sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Entrevista, na íntegra, de Raymundo Netto para O POVO (15 anos de crônicas no Caderno Vida & Arte)


Entrevista de ANNA NÍVEA COSTA

Especial para O POVO

12.12.2022

Num diálogo vivo entre a memória, a cidade, a cultura e o fantástico, o escritor Raymundo Netto celebra quinze anos de crônicas publicadas no Vida&Arte.

Desde 2007, o autor se inspira no cotidiano da capital cearense para a criação de narrativas astuciosas. Autor de obras premiadas, como Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, vencedor do I Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult), Raymundo atuou como jornalista, editor e produtor cultural. Atualmente, desenvolve trabalhos como gerente editorial e de projetos da Fundação Demócrito Rocha (FDR).

Para comemorar a duradoura colaboração, o cronista concedeu uma entrevista em que comenta, entre outros assuntos, sobre o papel da crônica na vida dos brasileiros, a história do gênero e os próximos lançamentos.

O POVO - VOCÊ JÁ SE AUTOCENSUROU EM ALGUM MOMENTO POR ACHAR QUE NÃO DEVERIA ABORDAR DETERMINADO TEMA EM SEUS TEXTOS?

RN: É possível até que em algum momento isso possa ter acontecido, sim, domando algum arroubo por um motivo diverso, mas geralmente não sou disso, pois acredito que essa liberdade que o próprio jornal me permite, deve ser explorada, e que o leitor gosta disso, dessa eloquência, mesmo quando ela chega para eles, no mínimo, trajado de sarcasmo ou ironia.

 

O POVO - AO LONGO DOS ÚLTIMOS QUINZE ANOS ESCREVENDO PARA O CADERNO "VIDA & ARTE", DO O POVO, QUAL TEXTO MAIS TE MARCOU E POR QUÊ?

RN: É uma pergunta extremamente difícil. Nem sei quantos textos escrevi até então nesses 15 anos. Entretanto, posso assegurar que desde a primeira crônica publicada eu tinha um projeto literário. Não é à toa que a maioria delas, após um descanso merecido, enveredaram para enfeixar livros, como é o caso do Crônicas Absurdas de Segunda (EDR, 2015) (ganhador do Edital de Incentivo às Artes da Secult 2015 e finalista do Prêmio Jabuti de Literatura em 2016) e o Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019) (ganhador do Edital de Incentivo às Artes da Secult 2017). E nesses 15 anos, mudei aqui e acolá de estratégia, de temática, de estilo, por necessidade própria de experimentar, de exercitar-me, de curtição mesmo, pois eu curto escrever, não me sentindo obrigado a nada. Não tenho pretensão nenhuma, nem carrego a ilusão cor de rosa de que escrever ou publicar é um sonho. Não, mesmo. A única ambição que tenho é ser lido pelo maior número de pessoas possível, desde que não tenha que ser outra pessoa para isso.

 

O POVO - NA SUA OPINIÃO, POR QUE A CRÔNICA CONTINUA SENDO CONSUMIDA MESMO APÓS O FECHAMENTO DE TANTOS VEÍCULOS IMPRESSOS?

RN: A crônica, apesar de ter surgido, pelo menos se popularizado, no veículo jornal, independe completamente dele. Muitos de nós, leitores de crônicas, as conhecemos já impressos em antologias famosas, por meio de vozes como Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Cecília Meireles, Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta, Rachel de Queiroz, Luís Fernando Veríssimo, Paulo Mendes Campos, entre tantos outros. Claro que muitos desses textos saíram de páginas de periódicos antes de pousar em livros. Sabemos disso. Mas é um gênero muito fácil de ser acolhido, mesmo pelos leitores menos proficientes, por isso muito utilizado em salas de aula, devido às suas características, como a de ser um texto curto, de construção simples, permitindo fluidez na leitura, com vocábulos comuns e termos coloquiais, e geralmente em torno de temas e situações corriqueiras do cotidiano. Além de, boa parte delas, se sustentarem no humor, coisa que o brasileiro gosta demais, e a crônica, como hoje a conhecemos, é mais brasileira do que qualquer outra coisa.

 

O POVO - VOCÊ TAMBÉM ABRAÇA O FANTÁSTICO EM SUAS OBRAS, COMO EM CRÔNICAS ABSURDAS DE SEGUNDA. DE QUE MODO A FABULAÇÃO DO REAL AJUDA NA CONSTRUÇÃO DE TEXTOS QUE ABORDAM O PRESENTE PALPÁVEL?

