sexta-feira, 24 de novembro de 2023

"Eurrico ou Eugênio?", de Raymundo Netto para O POVO


Quem o visse chegar ali, caminhando a passos frouxos e profundos, teria a segura impressão de que estava a entregar o pescoço à forca. Mas não ele. Não o Eugênio.

Sabia-se lá, mas cruzava o extenso balcão do cartório numa tristura medonha, maior do que a de uma noite sem novela ou sem amor, o que viesse primeiro.

“O que o senhor deseja?”, arriscou uma balconista.

Vinha registrar um filho, mais um “último”, pois o mais velho dos três também o seria, assim como o segundo ou como este, e, provavelmente, o próximo.

Recebeu parabéns de um ou de outro circundante: “Um filho? Que graça: um filho!” O mais idoso tapou-lhe nas costas a benção recebida do Grande Pai Celestial. Porém ele nem nem. Tinha pressa. Registrar a criança e se mandar logo dali.

“Qual será o nome da criança, senhor?”

“Eurrico!”, foi o que respondeu. Assim, na bucha.

“Eurrico? O senhor tem certeza, senhor?”

Absoluta. Ele, o pai, era Eugênio, não queria isso para a criança, que o bichinho não tinha culpa. Culpa mesmo – enfatizava com o indicador erguido solene no ar – era da mãe. Ali, todos sabiam... sempre era da mãe!

A atendente, sem entender bulhufas daquele discurso, tentou contornar:

“Bem, o senhor não prefere, ao invés de... Eurrico, Eunício?”

Eunício? Deus o livrasse: “Que nome terrível! De jeito algum.”

Lembrava: “Eu... Gênio!” Trazia no peito franzino o orgulho de criança. Gostava de ler desde cedo. Inteligente e curioso. Um gênio de verdade, como sua mãe anunciava, enquanto o sol se punha, por cima do muro para a vizinhança. Seus pais nunca tiveram problema com ele. Nunca pediu nada demais. Tudo suficiente, até na respiração. Costume que carregou por toda a vida, numa humildade e modéstia – complementadas com a realidade do salário – de fazer vergonha.

“Quem se abaixa muito, mostra o fundo das calças”, dizia a sua avó, impressionada como ele não havia sido engolido pelo mundo, um monstro sedento de gente direita para arruinar. Mas Eugênio, porque ninguém o notara, vingou, cresceu, enamorou-se pela primeira mulher a olhar para sua testa rala e casou-se. Ademais, aquela mulher, provavelmente uma resignada, era bonita. Ninguém, nem a sua própria mãe, entendia como aquela moça jeitosinha dera cabimento ao sem graça do Eugênio que, claro, na sua inutilidade existencial e contagiosa, acabou por lhe enfear a vida e a figura.

Restava-lhe um emprego chinfrim, um ganho de nada, trabalho excessivo e o não reconhecimento, o que o deixava deveras arrasado nos poucos momentos de folga que tinha, nos quais passava horas e horas parado, feito estátua de ilustre desconhecido, assistindo à vida que passava em torno de si. Assim, pensava: de que adianta ser gênio? queria mesmo era ser rico. Eu... Rico! Encucado com isso, botou pra fora a entranha quando aquela estranha lhe perguntou: “Afinal, meu senhor, qual é o nome da criança?”

O nome? ... deixasse ver... Eurico. Seria esse: Eurico! Com dois “r” para não ter dúvida e ficar mais estiloso: “Eurrico!”

E Eurrico de quê?”, insistiu a moça se abanando.

“De merda, que é o sobrenome do pai, é que não vai ser...”




 

terça-feira, 7 de novembro de 2023

"Vida?", de Raymundo Netto para O POVO


“Esses sãos desígnios de Deus, e eu os aceito.” Essas foram as últimas palavras de minha mãe, deitada em uma maca hospitalar, antes de cerrar os olhos pela última vez, como se fosse apenas cair em sono profundo. Estava ali, toda arrumada, linda, para assistir a um culto do Dia dos Finados, quando o coração emudeceu. A equipe médica tentou trazê-la de volta e ela não quis. Todos nós saberíamos: ela não queria mais. Era o ano de 2016, e um dia propício para partir. Passaram-se sete anos, desde então, e ela continua viva.

