terça-feira, 31 de dezembro de 2019

O 2020 que desejo a todos



Há dias venho recebendo mensagens de felicitações pelo Ano Novo, esse desconhecido 2020.
Com essa diversa teia de redes sociais (e/ou antissociais) é natural uma avalanche delas, muitas se repetindo em clichês acumulados de todos os anos, antes carimbados em letras douradas de cartões de Natal em tempos idos, ou mesmo com certa formalidade – como se estivessem falando de algo místico e quase miraculoso –, o que seria estranho se pensássemos se tratar de uma natural sequência de dias ou que a mudança de nossa vida dependesse dessa "passagem". Por vezes, sou atacado por uma incômoda – por ser irreal – intimidade, mas tenho ciência de que cabe à virtualidade esse legado de improbabilidades.
De qualquer forma, cabe a nós separarmos o joio do trigo – para também eu empregar clichês – e saber reconhecer as palavras (e as pessoas) que nos tocam por serem verdadeiras, emitidas sem a cerimônia da data ou apenas pela facilidade de sua emissão, mas por uma afeto recíproco de todos os dias, independentemente da  distância geográfica ou temporal que pode nos separar.
O mundo é outro, cada vez mais, e perceber a distinção do que é real do ilusório é necessário para nossa sobrevivência e sanidade. A ideia que eu tenho é que abriram no centro de tudo um imenso picadeiro e as pessoas estão brigando – mas dizem se amando – pelo papel principal e pela visibilidade curtida, numa olimpíada espetaculosa de falsidade, superficialidade e de “se passismos”.
A minha vaga deixo para os aventureiros, prefiro me quedar por trás das cortinas, onde não chegam os holofotes, mas as coisas acontecem e se sustentam e não há celofane, glitter ou frágeis estrelas de papel laminado disfarçando a guerra impermanente das vaidades, do egoísmo, da ambição.
Tanta fé, tão bons sentimentos... Ah, se o mundo fosse mesmo repleto de pessoas que tivessem em seu coração, e não apenas no discurso e nas “boas intenções”, esse bem querer ao outro, mesmo aos desconhecidos – talvez principalmente a eles –, provavelmente o mundo seria outro, melhor e mais saudavelmente habitável.
Cada vez estou mais convicto: a EDUCAÇÃO É QUE SALVA!
O que mais falta no mundo é educação. Não me refiro à mera ou mecânica instrução, conhecimento das disciplinas, de línguas, das ciências, do domínio das tecnologias, mas da educação que forma CIDADÃOS, pessoas que respeitam os seus limites e os direitos alheios, que combatem os preconceitos, abraçam as causas humanas e se indignam com o sofrimento de outrem, que entendem e promovem a justiça, a igualdade, a solidariedade (não me refiro à caridade nem assistencialismo) e que acreditam de verdade que ninguém pode ser feliz sozinho.
Religião, fé, política, ciências, tudo isso sem educação é FALSO ou VAZIO. Mera ilustração.
E é esse mundo EDUCADO que desejo para mim e para todos os meus familiares e amigos nos anos vindouros.
Grande abraço de verdade.



segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

"Fora de Cena", de Raymundo Netto para O POVO



Cesário Alves entregava seus dias a assistir obsessivo a antigos vídeos na TV em sua pequena e escura sala de quitinete. Nem se importava nem contava quantas vezes já os havia assistido. Sorria, chorava, se enternecia diante daquelas imagens reproduzidas em seu videocassete.
Naquele momento, seu coração lhe orgulhava a certeza de que, em vida, como poucos, conseguiu realizar seu maior sonho: ser ator! “César Nonricordato”, como seria chamado, foi uma das maiores promessas da história da televisão brasileira.
Por outro lado, logo pela manhã ou mesmo antes de dormir, Cesário padecia de uma dor: o confronto com o espelho. Evitava-o enquanto pudesse. Não sendo possível, fixava-se àquela imagem a refletir a sua ruína. Torcia o pescoço lentamente de um lado a outro. Catava os fios de cabelos finos e os enganchava para o lado com auxílio de uma pasta oleosa. Esticava a pele em torno dos olhos e das pálpebras caídas. Contava os sinais e as rugas, ressentia-se da perda dos dentes – o sorriso roubado – e do azulado olhar, hoje, quase cinza, de uma palidez incômoda: “Por que não morro de uma vez?”
Da mesma forma que não se via ali, na rua ou na renovada vizinhança não seria mais lembrado ou reconhecido. Às vezes, no centro da cidade, ainda de encontrar senhoras a lhe apontar o nome daquele personagem de sucesso: “Cristiano, é você mesmo?” Ele então sentia lhe acender o espírito diante do brilho do pasmo alheio. Um abraço, antes impossível de galã de novela, acontecia. O desencanto vinha depois: “Mas você mudou tanto... Nunca mais na TV!”
Com efeito, há muitos, muitos anos não recebia convite nenhum. Da última vez, após muitos apelos a um amigo, executivo da antiga emissora, recebeu um papel: o avô da protagonista, idoso e com Alzheimer em estágio terminal. Não havia falas. O personagem apareceria ocasionalmente em cenas em que vegetaria a cores para todo o país. A memória ainda lhe doía, mas recusara solenemente o papel, humilhado, destruído, fracassado como nunca.
Chegando em casa, tirara de cima do armário o álbum de recortes de revistas, pôsteres e jornais. Ali estava ele ao lado das atrizes mais bonitas e famosas do país. Sim, beijara aquelas bocas, sentira de perto seus hálitos, o calor de seus corpos. Algumas delas, além de jornalistas, modelos, gente da TV, levara para cama, com outras se casara, até quando não havia ninguém suficiente para ele: “Bonito demais. Assediado demais. Sozinho demais.”
Naquele dia, determinou-se a encarar a figura decrépita a assombrá-lo no espelho. Tinha que provar para si que ainda podia. Trajando um blazer de flanela e o rosto empoado, interpretaria uma cena de final de novela, ainda em P&B, aquela que comoveu a milhões de telespectadores. Ao fundo, uma fita cassete rodava, quase estrangulada, a trilha sonora do casal. César, agora diante daquele espelho, veria nitidamente o rosto da mocinha com aplique de peruca e largos cílios postiços a esgotar para ele o olhar apaixonado de todas as possíveis mulheres. Por último, o tão acalentado beijo, o frenesi, a música em seu gran finale a espremer os corações em lágrimas, a engasgar soluços, a promover as esperanças e a crença na vitória do amor. Reinava ali a grande estrela, César Nonricordato, em seu último capítulo, num abraço desatinado a lembranças indeléveis, mergulhado sem volta na superfície polida a devorar a grande estrela... FIM.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Sarau Lamarca Especial: "Raul Seixas: 30 anos de saudade" (20.12)



SARAU LAMARCA

LANÇAMENTO
RAUL SEIXAS, 30 ANOS DE SAUDADE
de Rouxinol do Rinaré

LOCAL: LIVRARIA LAMARCA
(Av. da Universidade, 2475 – Benfica – Fortaleza)

DATA: dia 20 de dezembro de 2019 (sexta-feira)

HORÁRIO: a partir das 19h

ATRAÇÃO MUSICAL: Del Brando, cantor e compositor (voz e violão)

Sobre a Obra: Raul Seixas, 30 anos de saudade é uma coletânea de cordéis escritos ao longo de duas décadas pelo cordelista Rouxinol do Rinaré, abordando a vida e a obra do artista baiano Raul Seixas.
Com prefácio do escritor e compositor Braulio Tavares, o livro traz 8 gravuras internas, de vários ilustradores, como folha de abertura de cada um dos cordéis que compõem a coletânea.
Como sugere o próprio título, essa obra é um registro dos 30 anos da ausência física de Raul Seixas, completados em 21 de agosto deste ano de 2019.

