quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

AlmanaCULTURA IN Dica: "Alabama Monroe", de Felix van Groeningen



Se quiser ouvir um pouco da trilha do filme, acesse (não se arrependerá):
http://www.youtube.com/watch?v=xn2fGbA_NFE


Sempre trouxe comigo nas minhas doses de respiração mecânica: para que alguém consiga chegar ao inferno é preciso antes tentar ganhar o céu. Pois não seria a busca da arrogante e pretensiosa salvação um dos maiores pecados humanos? Isto, obviamente, se existir essa coisa de pecado; se nós formos (todos) mesmo humanos, e não macacos, como diz o personagem Didier (Johan Heldenbergh), um caubói belga, fã do músico Bill Munroe, autor do clássico "Blue Moon of Kentucky" e criador do "bluegrass", uma espécie de country acústico.
Didier mora num trailer em sua fazenda de caipira descuidado e toca banjo juntamente com seus amigos numa banda (violão, contrabaixo, violino, bandolim).
Um dia conhece e se apaixona de primeira, primeiríssima, por Elise (Veerle Baetens), uma tatuadora linda que decidiu não ser papel em branco (e que conseguiu me sensibilizar com o uso que faz das cores da bandeira norte-americana), e a convida para ver o seu show. Ela se impressiona e toma na veia a relação, que passa a desfilar na narrativa em forma de músicas muito bonitas, bem executadas e na voz, às vezes à capela, do novo casal. Além, claro, de trazer todas das mais saborosas mentiras que só o verdadeiro amor pode oferecer.
É possível sentir a respiração e os sorrisos prazerosos da plateia, das mulheres principalmente, mais sensíveis ao singelo discurso amoroso.
Mas há uma tristeza implícita no filme, mesmo nas alegrias eufóricas do descobrimento da possibilidade de se amar. O olhar de Elise, a forma como ele apreende em seus olhos o ente de seu desejo, é de uma paixão e sedução profunda, de causar inveja a qualquer marmanjo. Mas é triste, carregado de uma melancolia que nem sei se a Veerle Baetens sabe exatamente o que criou, o que representava, enfim. Estava lá no olhar de Elise o que eu conheço bem...
A narrativa é confusa, mesmo quando centrada quase que exclusivamente nos dois personagens. Linearidade o escambau... Cheio de saltos temporais que, às vezes, incômodos, nos forçam a nos deslocar da delícia de trama para pensar que momento era aquele: passado, presente, futuro? Ora, mas entender o tempo não é possível, e ele, o tempo, tem a cínica mania de errar.
Pois sim, o primeiro grande conflito do casal acontece quando Elise descobre que está grávida. Um pequeno choque que inicia um questionamento, que no todo seria ainda superficial, sobre a vida após a morte e o ateísmo, uma teimosa obsessão de Didier, que em outro momento do filme, transborda sanguíneo num discurso que chama o papa de cretino, por recomendar que os católicos usem preservativos, e acusa Jeová de ser o mais cruel personagem de nossa literatura, além de "assassino, misógino, homofóbico, etc. etc." e de pregar a humilhação de todo um povo ajoelhado diante da sua criação sobre a Terra. Bem, confesso que esse discurso ainda é bem melhor do que os seus elogios à terra das oportunidades e dos sonhos do mundo: EUA! Ah, e ter que ver a cara patética do Bush na TV também não foi legal. Poderíamos ficar sem essa..
Voltando ao filme... a questão da gravidez é superada e o casal passa a viver o amor de uma garotinha, linda demais, apaixonante, doce e doente de leucemia.
O acompanhamento da tragédia familiar é comovente e vai se desenrolando suave entre os dois, cantada em prosa, verso e lágrimas nas baladas da banda (trilha sonora vibrante) até o desfecho do primeiro ato, que muda o quadro radicalmente.
Então, sobre o erotismo, o desejo e o amor de toda uma vida pesam a culpa, a dor e a angústia da perda. E a perda traz outra e outra e outra, e esta outra fantasia-se de ressentimento, dúvidas, insegurança e mais uma série de inquietações que fazem as pessoas dizer aquilo que vem à cabeça, numa crueldade tão apurada que só quem ama teria coragem de proporcionar.
Superar as crises não é fácil, por vezes nos enfeitamos de máscaras, ou tatuagens, mudamos de nome, mas seremos sempre o que trazemos no nosso interior, independentemente de nos reconhecerem ou não como tal.
A proximidade voluntária da morte pode até parecer ser vergonhosa, mas penso que a sua certeza também o é. A morte é um detalhe, entretanto, é a vida que conta.
Cabe-nos pensar na noite pré-chuvosa sob as pedras portuguesas de um Dragão do Mar: se o amor, na sua sublime abnegação e capacidade de renúncia, pode causar uma dor tão desmedida e inconsequente, valeria a pena se viver esse amor?
Talvez eu tenha visto mais do que era para se ver. Há esse risco...



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