Minha avó Alice, mãe de meu pai, ao contrário, turrona e contestadora, escolheu justamente essa data, o dia dos mortos, para nascer! Era bem dela... Próximo de sua morte, não queria ver ninguém. Permitia apenas a filha que residia e tomava conta dela. Fora ela, que ninguém a visse assim, em plena decadência de seu rumo à morte.

O seu filho descansaria quase dois anos após a passagem de minha mãe, no dia 25 de outubro de 2018. Queria curtir um pouco mais dessa vida e dessa terra que tanto amou. Tendo a sua filha caçula como cúmplice, caminhava no calçadão à beira-mar, ia à praia colocar os pés na areia e no mar, tomar sua água de coco, rever amigos – mesmo quando muitas vezes não se lembrava deles. Ela comprava suas roupas, o arrumava, o deixava bem cheiroso, e o levava a locais em que se tocava músicas de seu gosto e, quando possível, arriscava até dançar. Mas, diante do Alzheimer, que o deixava muitas vezes sem condições de apreciar tais coisas com a intensidade que gostava e queria, ele passou a pensar também na sua partida. Por vezes, falou às filhas: não contassem com ele para o aniversário de oitenta anos que planejavam para o ano seguinte, pois ele mesmo não iria. Claro, aquela festa foi cancelada. Mas festa boa de verdade era o meu pai.

Nunca tive medo da morte, mas quando penso nela, me vem a ideia de desperdício, de coisas que não fizemos, nem conseguiremos mais fazer. Chega um dia em que temos que escolher. O que é o mais importante para nós ou o que não gostaríamos, de jeito algum, de deixar de ter feito, escrito ou dito nesta vida. Outros velhos planos de “um dia...”, melhor talvez nem tentar. Passou.

Entretanto, a ideia da má velhice sempre é um incômodo íntimo. A perda crescente da memória, dos movimentos, da disposição, da utilidade e do próprio orgulho é lamentável. Durante anos, assisti a personalidades renomadas e festejadas, pessoas que aprendi a admirar na minha adolescência e juventude, definharem, serem esquecidas, confessarem as suas dores e a sua sensação de incompreensão daquele “outro mundo” que surgira e que nada mais tinha a ver com o “seu mundo”, aquele lugar seguro no qual cresceu, contribuiu e chegou a protagonizar.

Os familiares, pelo apego natural, desejam a eternidade para seus pais, muitas vezes por não entender que alguns estão vivos apenas porque não morreram. Parece óbvio, mas não é. Um dia, essas pessoas perdem as referências de toda uma vida. Os pais, irmãos, amigos, colegas continuamente cumprindo a sua travessia. Os seus programas de TV, ídolos, os autores e compositores preferidos, aqueles bares ou restaurantes onde encontrava seus amigos mais queridos, tudo, tudo desaparecendo com o “seu” mundo. Difícil não se perguntar o que resta para você, quando será a sua vez, o porquê de ainda estar aqui... Um vazio que se torna ainda pior com a coleção de “não possos” que os mais próximos lhe impõem “por amor”: não posso beber, fumar, comer aquele prato predileto bem salgado ou bem doce, sair sozinho... Os “não posso” são tão cruéis quanto os “não consigo”, cada vez mais frequentes, dia a dia, aumentando uma enfadonha lista de inutilidades e frustrações. Sim, a vida é o exercício de perder e a morte não assusta tanto àqueles cuja vida pode não ter mais sentido algum. Temos que aprender a viver, tanto quanto a morrer.





 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

"Imita a Vida, a Arte?", de Pedro Salgueiro para O POVO


Em diversas ocasiões constatei que a vida imita a ficção bem mais que seu contrário, não raros são os casos em que um fato recentemente acontecido nos remete a textos há tempos escritos, seja em qualquer gênero: numa conversa na repartição alguém contou do caso amoroso entre colegas em que um casmurro sujeito era apaixonado por outra sapeca ruiva, que por sua vez morria de amores por um coroa meio gordinho e sem graça, que só tinha olhos para a elegante e esquiva magricela do sétimo andar, que nunca correspondeu seus (meus?) olhares pidões e jurava fidelidade a J. Pinto Fernandes, que não estava na história nem era conhecido por ninguém do prédio inteiro em que circulávamos há décadas - o Poeta Carlos Drummond de Andrade acabou sem querer interferindo na conversa.