Sobre o Autor:  Rouxinol do Rinaré (Antônio Carlos da Silva) é cordelista, com mais de 80 títulos de cordéis e 30 livros (infantil e juvenil) publicados por diversas editoras do Brasil. Várias vezes premiado, tem muitos de seus livros adotados em projetos de educação das escolas públicas de vários estados do país.
Teve, por duas vezes, livros no catálogo da Feira Internacional de Frankfurt, na Alemanha.  Seu trabalho é citado na França nas revistas Latitudes, Quadrant e Infos Brèsil.
Rouxinol do Rinaré atua também como revisor e ministrante de oficinas de Literatura de cordel.

Contatos do autor:
Rouxinol do Rinaré – (85) 99604.9374.






quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

EU INDICO A LIVRARIA LAMARCA!



Vocês sabiam que em Fortaleza, no século XIX, havia mais livrarias do que existem hoje? 
Por incrível que possa parecer, numa cidade analfabeta e com o número populacional muito inferior ao que hoje apresentamos, tínhamos mais opções de agências de livros/livrarias na cidade.
Quando me refiro à livraria, não me refiro a papelarias, mas sim a estabelecimentos comerciais que têm, como seu produto principal, livros.
E digo mais, aquelas livrarias no passado tinham um papel cultural importantíssimo na sociedade – mesmo quando, não me iludo, atendiam em grande parte a uma elite –, pois seu proprietário ou principais colaboradores também eram leitores, conheciam o gosto de seus clientes – e os reconheciam – e atuavam quase como mediadores nos processos de leitura da família, dos adultos às crianças.
Durante muitos anos, novas livrarias surgiriam assim, em bairros, cumprindo esse papel, orientando e incentivando a leitura, reunindo escritores e leitores em torno de figuras populares, servindo de núcleos difusores de cultura.
Com o tempo surgiriam as “megas”, os protótipos gigantes do consumo, tubarões pirotécnicos a engolir os pequenos negócios e a deixar em transe as editoras e autores que passavam a sonhar em habitar aquelas gôndolas e prateleiras dos “mais vendidos”, mesmo quando bastava pagar para estar lá, independentemente de vender qualquer exemplar.
Assim, da mesma forma que em muitos municípios do interior cearense não existe sequer uma única livraria, na capital assistimos à derrocada de alguns exemplares de lojas que atuavam como os tais núcleos.
Pior, essas “megas”, que são muito exigentes, invisibilizaram muito a nossa produção local. Dos autores e das pouquíssimas editoras cearenses (cada vez menos), pouco se vê nelas. As coisas acontecem – e quando acontecem – na base da amizade, de um ou de outro caso de súplica de joelhos ou coisa do tipo "temerosas transações". Depois do chororô, muitas vezes nem se é prestado conta das vendas e quando acontece, após a venda efetiva, a editora deve esperar no mínimo 6 meses (o autor, então, nem se fala). Não gostou não? OK, devolve-se o livro ao reclamante. E pasmem: isso porque essas livrarias “MORDEM”, sem gastar um tostão, 50% do preço do exemplar. Imagine!
Daí elas, muito brilhantes e iluminadas, nos mandam e-mails de promoções e ofertas fantásticas – nem parecem estar em crise e com pedidos de recuperação judicial –, enquanto não prestam as devidas contas, principalmente com as pequenas editoras que vão se quebrar antes delas, e ainda nos fizeram o desserviço de extinguir aquelas pequenas livrarias que, essas, sim, serviam e reconheciam aos seus clientes.
Em Fortaleza, temos um case: a Livraria Lamarca.  
A Lamarca, mesmo de recente instalação (em um dos bairros mais charmosos e intelectuais de Fortaleza, o Benfica) e sendo dirigida por jovens, surgiu com a proposta de vender livros, claro, mas de servir à comunidade. Como as livrarias do passado, reconhece os seus frequentadores, reúne autores e leitores em torno de ações culturais, promove e apoia lançamentos, saraus poéticos, clubes de leitura, cursos, oficinas e, além do catálogo diversificado para gostos distintos e de um ambiente agradável e acolhedor – conheci alguns bem parecidos em Portugal –, também é possível fazer a sua reunião de trabalho e, por atuar também como restaurante e bar, experimentar de sua culinária (no almoço, todos os dias, uma opção VEGANA), beber umas cervejas e tomar gostosos cafés, enquanto apreciamos livros que iremos adquirir ou ouvimos a boa música e a poesia de nossos autores/compositores locais.
Enfim, a Livraria Lamarca é um local de encontros, de memórias e de afetos, coisas que uma casa de livros não poderia deixar de ser. As pessoas, assim como os livros, têm nome, e devem ser tratados como tal.
EU APOIO A LIVRARIA LAMARCA por entender que devemos enquanto sociedade estimular projetos dessa natureza.
Assim, em DEZEMBRO, que na sua lista de presentes de Natal e de fim de ano possamos ter LIVROS. E que esses livros sejam adquiridos na LIVRARIA LAMARCA. Aliás, ela está com descontos promocionais para este mês na compra de seus livros.
Vamos participar dessa campanha?
CONHEÇA A LIVRARIA LAMARCA!

