Miserere, novo
livro de Adélia Prado, 78, é ótimo exemplo de como simbologias tradicionais,
carregadas de mitos e de interditos supostamente ultrapassados, podem ganhar
uma inesperada força como repertório poético.
A primeira explicação, em negativo, não é difícil
de encontrar: aceito o pressuposto desse mundo vetusto, perde-se o medo de
confessar idade, exaustão, pobreza e sujeira, pois a carência se reinterpreta
como promessa de eternidade.
Abre-se uma fresta no paradigma existencial
contemporâneo, restrito à banalidade laica, presentista, pragmática.
O que poderia ser visto como dogmático e
conservador acaba funcionando como alívio para o efeito rebote da
obrigatoriedade de se manter jovem, saudável, feliz, “up to date”.
O que haja de antiquado nas figurações da crença,
de repente, anima vasta ressignificação sensória da vida diante dos programas
profiláticos e assépticos da cosmética e da medicina, muito mais próximas agora
do que admitiria Platão.
Em versos brancos livres, de léxico corrente e
cortes gramaticais, Adélia pode falar, por exemplo, “num mundo bom onde se come
errado,/ delícia de marmitas de carboidrato e torresmos” (em “Qualquer Coisa
que Brilhe”); ou: “Minha mão tem manchas,/ pintas marrons como ovinhos de
codorna” (em “Avós”); “Deus, tem piedade de mim./ Peço porque estou viva/ e sou
louca por açúcar” (“Distrações no Velório”).
Não temer
a morte
O tom sentencioso e edificante é geralmente
temperado por uma atitude bem-humorada e vigorosa diante do pânico da doença e
da morte, esta que foi higienicamente desaparecida da vista dos amigos e
parentes para se tornar um caso técnico hospitalar, como evidenciou o
historiador francês Philippe Ariès.
Adélia, ao contrário, pode dizer: “Tem braços
acolhedores/ e vem cheia de vida./ É Deus a poderosa morte” (“O Hospedeiro”).
E quando propõe “dormir na própria cruz sem
sobressaltos, como um bebê brincando com suas fezes” (“A Criatura”) canta um
mundo às avessas daquele do “grande Bazar” surdo, no qual todos “falam a mesma
língua e têm o mesmo preço/ do ‘Concurso de miss para criancinhas”
(“Sacramental”).
Há uma segunda explicação, desta vez imanente, para
as qualidades de “Miserere”. Nalguns pontos altos do livro, o erotismo, o amor
do corpo, se dá em associação direta com a evocação da vigilância repressora do
pai e da unidade uterina com a mãe.
Assim: “o Senhor da vida olhava-me/ como olham os
reis/ as servas com quem se deitam” (“Pomar”); “vi o dedo,/ o meu, este que,
dentro de minha mãe,/ a expensas dela formou-se” (“Contramor”).
O belo e
o sujo
Resulta daí uma geração e parturição no que
repugna, não no que é belo: “O verdadeiro é sujo, destinadamente sujo” (“Branca
de Neve”); “Pois o encontro agora escuro e fosco/ no dia radioso é único e não
cintila(...) Abba! Abba! Aceita o que me enoja,/ gosma que me ocultou o Teu
rosto” (“Qualquer Coisa que Brilhe”).
Em termos católicos, que são os pertinentes aqui,
apenas neste ponto opaco e cego do abandono se aceita Deus, sendo aceito por
ele.
Entretanto, como reconhece Adélia, falta-lhe
coragem para dizer tudo o que, segundo ela mesma, se dito, “em mim mesma
produziria vergonha, vários me odiariam” (“Branca de Neve”).
Uma língua menos gentil talvez fizesse mal a
Adélia, mas faria muito bem a sua poesia.
Alcir Pécora, da Folhapress
SERVIÇO
Miserere
Autora: Adélia Prado
Editora: Record
Quanto: R$ 25 (96 págs.)
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