Várias vezes, em entrevistas sobre literatura, bate-papos em colégio sobre livros, alguém desenterra alguma crônica ou conto cometidos por mim e pergunta sobre sua veracidade, se “aquele que fala da moça que fugiu da cidade teria sido uma tia de um político em tal cidade que sequer andei um dia?”, ou se “aquele crime em que o sujeito voltou depois de décadas à sua terra natal para ser morto não teria relação com a família dos Anzóis Carneiro?” Claro que digo que não, mesmo que alguém acerte na hipótese, pois já sofri horrores ao ter personagens identificados com pessoas “reais”, magoei familiares, amigos e conterrâneos. Por isso nego até a morte: nem sabia de tal história; aproveito para inverter a sentença: a vida imita (ou limita?) a arte!

Mas um pequeno relato meu tem “acontecido” bastante em diversos lugares, o de um personagem traidor, machista, diabólico (segundo os que me contam em meio a meu espanto), que acaba prostrado e “cuidado” pela sua “vítima”: não foram poucos os leitores que me relataram histórias quase idênticas a este reles continho da década de 1990:

Bem antes

Ele nunca fora caseiro; antes passava em casa apenas para trocar de roupa – resmungava um desaforo à esposa enquanto se encharcava de perfume. Os antigos olhos tristes, distantes na direção da porta que ele logo atravessaria para voltar apenas na manhã seguinte. Agora fingia não notar que ela escondia na sala sua melhor roupa, disfarçava no vestido a colônia de alfazema; cuidando resignadamente dos mínimos detalhes: – Querido, se precisar do penico me chame. E ela de sono tão profundo bem no quarto ali de lado: – Se eu não escutar, Lucinha acode, que ela tem o sono mais leve. Na manhã seguinte também fingia não perceber seus olhos inchados, o nervosismo das mãos, a solicitude gratuita, o amor eterno...

– Querido, dormiu bem!? – E afirmava ele com a cabeça, o olhar distante; o lençol escondendo a mancha de urina.

Ultimamente nem a filha mais acordava, com o mesmo sono pesado da mãe – na hora do almoço vislumbrava seus belos olhinhos vermelhos, que não mais o miravam de frente, mas sempre procurando algo para fazer.

Também fingia não notar o jeito cúmplice das duas; no passado: tão distantes – agora altivos, mais de irmãs. Não ligava para o estacionar dos carros na frente da casa, antes bem calma – pois sabia que inevitavelmente elas já estavam dormindo no quarto ao lado: e quão inútil seria chamá-las.









 

terça-feira, 24 de outubro de 2023

"Mortal Combate", de Raymundo Netto para O POVO

 

Uma manhã iluminada e brilhante escorria pela varanda fresca do apartamento quando Davina sonoramente deu por certa a condição do marido: “Você é um idiota! I-di-o-ta!” Dito isso, lançou-se porta afora, a bolsa ainda pendente, irritada e atrasada para o trabalho.

Elias, que mal havia acordado, ficaria por muito ainda ali, imóvel como uma estátua de Rodin, digerindo o adjetivo a ele empregado. Pensava, e não sabia por que se dava ao trabalho, sobre a última vez que ouvira dirigido a ele tamanho agravo. Nem lembrava!

Na verdade, Elias era homem público. Sabia-se carismático, cientista reconhecido e premiado pela sua intelectualidade e vasto conhecimento, um líder, um homem da paz. “Tal homem”, ruminava em sua filosofia mais vã, típica dos solitários, “só poderia encontrar um lugar no mundo onde poderia ser menosprezado e humilhado. Esse lugar seria, paradoxalmente, na sua casa, no seio familiar e pela própria mulher.”