Endereço: Av. da Universidade, 2475 - Benfica, Fortaleza - CE, 60020-180
Horário de Funcionamento: 10 às 21h (segunda a sábado)
e-mail: livrarialamarca@outlook.com


sábado, 7 de dezembro de 2019

"Marca Dor", de Raymundo Netto para O POVO (na íntegra)



Fulgêncio colocara um livro em sua estante. Aparentemente mais um a compor o acervo de bibliófilo reconhecido. Antes de fazê-lo, entretanto, deitaria em seu interior, como a divisar qualquer coisa — o que não era o propósito —, um pequeno marcador de página. Acredite: todos os livros naquelas estantes de arrodear sobejamente o salão de sua afamada biblioteca encerravam marcadores de página, na verdade, esta sim, a coleção queridinha de Fulgêncio.
Ria-se ele quando os intelectuais e estudiosos da cidade ou dos arredores deitavam olhos basbaques diante do relevo de seu acervo literário, tecendo-lhe comentários dos mais prestigiosos. Ora essa, de nunca sonharem que para ele a aquisição de tais obras era um preciosismo, um capricho de quem a sorte vingou fortuna. Ademais, era mesmo um colecionador de marcadores de página e, assim, dava-se o luxo de escolher berços de grande valia, condizentes àquelas supostas preciosidades. Ali, os encontrava de todos os tipos e formas. Nem sabia desde quando, mas, viajante contumaz, dera um dia de sair em busca dos gêneros possíveis, fossem de papel cartonado, seda, renda, osso, couro, palha, em origami etc. Desde então, cada um a lhe chegar às mãos, provocava das vezes de extrair-lhe lágrimas ou, no mínimo, de render a noite inteira da mais fervorosa contemplação. Os livros? Que os sebistas se preocupassem com eles. Tinha-os a seus pés.
Aqueles a não lhe compreender a mania, eram de pronto tachados de ignorantes: “Não reconhecem um tesouro quando estão diante de um!”, o que não o aborrecia, absolutamente; ao contrário, o exaltava diante das poucas visitas fatigadas de histórias, mais de milhares, contadas demorosamente diante de um silêncio ouvinte a admirar como era possível que cada pecinha daquelas, nas mãos de Fulgêncio, tomasse ares de brilhantes.
Numa noite não vulgar, chegou a um salão de festas. Figura ilustre e bem-posta na vida, fora recebido com etiqueta e não tão sinceras lisonjarias. Até o anfitrião deteve-se a saudações aligeiradas de quem não pretendia estragar a noite com a verborragia de colecionador: “Convidei, mas pensei que não viesse... É doido!”, justificava à mulher, irritada.
Beatriz, filha moça do casal, ao vê-lo rodopiar altivo e solitário entre os convidados, e sabedora de ele ser proprietário de basto patrimônio literário, aproximou-se. Era, dizia, uma leitora voraz, grande apreciadora da literatura e, em especial, da poesia. Visivelmente ingênua, transbordava um discurso meloso e romântico que enjoaria até o Fulgêncio, não estivesse ele entediado da ausência de ouvintes. As suas histórias de caça a marcadores pelo mundo entalavam a sua garganta e, não por outro motivo, aceitou conhecer o acervo da casa.
E assim, Beatriz o encaminhou à biblioteca, certa de que a sua coleção pessoal não o animaria, mas também ela sofria da necessidade de falar a alguém.
