ao Mino. Liguei para ele, pedi esse favor, e ele aceitou. Disse-me que aguardaria por nós dois no restaurante Dallas, onde poderiam encontrar o tal telão. Como o Mino não dirige, deixaria um motorista para ambos. Resolvido isso, Ziraldo ainda me falou que soube que estávamos distribuindo R$ 5,00 para que os estudantes comprassem livros na Bienal, a tal “Notinha Legal”: “É um desserviço. Livro com esse valor não presta!” Por coincidência (ou não), uma garota estava com um livro dele na mão e eu perguntei quanto custou. Respondeu toda sorrisos: “Só R$ 5,00. Está em promoção.” Ele baixou a cabeça, desenhou o autógrafo e resmungou: “Por isso é que eu não ganho mais dinheiro. Só R$ 5,00...”






De repente, um homem surgiu por trás da fila e acenou-lhe com um livro do cartunista na mão: “Ziraldo, você gostou da edição? Está bonita, né?” Ziraldo mirou apertando os olhos: “Está... Mas eu não estou lembrado de a gente ter acertado esse não, viu? Vamos ter que conversar...”

A fila parecia não ter fim e ele começou a se aperrear: “E o jogo? Vou perder o jogo?” Sugeri: “Resume o autógrafo. Não desenha.” “É mesmo, né?”, disse. Porém, logo depois, chegou uma mocinha. Perguntou o nome dela: “Marília”. Ele desenhou ondas do mar, um barco, um sol... É, não adiantava, ele amava tudo aquilo. Dava gosto de ver a alegria daquelas pessoas abraçando-o, pedindo-me para tirar fotos com ele, mães trazendo filhos que, como ela, descobriram o Ziraldo ainda na infância. A sua presença, nunca tive dúvidas, seria para esse povo cearense um presente impagável.

À noite, conforme acordado, o deixei no Dallas com o Mino e, antes de eu voltar para casa, perguntou se eu poderia ir com ele na manhã do dia seguinte à Revistas & Cia, do Silvyo Amarante, pois estava curioso em conhecer o espaço e queria fazer umas comprinhas... Lembrou-me: “Eu não fico sozinho, Raymundo!”


(CONTINUA)

  

segunda-feira, 15 de abril de 2024

"Ziraldo no Ceará (parte 1)", de Raymundo Netto para O POVO



A última vez que Ziraldo veio ao Ceará participar de uma Bienal aconteceu em 2010, a convite meu, quando estava curador da programação da Bienal Internacional do Livro do Ceará, cujo tema era “O Livro a Leitura e os Sentimentos do Mundo”.

Era abril, o mês do livro e do aniversário da cidade, e eu queria trazer alguns nomes caros à infância brasileira, além de outros que, mesmo não tão badalados naqueles tempos, decerto eram imortais na lembrança dos(as) leitores(as) cearenses de todas as idades, como Carlos Heitor Cony, Affonso Romano de Sant’Anna, Tiago de Mello, Marina Colasanti, Maurício de Souza, Pedro Bandeira, Ana Miranda e Ziraldo. Claro, no quesito literatura infantojuvenil, teríamos os(as) cearenses Horácio Dídimo, Socorro Acioli, Klévisson Viana, Elvira Drummond, Tércia Montenegro, Arlene Holanda, Almir Mota...

Como curador da programação, fiquei responsável em receber os convidados. Naquele dia, iria encontrar o Ziraldo no aeroporto. Disseram-me: “Este não dá trabalho – alguns deram –, pois sempre vem com a esposa ou com o agente dele. Bastava recebê-lo e deixá-lo no hotel.” Assim me disse a produção.

Contudo, não se deu assim. Ziraldo chegou sozinho! Quase correndo, assustado, no meio do povo. Perguntei-lhe pela esposa: “Depois da festa de aniversário que ela deu ontem, eu não sei nem quando ela vai acordar...” E o seu agente?: “Quebrou o dedo do pé.”

Chegamos ao Marina Park Hotel, onde se hospedaria. Apresentei a ele a equipe que estava ali à sua disposição, mas: “Raymundo, eu não fico sozinho!” Perguntou se eu tinha o contato do Mino. Eu tinha. Pediu que eu marcasse um almoço com ele. Teria também uma entrevista marcada, mas não sabia onde, com alunos do jornalismo da UFC – era para a revista Entrevista, sob a coordenação do Ronaldo Salgado.

Enquanto acertava com o Mino o almoço no restaurante da Beira-Mar, tirei de minha mochila uma encadernação com todos os 10 números da revista da Turma do Pererê, pela Abril (1975), o seu retorno após a primeira “temporada” pela O Cruzeiro.

Ziraldo se emocionou. Disse que aquelas ele não possuía. Autografou ao seu estilo. Lamentou que naquele tempo estava chateado com a editora por conta de divergências. “Cabeça-dura”, preferiu cancelar. Por outro lado, sabia que poderia ter se empenhado mais, ter feito mais: “Ninguém falava ainda em Ecologia nem na valorização da fauna nativa ou da cultura brasileira... Tinha tudo para ser um sucesso maior!” Folheou demoradamente e depois me devolveu a minha pequena coleção agora autografada.