A frase, durante os instantes do café também mal digerido, foi construída, descontruída e reformulada num exercício digno de quem faz do pensamento o seu próprio chão. Porém, no entardecer do natural percurso, algumas dúvidas obscurecem e ele saiu de casa se sentindo pequeno, terrivelmente pequeno e nulo, uma pulga, ou o filho de uma, de maneira que teve que pular degrau por degrau da escada e, não conseguindo abrir a porta do carro, determinou-se a ir a pé à Universidade que, embora não fosse distante dali, naquela situação, só chegaria, com muito esforço e risco, quase ao final da manhã.

Chegando, a recepcionista o saudou, estranhando o seu silêncio, enquanto ele passava por baixo da porta. A sua secretária, vendo-o tão diminuto, o pegou, o colocou no colo e, com o indicador, pôs-se a fazer carinho naquilo que parecia ser as suas costas. Meio sem jeito, Elias traçou um longo caminho de conjecturas, quase mitológicas, sobre a existência humana até chegar à injúria disparada contra ele. Ela mostrou-se solidária e até reprovou a insensibilidade da esposa: “Será que ela não vê? O senhor é, é... um gênio!”

Daqui a pouco, algumas outras colegas, curiosas, comoveram-se com a dor daquele serzinho e tomaram coro num sarau elogioso de fazer corar o Barba Azul. Com isso, logo, logo, Elias teve que sair – a contragosto – do colo da colega, pois crescia a olhos vistos a cada depoimento e relatos generosos sobre as suas inúmeras qualidades. Assim, com pouco, teve que trabalhar do lado de fora do prédio, pois, agigantado como estava, não cabia mais nele. Suas aulas, recebidas sempre com admiração e aplausos efusivos, foram ministradas naquela tarde ao ar livre, no anfiteatro da Universidade.

Ao final do expediente, Elias, como remoçado, cheio de ideias e planos para o futuro, despediu-se dos colegas, agradecendo a todos pela empatia e humanidade, e pôs-se para casa, assoviando e medindo os passos para não causar estragos no trânsito da avenida.

Ao chegar à quadra de seu edifício, foi surpreendido com uma pedra lançada em sua testa e desabou no chão. Antes de desmaiar, porém, viu Davina, com uma funda a rodopiar em sua mão, gritando: “Pensa que tenho medo? Tamanho não é documento, não!”

Então, novamente reduzido, desacordado e no estado ideal de inconsciência, Davina o recolheu da calçada, colocando-o na palma de sua mão e, após carinhoso beijo e juras de amor, o deitou na cama do casal, atraiçoado berço da felicidade eterna, enquanto que, para Elias, o que lhe restava era sonhar com o consolo do regaço quente da secretária.



 

 

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

"Portas Fechadas", de Raymundo Netto para O POVO


Para o amigo Manuel Bulcão

 

Todo mundo sempre me dizia: quem tem depressão, não pode deixar as portas fechadas!

Não entendia o porquê das portas, mas sabia, sim, o que era depressão. Uma tristeza sem fim, sem razão, e, ao mesmo tempo, com todas elas. Uma sensação de vazio imenso, a angústia, o coração apertado, uma vontade sofrida de chorar... Aliás, certa, certa, só mesmo essa vontade, quase vergonhosa, de chorar.

Geralmente, minha casa estava escura. Trancava as portas e as janelas, não queria ver ninguém. Era doído mostrar um sorriso de aparência, fingir atenção ao ouvir as medíocres histórias do dia a dia de todo o mundo, assisti-los a rir de piadas velhas ou a me contar de suas esperanças e crenças e, o pior: vê-los a zombar das próprias desgraças!

Televisão ou rádio, eu nem ligava. Ouvia música, sim, mas sempre, sempre, as percebia tão tristes quanto eu. No mais, sempre me diziam: Olhe, quem tem depressão nunca pode deixar as portas fechadas, hein?!

Pus a fazer assim: não as fechavas mais, contudo, também não aparecia mais à porta, para que não me vissem, não me incomodassem... esquecessem de mim! Então, quando os mendigos ou carteiros batiam palmas no portão, eu ficava imóvel, silenciado, olhando pela fresta da basculante até eles se irem de vez.