Apesar da pompa do gabinete, seu acervo era modesto. O convidado expressou apatia. O que Beatriz não sabia, porém, é que aquele esnobe e presunçoso, de certa forma, tratava-se de um ignorante. Nada entendia de poemas, de literatura, não acompanhava folhetins, e tinha os livros de sua vasta biblioteca apenas como invólucros caros para seus diletos marcadores de página, estes sim, a seu ver, genuínas obras de arte.
Fulgêncio pôs-se a olhar as fileiras de livros encadernados. Sacava um ou outro da estante. Lia-lhes o dorso com falso interesse, a assentar o pincenê esverdeado ao nariz. A jovem, deslumbrada, aproveitava e punha-se a descrever obra e autor num falatório, sabemos, desperdiçado, recebido com monossilábico desentusiasmo.
Surpreendeu, então, quando o Fulgêncio esbarrou-se na escrivaninha. Nela, quatro ou cinco marcadores de página, coloridos, com detalhes dourados ou de vidro, quase artesanais. Quis saber deles, da sua origem, mais e mais... Ela, interrompida na descrição de Álvares de Azevedo, logo dispensou: “Se o senhor gostou, pode levá-los, eu não uso.”
“Não, como não?”, absurdou-se, e, mecanicamente tomou o exemplar que a moça tinha nas mãos. “É o que você está lendo agora? O poeta?” Ela sorriu e assentiu com a cabeça. Fulgêncio abriu o pequeno livro numa página marcada e surpreendeu-se: em vez do tradicional marcador, havia uma rosa murcha, descorada, decrépita. Era ela, aquela rosa, o marcador único que orientava e guiava a sua leitura: “Não disse ao senhor que não precisava?” E sorriu, atrevida. “Que songamonga!”, pensava afrontado. Não quis ver mais nada, lançou o livro na mesa, colocou os marcadores no bolso. Pediu licença, tinha que beber água, precisava de ar, de qualquer coisa. Não, nem precisava se incomodar, ele mesmo buscaria. Não estava se sentindo nada, nada bem!
Passados alguns minutos e dois ou três copos de vermute, o colecionador começou a delirar. Admitia: nada havia de mais original e singular do que aquela rosa. Um exemplar pálido, amarfanhado, é verdade, mas que viços e frescuras trazia inda em si, a ponto de sobrepujar os demais e de resistir ao seu próprio fim? Na cabeça do velho Fulgêncio os pensamentos rodopiavam em torno da rosa da estudante, quando destemperou-se: aproveitando os clamores de vivas e o estalar de champãs, desatinou pelo corredor em direção ao gabinete. Tomou o livrinho com as duas mãos e, trêmulo, sorriu à rosa como a pedir seu consentimento. Não esperou. Escondeu-o no fraque e retirou-se logo, apanhando o primeiro coche a passar na rua.
Ao passo de casa, estreitava o livro ao peito, chorando de alegria e vergonhas. Haveria de pedir desculpas, sim, pela grosseria da furtiva retirada. Haveria de encontrar também uma forma de buscar reparação àquela mocinha, coitada... Mas depois, só depois.
Chegando à sua biblioteca, acendeu o lampião, largou-se das roupas, arremessou de lado o livrinho de Beatriz, julgando-o não merecedor de tal exclusiva prenda, tão belo e extraordinário exemplar, um cálice amoroso que ora colhia com cuidado e sentia, como virgem, em seus lábios... Escolheu novo livro, um dos mais raros, e deitou-lhe a rosa na página 89, não percebendo que ferira o papel com um espinho, de onde manaria, por sobre a última estrofe de um poema, um traço indescrito de dor e de sangue.