De fato, a Turma do Pererê foi a primeira revista em quadrinhos brasileira feita apenas por um só autor, sendo também a primeira HQ a cores publicada no país.

Saímos do hotel para nos encontrarmos com o Mino no restaurante do Faustino, uma excelente vista para o mar. Muito bonito e divertido presenciar o encontro desses dois talentosos cartunistas, ainda mais ciente da importância de Ziraldo no rumo seguido pelo Mino, o pai do “Capitão Rapadura”, o herói que (quase) tudo atura.


Por volta das 15 a 16h, chegou o Ronaldo Salgado acompanhado de um bom grupo de jovens estudantes do 6º semestre do curso de Comunicação.

Pedi que Ziraldo tentasse não se estender muito, pois a mesa dele na Bienal aconteceria no início da noite. Ele me tranquilizou... “Nem gosto muito de falar. Em 15min, eu termino.” Quando sentou-se à mesa, começou a perguntar o nome de um por um. Quando o(a) estudante respondia, ele perguntava: “E por que do seu nome?”. Pronto, ali fiquei certo que seria uma longa, muito longa entrevista.





(CONTINUA)





 

segunda-feira, 1 de abril de 2024

"Luzeiros", de Raymundo Netto para O POVO


Publicado originalmente em Os Acangapebas

 

Estacara a hora, e pensamentos ondeados de recordações saudadejavam de distâncias o horizonte.

Silêncio.

Os búzios urdiam o colorido da imensa solidão apresentada.

Os pés firmes, artelhos tortos, unhas pretas, entranhavam-se na areia ao lamber das águas brumaceiras. À mão em concha, proteção do Sol, o velho pescador sorria em seu peito as fantasias de um menino de um dia, firme, garantir: “eu quero ser é pescador!” E foi. Se foi. Lembrava.

Nas vigílias das noites, o silêncio num manto azul de luzeiros cintilantes, a fogueirinha no mar, a harmônica tristíssima e o marulhar a balouçar-lhe os pés.

Ademanhãzinha, via lá do mais alto mar, os magros coqueiros a silhuetarem acenos aos ventos, como os negrinhos correntes em felizes mantos de areias brancas.

Sentia-se um deus, enquanto jangadeava; em casa, porém, a figura magra dos filhos, a mulher maltratada, a comida quase posta à mesa, o entristecia. Deus morto era o que era!

De enquanto fora do mar, para engolir as mágoas, tornava-as com uma branquinha, senão não dava... Francisco, filho mais velho, sempre de ir buscá-lo no bar: “De novo, pai? Bora, a mãe tá chamando pra janta!” e o carregava nos ombros. Ele, não muito mais do que uma criança, faltava de só chorar a vergonha diante do seu Francisco.

Ah, mas quando de chegada a hora da lida, era todo habilidade de mestre! Entanto, devido às doenças a vir de idade e da má sorte, teve que parar. Desde então, fazia a canivetes jangadinhas de vender aos turistas. Alguns zombavam do infeliz:

– Ah, desse tamanhinho é fácil. Quero ver é fazer jangada de verdade!

– Eu faço, doutô! – orgulhava. – Não duvide, faço, sim, e das boa!

Mas não havia de venda quase nada; bom de prosa, tempo gasto no leriado nas rodas de rapazes e moças, era de sua volta à noite da vila umas poucas migalhas e muitas, quase todas, jangadinhas.

Francisco crescera na dificuldade e, mesmo tanto, um dia chegou ao pai: queria ser pescador! De susto o velho logo se inquietou. Enfim, haveria de voltar em braços jovens de filho ao mar, donde nunca de haver saído na vida. Pôs-se a trabalhar a empenho:

– Olhe, meu filho, escute: quem faz um cesto, tendo tempo e cipó, faz um cento! – ria-se, remoçado. O filho iria ao mar!

Naquele dia Francisco partiu. Partiu e voltou não. E mais nada. O mestre enlouqueceu. Todos os dias, tomava as areias madrugueiras a divisar o vasto vazio de nada e coisa alguma. Silêncio.

A sua mulher, por outro lado, inda servia a mesa. Rezava. Estranhava-lhe os modos do marido. Acostumara-se, ora. Quantas noites cruzadas ao claro? Quantas de silêncio?

Mais dias e, então, Francisco voltou. Havia um acontecido. Nem importa qual: voltou!

Depois, por se esquecendo, pediu ao pai, a bênção de nova chance. Queria mesmo era ser pescador bom como ele; não se dobrar a oceano algum, adestrar-lhe as vagas e saber-lhe os cicios e segredos; queria, pois seu querer era tão mais forte quanto ele.

O velho pescador alucinou. Apertou o arrugamento da testa e coçou, sob o chapéu de palha, pés de confusão. Ondas quebravam no dorso das pedras desabrolhadas ao veludo frio do mar. A folgada sucessão de águas reconstruía memórias. Poesia gritava aos seus ouvidos em voz rouca dos corais, e foi assim que respondeu.