Eu escrevia. E escrevia sempre, seja o que fosse, escrevia. A cabeça sempre ocupada, cheia de pensamentos a se acotovelarem, não me deixando dormir. Assim, varava as madrugadas e escrevia. Os meus dedos cumpriam por mim aquelas prometidas caminhadas pela praça ou à beira-mar recomendadas pelos amigos como terapia. Eles já achavam: precisava de terapia.

Em minha mente se passavam todos os tipos de acontecimentos, porém, na minha vida mesmo, sentia que nada acontecia; nada me suportava a vida!

Sentado diante do computador, lembrava momentos passados, rostos quase esquecidos, antigas promessas, dentre elas a maior, a da felicidade, feita ainda à juventude, que se foi sem que me desse conta. Não acreditava um dia envelhecer. As pessoas diziam: “mas você não tem nem quarenta anos!” Eu nem que acreditava...

Olhava a caixa de mensagens de cinco em cinco minutos: nada! Ficava pensando que logo, logo, alguém escreveria falando de seus planos e eu, com ele, sonharia, desfiando o sonho alheio, ponto a ponto, até cansá-lo e tirar-lhe o gosto. Eu mesmo, fazia tempo, não colecionava sonhos, não esperava por nada nem por ninguém. Eu não acreditava mais.

Nisso, de repente, um vento entrou e fechou-me a porta da sala. A casa escura! Lembrei: quem tem depressão não pode deixar as portas fechadas!

Senti medo. O que aconteceria, então? Vozes frequentes ao pé do ouvido mudaram o discurso: ele morreu? ele morreu? ele morreeeu... Uma sombra pesada em tom de cinza pairou sobre minha cabeça. O frio desceu-me a nuca e fiquei em silêncio, atônito, a esperar, mas nada aconteceu. Na sala, tudo parecia olhar para mim: os livros, os quadros, as prateleiras, as canecas... até o gato que numa apatia incômoda não ria nunca, também me fitava... eles sabiam... mas nada aconteceu!

Fui ao banheiro, olhei para o espelho, e não era eu quem estava lá. A garganta apertava-me, e eu chorei, chorei, chorei, abri as torneiras... mas nada aconteceu. Nada acontece nunca e nunca mais abri as portas nem os olhos, trancado para sempre na minha mais absoluta solidão.

 




 

"O 'Livro das Ausências', de Hermínia Lima", por Raymundo Netto

 


Hoje é um dia especial, pois aqui nos reunimos, não apenas para celebrar mais um feito, um legado cultural de Hermínia Lima, que admiramos, enquanto mulher, mãe, amiga, militante, profissional e poeta, mas também porque neste ambiente ora respiramos, falamos, lemos e nos alimentamos de poesia.

Contudo, trago aqui uma constatação nada original, mas sempre necessária: a poesia é de uma inutilidade singular. No mínimo, uma utilidade inútil, como defendida por filósofos, estudiosos e até, com um certo embrulho no estômago, pelos próprios ou pelas próprias poetas ou poetisas.

Entre esses poetas, o marginal Alcides Buss, autor da obra Círculo Quadrado, que afirma que a autenticidade da poesia reside exatamente na sua inutilidade. E entende os poetas como “seres bastante incomuns que escrevem com o corpo todo”, o que os diferem dos demais escrevedores que usam só as mãos, os mais simples, ou aqueles que usam as mãos conjugadas à memória, à imaginação, ao pensamento. Mas nada, assegura ele, se compara ao poeta que escreve com o corpo todo.

E quando fala do corpo todo, admite que o seu corpo e o corpo do mundo também se entrelaçam, se fundem ou se completam sinergicamente, de maneira que o sol, a lua, as estrelas, o crepúsculo, as marés, os mares e os seus mistérios, as árvores, as flores que desabotoam nos jardins, os seus perfumes, os animais, as crianças, os homens, as mulheres, os seus amores ou dores, tudo, tudo é acolhido nesse corpo todo.

Sabemos que a poesia percorre um caminho indefinível que vai da pacífica oração ao exorcismo, da quase inocente magia à bruxaria, da sensação leve da harmonia à angústia do caos. Mas nunca, nunca é passiva.