domingo, 1 de dezembro de 2019

Lançamento "Retorno de Bennu", de Majela Colares (12 de dezembro, a partir das 19h - Livraria Lamarca)


Para ampliar, clicar na imagem!


Sobre a Obra "Retorno de Bennu"

O retorno de Bennu, livro que o leitor tem em suas mãos, divide-se em quatro seções, “Percepções”, “Alumbramentos” – palavra que nos recorda imediatamente o nosso amado Manuel Bandeira –, “Confluências” e “Lampejos”, sendo que a primeira e as duas últimas são constituídas de uma forma entre o aforismo e o poema em prosa, esse admirável achado de Aloysius Bertrand em seu Gaspard de la nuit que, genialmente desenvolvido por Baudelaire nos Petites poèmes en prose e por Rimbaud nas Illuminations, entrou de maneira altamente prestigiosa século XX adentro, aí incluído o Brasil, com exemplos magistrais de Jorge de Lima, do pouco acima lembrado Manuel Bandeira, de Carlos Drummond de Andrade, de Mário Quintana e muitos outros. Já na segunda e mais vasta das seções deparamo-nos com a arte característica de grande parte da obra de Majela Colares, a de um consumado poeta lírico, oscilando, com notável liberdade, entre a forma fixa e o verso livre, mesma liberdade com que prescinde das rimas ou as utiliza em suas numerosas espécies, das quais as relativamente bem divulgadas não passam das consoantes e das toantes. Em relação ao título, aparentemente enigmático, uma nota do autor nos explica que “Bennu” é o nome egípcio para a Garça-real, a Fênix da mitologia clássica, o que aclara tudo de forma meridiana.
Os cinco poemas em prosa que compõem “Percepções”, de um andamento rítmico irretocável, formam como um pórtico do livro. Se “Manuscrito” é uma crítica clara à automação da vida, e, mais ainda, da consciência humana, a reflexão sobre a Natureza dá origem a “Cantata”, assim como, mas agora num nível cósmico, a “Miragem”. Já em “Mormaço” e “Ruminança”, a Natureza brilhantemente pintada é a do sertão do seu Ceará natal. Em todos os poemas o olhar em profundidade do poeta, aquele mesmo que dá origem a toda a filosofia, casa-se à sua específica experiência vital.


