segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

"Desejo Secreto", de Raymundo Netto para O POVO



Susanabela nem não acreditava, senão o homem do noticiário insistia: “Papai Noel estará neste domingo no shopping, aquele mesmo pertinho de você!”
Por trás dos olhos arregalados soluçava a duvidar do aparelho de TV: “Ele? Aqui?”
Trazia, no pouco mais de trinta anos, uma beleza sofrida e esquiva. Após ser largada por Genésio, o único e infeliz amor de sua existência, que a trocou  justamente pela irmã, a caçula, decidira largar de vez a sua cidadezinha de sempre e buscar sustento em casa de família na capital, à custa da necessidade, rotinando as únicas prendas de sua vida: varrer, lavar, passar e cozinhar.
Fazia apenas alguns meses. Morava num quartinho reversível dos fundos, ao lado da área de serviço, por trás do tanque. Sem família, sem amigos, sem ninguém, abria mão até dos finais de semana, simplesmente por não ter, ou saber, o que fazer fora dali. Não besta, a patroa a explorava carinhosamente, rasgando-a de cínicos elogios toda vez que a surpreendia passando as roupas no perfeito domingo, de costas para o café da manhã bem-posto, inda quentinho, na mesa de vista para o céu mais azul e livre deste mundo.
Mas naquele domingo, não. A patroa acordou de cara emburrada, estranhando a empolgação da empregada no enfeito em tamancos, e o nada de café nem de janela azul.
“É namorado, não é? Olhe, tome cuidado com os rapazes daqui, Susanabela. Só querem mesmo é tirar uma casquinha... E você, me desculpe, é uma tonta!”
“É hôme não, dona Rubi. Deus me alivre. É mais que isso... é um sonho!”
Não ouvia, pois estava cheia de seus próprios sons. A patroa resmungava: “Serviço bom como este aqui vai ser difícil conseguir outro, visse?”
Susanabela quase abria os portões do shopping. Desfiava conversa com o segurança, os zeladores e taxistas. Mais ansiosa que caldeira de trem, numa felicidade estranhamente sincera, perguntava: "Vocês não vão falar com o Papai Noé, não?"
Riam-se. Entre eles, apontavam para ela, meneavam a cabeça: “Não pode ser desse mundo.”
Com pouco, a fila se esticou de crianças e de pais sonolentos de boa vontade. Ao fim, chegava ele, o tal Noel, passando por ela num acolchoado encarnado e luminoso sem dar-lhe a mínima atenção, rumo ao seu trono. Ela, a primeira da fila, postava-se passiva e trêmula, enquanto as ajudantes do velhote lhe perguntavam pelos filhos: Não os tinha.
Daí, o canastrão, desconfortavelmente sentado na poltrona decorada, pôs-se ao papel, lançando um afônico Hou-hou-hou e chamando Susanabela: “E então, minha filha, o que você quer de seu Papai Noel?” Era o que faltava. Susana livrou-se dos tamancos, saltou em seu colo, beijou o blush de seu rosto e, num abraço caloroso e fatal, sussurrou-lhe ao ouvido: “O senhor se alembra quando eu pedi uma irmãzinha? Agora quero que você morra ela.... Morra ela, pra mim, Papai Noé, por favor!” 


segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

"Enlutada", de Raymundo Netto para O POVO



Safira seguia a passo vago ao lado do caixão do marido. Olhava Edmundo de cima abaixo, de baixo para acima, como se a qualquer momento fosse de sua providência acertar o véu, recompor um detalhe, apertar os cadarços, ajeitar-lhe as mãos pesadas no peito mudo. Como se ele, dali a pouco, pudesse lhe pedir qualquer coisa, qualquer uma. Ela o faria, certamente, o faria como sempre.
No mesmo passo, desviava a atenção dos olhos úmidos para as paredes nuas, às imagens de um Cristo triste e rendido a esvair-se em sangue, enquanto a mocinha da funerária, que interrompia o silêncio com irritantes saltos ligeiros, trazia os copos descartáveis e o café para as visitas:
"Não tem ninguém, senhora?"
"Ninguém, por quê?"
O casal se bastava em si, nem filhos, orgulhavam-se, lembrou. Foram morar longe: "Família só serve para dar pitaco!" O amor lhes era tudo. Era o teto, o chão e o cobertor do casal. O que poderia faltar diante do amor de duas almas tão sinceras?
Durante algumas horas, apenas uns poucos, menos de dez, colegas do trabalho, passariam por ali. Alguns deles, cerrados em óculos escuríssimos, mal emitiriam palavras, apenas grunhiam. Poderia ser qualquer coisa, de "lamento" a "ainda bem". Perguntariam:
"Como foi que aconteceu? Tão jovem..."
"Não sei. Ele estava tão bem, feliz, e de repente... Foi-se."
Não demorariam. Teriam outros compromissos, qualquer um, senão ficariam, mas ligasse — se tivesse deles sequer algum número. Entretanto, trariam a mais bela e única coroa de flores. Nela, uma cor clichê: "Saudades".
Ficaria por horas novamente só, imutável, sentada numa incômoda poltrona de viúva a rememorar o sorriso elevado que ora jazia ali, sepultado em algum lugar daquele cadáver, objeto repulsivo a caminho dos vermes que conduzem à desintegração terrena.
Por vezes, tomava coragem, levantava-se e parava diante do corpo do marido. Espalmava a mão na testa lânguida e uma ânsia lhe tomava o corpo em arrepios lancinantes. Como seria possível amá-lo assim? Como poderia guardar na lembrança aquele homem? "Morto!" Punha-se em soluços de agonia. O peito arfava em espasmos sucessivos e ela tremia, esfregando as mãos na saia: "Que nojo! Nojo! Nojo!"
Mais tarde da noite apareceu da penumbra outra mulher. Chegou ao portal do salão e estacou. Vestia o negro na corrente de profundo abatimento. Olharam-se. Não se conheciam decerto, mas era como se se soubessem. Aproximou-se, margeou o esquife, como chegasse aos pés de um precipício, e deitou a mão levemente na perna esquerda do falecido. Com breve, seu olhar transmudou de grave a enlouquecido, desesperado. Deitava em lágrimas convulsas, num choro pesaroso e inconsolável de encontrar eco nas demais cabinas mortuárias. Mais um pouco, até seria possível invejar Edmundo na sua condição de morto.
Safira assistia passiva, comovida e atônita. Por um momento, não se sentia mais só. Na verdade, não sentia nem o próprio corpo, nem a mesma dor.
Aproximou-se da outra, tocou-lhe os dedos e pronunciou-lhe um beijo na testa. Voltou à poltrona, tomou a bolsa e, num suspiro profundo e sem olhar para trás, se foi, enquanto a enlutada subia, ainda trêmula, no caixão de Edmundo, aninhando a face saudosa sobre o seu peito e, como uma jura imortal, morreu com ele.