Diante desse cenário, nos perguntamos para que serve à poesia... Ou talvez, a quem ela serve? Ao sistema consumista? À estrutura do poder, da política? À necessidade premente e imediata de lucro todo o tempo, toda a hora, a qualquer custo, como as demais engrenagens de nossa vida a nos escravizar, aprisionar, a nos adoecer, a nos arrebatar covardemente a vontade de viver? O que assistimos hoje é o amargor vencendo a doçura, a ternura que, juramos, não poderia ser perdida.

Não, a poesia é inegociável e, ao contrário das coisas mundanas, ela é livre, pois ninguém a possui e ao mesmo tempo ela, se a porta estiver aberta, nos encontra quando menos esperamos. Quando abrimos os olhos pela manhã ou ao chegar à janela e nos depararmos com a beleza ainda virgem do céu, de um sol despertando molinho, molinho... Quando diante do olhar cheio de vida de uma criança faladeira; quando nos é roubado aquele beijo, mesmo que ainda mudo, num instante em que parecia que nada, nada mais poderia nos acontecer; ou quando a xícara de café quente nos toca os lábios e divisamos coisas que não estão mais aqui, que se perderam em um dos desvãos de nossos caminhos. Sentimos os cheiros, os sabores, ouvimos as suas vozes e nos dá saudade... E saudade, como registra Neruda, é quando o amor ainda não foi embora, mas o amado já.

Hoje, quando a luz acordou o dia

Cada raio acordou em mim uma saudade.

Uma saudade agigantada,

Dilatada pelo pulsar de desbotadas lembranças.

Lembranças dos dias que não vivemos,

Dos encontros que não tivemos,

Do grito abafado pelo desejo contido.

Lembranças da chuva que ainda nuvem...

E v a p o r o u . . .

Até então falamos da poesia, agora falemos dos poemas.

Algumas pessoas, nós os chamamos de poetas e/ou poetisas, se aventuram e ousam com coragem, talento e renúncia a colher desse mundo imaterial os insumos e, tal qual Prometeu o fez, quando roubou o fogo dos deuses para entregar aos homens, modelam e transformam essa luminância poética em forma de poemas, disponibilizando-os para a humanidade.

É o que a Hermínia faz hoje ao nos oferecer o seu Livro das Ausências, uma coletânea de poemas captados desse universo muito íntimo da poeta, desse corpo em interação com o mundo, mesmo que apenas o seu, que ela classifica de ausências que cantam, que gritam, que pulsam, que saltam e que sangram.

E, em meio a eles, seus poemas, independentemente da classificação da autora, nos trazem outras ausências, entre elas as que nos calam, que nos confrontam, que nos devoram até o ponto de ser tão presentes na nossa vida.

O titã Prometeu foi punido por Zeus, que temia que, com o fogo, os homens pudessem se tornar tão poderosos quanto os deuses. A punição era dolorosa: Prometeu, eternamente amarrado a uma rocha, assistiria a uma águia a devorar seu fígado. O órgão se regeneraria diariamente, e, para todo o sempre, a tal águia o comeria.

A nossa poeta, que ora celebramos, nos fala em algum instante de verso: “o respirar enfermo, o peso insuportável de todas as dores do mundo”. E daí trazemos Vinicius: “assim como o poeta só é grande se sofrer” ou “que todo grande amor só é bem grande se for triste”.

Mas então ouvimos um conselho de Hermínia:

Há momentos em que o grito aprisionado

Se agiganta.

Nessas horas, o melhor,

É escancarar a porteira do peito

E permitir vazão

Ao que vem da garganta.

 

A ausência de alguém, de um tempo, de um lugar é um estado de alma. Algo que pode nos faltar materialmente, mesmo que sintamos ou saibamos nunca distantes, quando desse alguém, desse tempo ou lugar nós precisamos, bastando apenas nos conectarmos com a nossa, vamos chamar assim, consciência.

Há, no entanto certas ausências que parecem um sequestro de si, que por vezes nos doem tanto, principalmente enquanto estamos distraídos, e a gente acha até que não pode suportar:

As fotos no velho álbum

Trazem de volta uma saudade

Que rasga o tecido da tarde.

As fotos sorriem para mim

E me fazem chorar.