Já em “Alumbramentos”, a única seção de O retorno de Bennu inteiramente composta em versos, o poema inicial, “Trilha umbilical remota”, que remete ao título, volta-se da Natureza para a História, inserindo-a, por fim, no seu quadro cósmico, enquanto a Natureza retorna, religiosamente, no poema em dístico que lhe sucede, “As horas de Deus”. Pouco depois chegamos àquele que nos parece ser o poema central do livro, e que, muito coerentemente, lhe dá título. Vasta composição em versos livres, trata-se de um desses raros poemas totalizadores, um desses ainda mais raros momentos em que a visão do poeta, confundido com Bennu/Fênix, a que renasce eternamente das próprias cinzas, procura abarcar a Humanidade num único relance, histórico, geográfico (numa fascinante enumeração fluvial) e especificamente humano, neste caso através de uma plêiade de mestres, mestres artísticos, filosóficos, científicos, éticos ou espirituais, da eleição formativa do autor. Trata-se, enfim, de um poema de uma ambição quase inencontrável na poesia brasileira contemporânea, cada vez mais gostosamente refestelada no confortável e informe território das bagatelas e das insignificâncias.
Em seguida o leitor se depara com uma série de poemas especificamente líricos, todos de um lirismo reflexivo, diretamente centrados na vivência do poeta, carregados de uma religiosidade algo panteísta, como naqueles que repetem a invocação “Vai, amigo vento, vai”. Perto deles, em “Insônia de uma noite moderna”, reaparece a visão bastante crítica da contemporaneidade que já encontráramos no primeiro poema do livro, “Manuscrito”. Em toda essa parte, composta em forma fixa, as duas referências centrais, formalmente falando, são os sonetos uma e forte proximidade com a terza rima, de mais do que provável ascendência dantesca, relembrando que é de Dante uma das epígrafes que abrem o livro, bem como seu nome é um dos citados entre os Faróis – para usar a imagem baudelairiana – do poema “O retorno de Bennu”.
“Muito além do mistério”, poema final de “Alumbramentos”, é como uma declaração de princípios de um poeta para o qual o cerne da poesia está justamente naquela que consideramos uma das suas mais agudas definições: “a arte de dizer apenas com palavras aquilo que apenas as palavras não conseguem dizer”.
Ao adentrarmos “Confluências” o verso fica definitivamente para trás, pois daí até o encerramento do livro nós nos encontraremos na fronteira sutil entre o aforismo e o poema em prosa. Nesta terceira seção a forma do aforismo nos parece, sem dúvida, dominante, aforismos de índole filosófica, voltando o poema em prosa a tomar a dianteira em “Lampejos”, como já a tivera na curta seção inicial “Percepções”. A reflexão sobre a Poesia – assim com maiúscula –, sobre a sua alta e ao que tudo indica para sempre perdida função de “Mestra da Humanidade”, posição que manteve da noite dos tempos até pelo menos a decadência da Grécia sob o domínio macedônico e romano, é um dos temas de eleição do autor, motivo pelo qual “Lampejos” consiste numa muito curiosa fusão entre poema e prosa e crítica, ou até mesmo, poderíamos dizer, profissão de fé.
Encerra o livro o pequeno poema em prosa “Convicção”, onde aflora o tema dos temas, o tempo, nosso mistério fundador e nosso palco inarredável, o que nos remete diretamente à ave mitológica que, em seu mais remoto avatar egípcio, dá título à obra.
O explícito Humanismo que domina a poesia e a visão do mundo do grande poeta que é Majela Colares situa-o numa posição altamente sui generis dentro do panorama da nossa poesia contemporânea. Sob o império do mais completo relativismo, a grandeza de sua convicção soará anacrônica ao império do efêmero e do seu cortejo de modismos, que avassalou o Ocidente, o qual, diga-se de passagem, se esforça heroicamente para espalhá-lo para todo o resto do mundo.
Felizmente tal fato não arranha um verso, uma palavra, uma vírgula dos poemas que aqui se encontram, o mesmo que ocorre em relação a toda e qualquer poesia autêntica.

Carlos Vasconcelos

Sobre o Autor


MAJELA COLARES, poeta e contista, nasceu em Limoeiro do Norte, Ceará, julho de 1964. Publicou os seguintes livros em POESIA: Confissão de Dívida, 1993; Outono de Pedra, 1994; O Soldador de Palavras, 1997; A Linha Extrema, 1999; Confissão de Dívida e Outros Poemas, 2001; O Silêncio no Aquário / Die Stille im Aquárium, 2004, edição bilíngue português-alemão, trad. Curt Meyer-Clason; Quadrante Lunar, 2005; As Cores do Tempo - 2007 1ª ed. – 2009 2ª ed.; Memória Líquida, 2012; Margeando o Caos/Vorejant el Caos, 2013, edição bilíngue português-catalão, trad. Joan Navarro e O Retorno de Bennu, 2018. EM CONTOS: O Fantasma de Samoa, 2005. Tem participação em antologias publicadas no Brasil e no exterior.