RN: O fantástico, o absurdo, o estranho, enfim, esses gêneros e subgêneros são muito atrativos e provocadores desde o século XIX. Quando fui convidado a escrever os textos que originaram o Crônicas..., tinha uma exigência editorial: o cenário de Fortaleza. O resto era por minha conta. Na primeira crônica, bati um papo com a estátua da Rachel de Queiroz sobre crônicas, depois nos chega um ET no Benfica quando o mundo acabou. Cruzei a cidade com um José de Alencar de tênis e mochila. Assisti à luta de José Alcides Pinto contra o Dragão de Sobral. Deparei-me com um espantalho que tinha a cara do Francisco Carvalho e com uma barata falante que era mesmo que ver o Airton Monte...  Daí continuaria a encontrar com cronistas vivos ou mortos do Ceará, nas ruas de Fortaleza, em situações absurdas, mas baseando-me sempre em algo que acontecia na cidade. A verdadeira cidade parecia ser essa aparentemente irreal.

 

O POVO - DIANTE DAS MUDANÇAS NO MERCADO JORNALÍSTICO, E DE UM GOVERNO QUE NEGLIGENCIOU A CULTURA NOS ÚLTIMOS ANOS, QUAL A IMPORTÂNCIA CRÍTICO-SOCIAL DAS CRÔNICAS?

RN: A literatura, assim como a arte e as baratas, sobreviverá. Como disse, independentemente do jornal ou mesmo do papel, do impresso, a crônica resistirá, continuará a ser escrita e lida. E devido à ausência de limites e hibridismos, ela há de sempre conquistar o mundo, incomodando-o, provocando-o, denunciando, fazendo pensar ou simplesmente trazendo de volta a cor a corações destintos.

 

O POVO - O QUE OS LEITORES PODEM ESPERAR DE FANTÁSTICOS E COISAS ENGRAÇADAS DE NÃO SE RIR?

Voltando ao que afirmei sobre escrever sempre pensando em um projeto literário, esses dois novos títulos, que espero serem lançados em 2023, me chegaram assim. Fantásticos é a reunião de contos no gênero, ou bem próximos a ele, com características diversas, empregando alguns dos elementos sobrenaturais, de horror, suspense ou mesmo de estranhamento ou fantasia, mas com um tempero nosso, por vezes fugindo do clássico. A literatura não abre mão de ser livre.

Coisas Engraçadas de não se rir é uma reunião de crônicas, também publicadas anteriormente no jornal O POVO, que levanta o tapete da sala de estar e revela o que escondemos por debaixo dele: o ridículo da humanidade. É uma obra mais humorada, às vezes até picante, despudorada, usando da comédia, da ironia e de muito exagero para interpretar o ser esquisitoide que somos.

E o que eu espero: que as leitoras e leitores se divirtam, que curtam, e que essas leituras acrescentem algo na forma como eles veem o seu entorno e como se comunicarão com ele depois de. A vida é curta, mas a arte transcende tudo isso.




 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

"Amante (PARTE II), de Raymundo Netto para O POVO


 

Vinte e cinco anos depois, não parecia ser o seu aniversário se Vitória não recebesse aqueles lírios azuis e os colocasse no vaso da mesa de centro da sala, bem ali, diante de Carlos, seu então marido, e da família que crescia.

Do nada, à noite, na hora da bem frequentada e animada comemoração, não seria estranho se nós a encontrássemos mergulhada no sofá, os pequenos pés na mesinha de centro, bebendo uma taça de vinho, sorrindo sozinha, com o pensamento distante e os olhos voltados para os lírios, alheia à zoada de Carlos, a trocar velhas e grosseiras piadas com seus amigos já alegremente bêbados, tirando troça com as suas esposas, boa parte delas, assim como de seus filhos, espalhada nos cômodos do apartamento ou em fuga nos celulares, videogames ou na TV.

Ao final da festa, no silêncio mais perigoso da noite, saía preguiçosamente a colher as taças e os pratos esquecidos na varanda e na sala. Ao cruzar pelos lírios, chegava-lhe, como um sussurro: “Ele ainda pensa em mim.”

No entanto, jamais ligou para Ramon. Não mandava e-mails nem mensagens de mais simples agradecimento. Se quisesse, ele procurasse por ela. Não se esquecia de seu aniversário, de enviar aqueles lírios, por que não ligava? Tanto tempo se passou desde a última vez que se falaram... não poderiam ser amigos? E assim, a vida tomava o seu rumo. Na verdade, ela, imersa nas atividades profissionais, nos cuidados com os filhos, com o marido e com a mãe viúva, nunca se lembrava de Ramon, até receber aqueles lírios azuis.

Nos frequentes encontros com as amigas da escola, em divertidos momentos de revelações constrangedoras e lembranças batidas do passado, vez ou outra alguém perguntava por ele e, espontaneamente, todas olhavam para ela, esperando alguma novidade que nunca veio.