 

Marilena Chaui nos faz refletir que “falamos porque cremos nas palavras e nelas cremos porque cremos em nossos olhos: cremos que as coisas e os outros existem porque os vemos e que os vemos porque existem. Somos, pois, espontaneamente realistas.”

E é esse mundo realista e transbordante de poesia que encontramos na tessitura da obra de Hermínia, cuja seiva principal a percorrer suas páginas são memórias, sensações, lembramentos, desejos, delírios, despedidas e distâncias.

Tuas cordas nas minhas cordas,

Minha pele nas tuas mãos.

Tu, um vento; eu, uma canção.

Passaste, passei, passamos,

Em vão?

Hoje, somos sombra, ausência,

Saudade e silêncio,

Ou nuvem a dissolver-se

Na noite, na escuridão.

 

Hermínia escreve com todo o corpo. Cada ausência por ela segmentada nos traz a sua presença, uma faceta distinta e verdadeira, e é na verdade dessas saudades poetizadas é que as suas palavras nos tocam. O corpo da poeta em consonância com o corpo do mundo, de todo mundo. Memórias que também são nossas e nos são tão caras, pois são o nosso repertório de vida.

A casa adormeceu silenciosa.

Só as redes cantavam

Sua canção de punhos em movimento,

Acalantando o sono e os sonhos,

Nos braços alaranjados

Das maternas e ternas varandas,

Volutas ao vento vivo e violento

De um outubro saudoso e sonolento.

 

E mais adiante os seus fantasmas, quando seus medos gritavam saindo de sua boca; a chuva a cantar do lado de fora pela janela; o recanto seguro entre as pernas da mãe a pedalar na velha máquina de costura;  as cadeiras na calçada; o cavalo Ventania; o pião de madeira carrepeteando pelo chão e outras brincadeiras de menina-menino; os temperos-cheiros da avó, como beiju de 3 dias guardado para festejo no café da tarde; o seu avô Luís com seus bolsos repletos de bombons; as saudades da terra que a acolheu, São Luís do Maranhão, com suas histórias, seu bumba-meu-boi, da “batucada dos pandeirões, em couros febris tocando toadas na beirada das fogueiras”; o Bento, em tudo ali, o inesquecível Bento.

Além disso, para não trair sua trajetória, encontramos poemas com teor sensualíssimo, arrebatador, eu diria até terrivelmente apaixonados, de marcar com ferro e deixar em carne-viva de brasas:

Se eu pudesse,

Eu pousaria acesa,

Sobre ti,

Como um sol nascente,

De pele incandescente,

E beijaria, calma e solenemente,

Os teus desejos mais insanos.

Se eu pudesse,

Eu rasgaria a pele dos teus pudores,

Eu seria a soma de todos os teus amores,

Só para desaguar em ti,

Minha lava de anseios,

Sobre as tuas costas.

Se eu pudesse,

Eu te sufocaria com beijos,

E queimaria, com o meu vulcão,

Teus rebanhos apascentados,

Sobre tua tranquilidade de pastos.

 

Hermínia, minha amiga, agradeço demais, em nome de todas e todos nesta plateia, esse livro-presente, que honra e dignifica a poesia, a nossa literatura cearense e brasileira.

Hoje num panorama em que há tantos poetas e tão pouca poesia, chega a nós uma obra como essa em que ela está marcadamente presente, com a sua força e pulsar, assim como nós vemos você, e concordamos:

Quando uma leitura nos encanta,

O livro que nos fala nela,

Enquanto conta,

Também canta e acalanta

Nossos desencantos.

O livro acalma saudades

E peles inquietas.

Preenche lacunas abertas

E irriga o vale da vida

Saciando, com saberes,

Nossas sedes e ausências.

 

Meus mais sinceros parabéns.

 

Raymundo Netto, 23 de setembro de 2023



segunda-feira, 28 de agosto de 2023

"Síndico", de Raymundo Netto para O POVO


“Só pode estar roubando, quem mais faria questão de ser síndico?” Ele faria: o Sebastião. Desde criança, quando aquela tia chata lhe puxou a bochecha e lascou a pergunta clichê: “O que o Tiãozinho da titia vai ser quando crescer, hein, hein?”, ele jogou de lado a chupeta e respondeu franzindo a testa: “Sínico!”

