sábado, 20 de junho de 2020

"De Alma Lavada", de Raymundo Netto para O POVO



O casamento acabou!” Há tempos, sabiam, mas agora estava na casa do sem jeito.
Amalarico era obcecado pelo trabalho, a “razão primeira de sua vida”. A esposa, demorou, cansou-se da competição com aquele que denominava ser a sua “amante” – ou quem sabe, a amante seria ela? Não estava enganada. Compulsivo, trabalhava o tempo inteiro, mesmo quando em lazer, ao comer, ao dormir e nas horas mais íntimas. Sentia um gosto formidável em produzir, acordando muitas vezes à madrugada com novas estratégias, ideias, que lhe chegavam mais velozes do que gatos correndo pelo telhado.
Saindo de casa, já em novo apartamento, comemorou, a princípio, o silêncio absoluto, a ausência das interrupções de seu delírio laborioso para reclamações ou inúteis solicitações da incompreensiva mulher. Por outro lado, para sua surpresa, em poucos dias, aquele silêncio se apresentara um pouco demais, como de quase morte.
Para piorar, não sabia viver só. Com a separação, montar o apartamento, ter que pensar em atividades banais de rotina, no que comer, em limpeza da casa, lavagem de roupa, tudo isso o estorvava profundamente, pois que o afastava do seu bem querer: o trabalho!
Desabafando, quase em prantos, a uma colega, ela o aconselhou, entre outros, a adquirir uma boa máquina de lavar. “Não dá trabalho nenhum. Faz tudo e deixa sua roupa bem sequinha...”, assegurou.
De primeiro, diante do aparelho recém-instalado, o enfadonho maquinismo e a fria leitura de seu manual. Resignado, aprendeu o uso e comprovou a sua eficiência. E mais: com pouco, passou a atentar a um movimento estranho na casa, um barulho novo, que ia e vinha em pausas intermitentes, rompendo aquele silêncio lúgubre... era a sua máquina de lavar! Contemplando-a na sala, pensou: “Ela não me deixa sozinho.”
Despertando agora daquele nada social, às vezes, parava o seu trabalho e sentava-se diante de sua porta circular, quase um imenso olho, a ele atento e servil. Tomava um sorvete, ali, quando durante um sobressaltado e quase hipnótico ciclo de secagem, sentiu em seu peito algo que há muito não sentia. Uma excitação, uma vontade de virar-se ao avesso, o coração premido. Aquela máquina, como ele, trabalhava todos os dias, com grande ânimo, e sem lhe exigir nada. Sim, não tinha dúvida: ele a amava, numa adoração de botar em joelhos as musas do brega.
E desde esse dia, passou a conversar com ela e a almoçar na área de serviço. Logo mais traria também o seu colchão, onde dormiria ali, pelo menos, às tardes. Trazia-lhe presentes e a vestia em belas capas florais. Para ela, só o melhor sabão – líquido, claro, pois em pó achava áspero demais para sua amada – e amaciantes com essências perfumadas: lavanda, alfazema.
Meses depois de tal aliança, porém, sonhava Amalarico com umas seis ciclópicas criaturinhas metálicas cirandando ao seu redor, quando acordou assombrado: um estrondo, seguido por um tremor escandaloso, ouvia-se na sala. Quando ainda entontecido correu a ela, flagrou a sua amada, em sacolejos sobre os pequeninos e alvos pés, arrastando sua mangueira, a sair em fuga pelo hall e escadaria afora, na tentativa de livrar-se de uma vez daquele amor sebento e abusivo.




domingo, 7 de junho de 2020

"Ari: no tempo da lamparina", de Raymundo Netto para O POVO

Selo comemorativo dos 50 anos de Arievaldo Vianna, por Jô Oliveira.

Arievaldo Vianna não era apenas um homem, mas um sonho.
Para alguns, um quixote, um quaresma, uma sherazade de calças, um fabulador de voz grave e declamante, com seu colete de couro a berrar suas histórias em palcos naturais das calçadas, das praças, dos postes, numa delirante genialidade quase beirando à dulcíssima loucura, como alguns outros com quem dividia a sua mala de romances e baú de gaiatices.
“No ano sessenta e sete/Do outro século passado/Nasci naquele recanto/E fui por Deus inspirado/A beber daquela fonte/Perto do reino encantado.”
E bebia e se banhava, de quase se afogar, dessa fonte de trovadores, tocadores, violeiros, sanfoneiros, bumbas-meus-bois e, claro, à lamparina, na rede ou em alpendres, ou nas manhãs azuis, sobre o tapete da bagaceira de engenho, em meio à capoeira, à voz alta, dos folhetins de cordéis, “sua leitura de primeira hora”.
O bravo menino sertanejo do sítio Ouro Preto, alheio às necessidades que a vida lhe trouxe para fazer-se forte, crescia assim, imerso entre a roça e o mundo fantástico: beijocador de princesas, amigo de reis, escalando muralhas de castelos, desafiando dragões, assistindo a gargalhar muito às pelejas de demônios com cangaceiros.
Quem diria que essa tripinha de gente “desasnada” pela leitura da vó Alzira se criaria poeta, ilustrador, fanzineiro, radialista, publicitário, xilogravurista, colecionista, historiador, biógrafo, capista, editor, pitaqueiro, amigo de todos... e alguém a quem as letras brasileiras deveriam tanto?
Quando nos encontrávamos, era uma grande alegria, e se eu não pedisse arrego, não me deixava ir. Num galope à beira-mar atropelava uma história com uma pesquisa, uma leitura com uma piada, uma reclamação com uma proposta editorial que iria nos enriquecer a todos... Mesmo quando depois confirmava: “Minha mulher chegou à triste conclusão de que eu não sei vender a minha arte, não nasci para ganhar dinheiro. As pessoas me procuram e eu sempre cobro muito abaixo do que deveria”.
Meses mais novo do que eu, tinha no falar – e eu o admirava por isso – uma extrema autoridade, uma altivez, mas uma autoridade legítima, uma altivez não pedante, de quem sabe e que transmite esse saber, não o ocultando sovinamente como se fosse um privilégio, uma dádiva divinal. Estive com ele em diversas ocasiões distintas e NUNCA o vi se gabar de nenhum dos prêmios que recebeu, das inúmeras publicações e dos livros que vendia em editoras nacionais, de entrevistas de toda parte do país das quais era convidado. Sabia o amigo Arievaldo, por ser ele um dos grandes, que os prêmios são apenas reflexos e consequências daquilo que fazemos e do que realmente nos importa. Para os fracos e os pequenos, tais desnecessários reconhecimentos podem se tornar armadilhas de espírito. Arievaldo não precisava deles. Era um artista!
Militava na educação, na leitura, nas artes populares e sertanejas. No palco, falava desenvolto, cheio até a tampa de histórias para contar. Criativo, inteligente, impulsivo e impossível.
Agora, dia 30 de maio de 2020, os quase anjos João Grilo, Pedro Malasartes e o Cancão de Fogo, sob a bênção de São Francisco, desceram dos céus em busca do menino grande Ari e o levaram para se assentar ao lado de Patativa, Santaninha, Leandro Gomes de Barros, Alberto Porfírio, Leota e Ribamar Lopes numa conversa que se já era sem fim, agora é que não se acaba no meio desse sereno de estrelas do cordel, a literatura mais genuína e brasileira de nosso Brasil.
Nossa gratidão, irmão Arievaldo, príncipe do cordel cearense.