Contudo, chegou mais um esperado dia de seu aniversário... e nada dos lírios! Vitória estranhou. Não podia ouvir tocar o interfone, que logo pensava: “São eles!” Mas não eram. Ligou à portaria. Perguntou se deixaram algo para ela, e avisou que não sairia de casa, caso chegassem.

Ansiosa, parou em frente ao espelho do banheiro. Incomodou-a as raízes brancas dos cabelos, as rugas em torno dos olhos tristes ao simular um sorriso desmotivado, a falta de um pulsar que embaraçasse o coração. Estava velha? Acabou, é isso? Nunca mais?

O marido, ao contrário, chegava entusiasmado, trazendo cerveja e carne para churrasco, fazendo algazarra com os filhos. Era também dia de jogo e havia chamado os amigos. Vitória respondeu com uma imediata dor de cabeça. Fechou as cortinas do quarto e colocou o lençol no rosto para esconder o sofrimento que lhe escorria na face.

Foi aquele o aniversário mais deprimente de sua vida. Os amigos estranharam: “Ela tá doente?” Carlos não notou: “Está? Não sei.”

No sofá, fingia a duras penas ouvir as amigas sobre a nova série daquele “homem liiindooo”. Evitava olhar para a mesinha de centro, desnuda e profundamente triste, a suportar no peito a dor do misterioso abandono.

No dia seguinte, dormira mal, ficou em casa. Inconformada, decidiu ligar para ele, mesmo faltando-lhe o ar e a coragem: “Alô, Ramon?” Porém, do outro lado da linha, uma mulher: “Pois não, aqui é Jandira.”

Que maçada! Claro, ele poderia ter outra pessoa, sabia lá, uma esposa, namorada... Jandira continuou: “Mas esse telefone é mesmo do Ramon. Quem deseja falar com ele?” “Uma amiga”, respondeu. A voz do outro lado da linha alteou: “Ah, você é a mulher dos lírios?”

Em pânico, Vitória desligou o telefone e caiu, quase desmaiada, no sofá: “Que burra!”.

O telefone tocou. Era Jandira. Mesmo assustada, Vitória segurou a respiração e o atendeu, afinal, não devia nada a ninguém. A mulher foi direta ao assunto: “Eu sou a irmã dele. Ramon está morto.”

 

(CONTINUA DAQUI A 15 DIAS)

 

domingo, 18 de dezembro de 2022

"As Crianças dos Olhos Brancos", Martin Mystère nº 28, por Raymundo Netto


 Sou grande fã dos personagens dos Fumetti (quadrinhos) italianos. Hoje, entre eles, um dos que mais acompanho com regularidade é Martin Mystère, o detetive do impossível.

Atualmente publicado pela Editora Mythos, Martin, um antropólogo, arqueólogo, perito em arte e cibernética e colecionador de objetos incomuns, criado pelo roteirista Alfredo Castelli (criador também de Allan Quatermain), gira o mundo – ao lado de seu assistente Java, um homem de neandertal, e de sua eterna noiva Diana Lombard – na busca de solucionar enigmas com origem em lendas, mitologias, magia, seitas, esoterismos e outras curiosas manifestações místicas que sobrevivem paralelamente, e muitas vezes à sombra, do progresso (ou não) da humanidade.

Em seu nº 28, cujo título é “As crianças dos olhos brancos”, após presenciar a curiosa ressurreição de um menino, o desaparecimento de sua noiva e insolúveis assassinatos, ao lado de Java se dirige à Ilha de Bali, província da Indonésia, na tentativa de resolver o mistério das “crianças de olhos brancos” (as 3 que ressuscitaram) e resgatar Diana.

Como sempre em suas aventuras, somos apresentados à fronteira do desconhecido, a civilizações, culturas, religiões, templos extintos ou em extinção, o que torna muito rico o roteiro e a leitura dessas histórias.

Desta vez, uma das obras literárias fundamentais da Índia, o Ramayana, famoso poema épico em sânscrito, com 24 mil versos, numa métrica de 32 sílabas, distribuídos em 7 cantos, cujo protagonista é o príncipe Rama, uma das divindades hindus mais populares, é o eixo da história, trazendo como tema a eterna luta entre o bem (Rama) – aliado aos macacos sagrados da Floresta dos Macacos de Bali (Bukit Sari) – e o mal (Rawana) – uma divindade que se alimenta dos sentimentos e pensamentos maus das pessoas, ou seja, o “demônio”.

Para quem gosta de quadrinhos, viajar (de verdade), história e cultura antiga, impossível não visitar algumas dessas inquietantes páginas do que há de melhor nas HQs contemporâneas (embora as suas aventuras se passem na década de 80).