A família toda voltou-se para o rebento, imaginou mil coisas, mas a mãe, recebedora da língua de fogo de pentecostes que lhe dá proficiência no idioma Bebês, traduziu com tranquilidade e surpresa: “Ele quis dizer síndico... mas o porquê eu não sei. Síndico?”

Para uma coleguinha mais tarde, em um papo entusiasmado de adolescente, Bastião confessava: “Não vejo a hora de ser síndico.” Esfregava as mãos com apetite e até babava quando acariciava ali os seus anseios: “o líder maior de um condomínio!”. A menininha sardenta, com sua tola incompreensão, apertava o indicador na testa e dizia: “Mas, Tião, ninguém quer ser síndico...” O rapaz olhou para a moça em uma superioridade hostil, riu com o canto da boca e contestou: “Não é querer, mas poder. Ser síndico é para os escolhidos. Se não entende isso, não me serve como esposa.” É claro que depois dessa a garota lhe deu as costas e ele nunca mais a viu.

Ao final do ensino médio, Tião, que se debruçava eternamente nas quatro operações, foi eleito em uma assembleia do prédio onde morava com sua família. Seria síndico, oficialmente, quite com suas obrigações condominiais. Nos próximos anos, jamais perderia o posto. Começara como voluntário, sem remuneração, mas devido à eficiência quase sacerdótica agora estava contratado.

Não parava em seu apartamento, a não ser para refeições e à noite para dormir, claro, se não faltasse luz ou água, se o motor da bomba ou do portão elétrico não queimasse, se viesse o porteiro, se o elevador não travasse, não houvesse eventos no Salão de Festas, briga de família nos corredores ou alguém com som às alturas depois das 22h... Resumindo, quase não dormia, mas às 6h estava de pé, próximo à guarita da portaria, cumprimentando e desejando bons-dias a todas e a todos.

Seu orgulho maior era um molho de incontáveis chaves coloridas que carregava para cima e para baixo, tilintando e anunciando a passagem do “manda-chuva” do condomínio, ao mesmo tempo que pesava-lhe o cós da calça, deixando à vista o rego das nádegas.

Por falta de um santo especialista, era devoto de são Pedro, o dos porteiros, e, cria que, por extensão, dos síndicos. Com ele pendurado em uma correntinha no pescoço, passava o dia entrando e saindo dos apartamentos quando convidado, o que acontecia com frequência, para ajudar as senhoras donas da casa, as filhas dessas donas ou suas diaristas nos assuntos mais banais, como trocar uma lâmpada, observar uma privada vazando, colocar um pesado garrafão de água sobre a pia, segurar um cesto, empurrar sofás.

Ele, prestativo, tinha tempo para tudo, inclusive para tomar um café e ouvir confissões daquelas pessoas solitárias.

Um dia, anunciou-se um incêndio em um dos apartamentos. Um bem grande. O porteiro interfonou a todos: “Evacuar! Evacuar”!

Tião bateu à porta dos condôminos da brigada de incêndio: ninguém! Foram os primeiros a chegar à calçada.

Rapidamente a fumaça e o fogo se espalharam por todo canto. Não se sabe como, nem ele acreditava, mas as mangueiras não ejetavam água e os extintores não davam vencimento.

Súbito, ouvia gritos desesperados, corria aos andares em brasas, com labaredas que escorriam até dos forros de gesso, e descia com aqueles moradores. Descia, mas iria voltar, poderia ter outros. Pedia que subissem com ele para ajudar. Ninguém subia: “É louco?”.

Os sprinklers estouravam um a um nos andares, porém, era tarde, o edifício era mesmo que ver um quadro de Pompeia. Mesmo assim, como um capitão deve afundar com seu navio, Tião não arredaria o pé dali.

Quando os bombeiros finalmente chegaram, encontraram, em meio ao ambiente úmido e esfumaçado, apenas destroços carbonizados do prédio e de seu maior guardião, reconhecido somente pelo molho de chaves a luzir à luz de lanternas tardias.