PS: o formatinho atual está esteticamente melhor, além de ser mais duradouro (capa em papel cartão plastificado e miolo em papel off-set). E melhor: se você quiser, ainda pode adquirir toda a nova série que está, hoje, no número 31. Eu tenho todas.




segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

"Amante (PARTE I)", de Raymundo Netto para O POVO

 

Lírios Azuis são promessas de amor eterno”, disse Ramon, oferecendo-os com toda ingênua pompa de adolescente recém-aberto à possibilidade de morrer de amor, diante de sua amada Vitória, em seu primeiro aniversário juntos, assim como o faria nos demais, desde que iniciado aquele romance.

O casal se conhecera na escola, no ensino médio. Para Ramon, o primeiro encontro de olhares bastaria para que não mais a perdesse de vista. Diziam os colegas de sala serem feitos um para o outro, inseparáveis, como todos os grandes enamorados de novela, condenados a serem felizes para sempre.

Naqueles anos, além da companhia em carteiras de sala de aula, da saraivada de beijos incessantes e velados nos fundos da cantina durante o recreio, em pares nas atividades e festas escolares, enfrentaram muitas noites juntos, fossem debruçados em apostilas às vésperas de provas, em livros de poesia – pois se permitiam ouvir a voz de anjos – ou por vezes sobre seus corpos nus, em ebulição, quase virgens, em plena alfabetização sexual.

Ao final do curso, ela passou para a Psicologia e ele em Jornalismo. Comemoraram num contentamento de ganhadores de loteria, farto de planos de futuro: muitos filhos, uma casa no campo, escreveriam livros, viajariam, teriam uma música, cachorros, gatos, papagaios e uma velhice extraordinária. Porém, o amor se dá a distrações, e Vitória conheceria Carlos, um aluno do curso de Engenharia que, ao contrário do romântico Ramon, não elaborava projetos alucinados, sustentados em longarinas de sonhos, mas sobre metas, orçamentos e formulentas planilhas. Desde então, os encontros seriam inexplicavelmente adiados um a um, até quando Ramon soube pelo colega Nestor – parece que sempre há um em nossas vidas – sobre o suposto flerte entre Vitória e Carlos.

O seu mundo quedou-se ali mesmo. Ramon não poderia nem queria crer. Só de pensar, morria. Ligou para Vitória. Marcariam um encontro. Ela adiou o quanto pôde, lançando todas as desculpas, as mais esfarrapadas, mas, diante da insistência, cedeu.

Quando Vitória chegou à praça, Ramon não reconheceu o seu olhar, aquele que o conquistou. Sentiu-se, desde então, fracassado. Mesmo assim, criou coragem para exaltar o seu amor, o mais sincero e sem igual no mundo – como todos, aliás. Gesticulava, falava, falava, falava, com receio do inesperado e até então desconhecido silêncio que poderia abater-se entre os dois. As lágrimas desciam navalhando o seu rosto... Porém, percebia que ela, numa frieza beirando a crueldade, de braços cruzados, evitava olhar para ele. Enquanto tentava convencê-la, ela murmurava, impaciente, “que sabia de tudo aquilo, que sabia, mas que era outra coisa”. Ela se repetia, embaraçada, duas, três vezes, maquinalmente: “sabia de tudo aquilo, mas que era outra coisa”. Sentia-se péssima ali, pronta para correr se pudesse. 

Ramon calou-se. Assistindo àquele constrangimento e ciente de que dali não sairia mais nada, sentiu-se ridículo, de uma estupidez medonha. Ora, Vitória era uma manteiga derretida, chorava até em propaganda de fraldas de bebê, mas não derramara uma lágrima sequer diante do seu amargo e profundo sofrimento. Será que ele não merecia uma lagrimazinha de nada depois de tudo que viveram juntos? Não, aquela era a mais absoluta negação que poderia sofrer. “Pois era só isso”, disse e tomou o seu rumo sem olhar para trás, sendo-lhe insuportável assisti-la certamente aliviada e pronta para revelar ao mundo o seu novo amor. Daí, nunca mais a procuraria, mesmo quando indignado recebeu em uma sacola de papel a devolução de cartas, poemas, presentes e fotografias. Tudo acabado de uma vez por todas!

Curiosamente, a única coisa que nunca mudou foi o envio de buquês de lírios azuis sempre na data do aniversário dela. Com ele, um cartão oficioso, quase desinteressado: “Parabéns” e o endereço atualizado de e-mail e telefone. E só!

 

(CONTINUA DAQUI A 15 DIAS, NESSE MESMO CANAL)