quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

"Velho Ano Novo", crônica de Raymundo Netto para O POVO



Bate-me à porta o de 2011 — o “Velho”, o de 2010, pula-me a janela, em cinzas, sem despedidas. O “Novo” chega envolto em fraldas enrugadas de promessas de esperanças, o anúncio de vida bafejante aos olhos nunca tristes, sempre azuis, a trazer, como de costume, as mãos vazias. Já amadureci o suficiente para saber: ele nada traz que nós já não tenhamos.


Pois sim, vem ele, todo em Menino, e abanca-se no sofá. Olha-me terno, como a saber de tudo de mim, sorri balançando as perninhas ligeiras e pergunta sobre o Velho, o que foi dele. Diria-lhe muito, entre confissões cansadas de se repetir por demãos de cal de incompreensão e certa autopiedade, mas pouco de nada lhe disse, porque a palavra falada seca a língua, trava à garganta, finca-se entre os dentes, dói ao peito resfolegante. O pensamento, coitado, mais confuso do que provador feminino em véspera de Natal, despeja as suas verdades:

— Tenho os melhores amigos do mundo, a melhor família — embora sinta-me sempre irremediavelmente só — e o módico castigo de se tentar escrever escrevendo.


Entre palavras, a correria insensata, sempre de trabalho — mais do que mereço —, sempre dos outros e pouco de mim. Mesmo assim, passei a limpo as minhas faltas, ausências, cansaços e promessas não cumpridas que puseram por terra a estima de alguns menos compreensivos. Tinha que lembrar e pedir-lhes desculpas. Antes, lembrar de! Por assim dizer, lembrei de telefonema ao escritor Moacyr C. Lopes. Quem atendeu disse-me que ele estava doente e, mesmo assim, ele fez questão de falar-me. Na voz fraquinha e humilde, havia lido meu e-mail de solicitação de texto e não poderia deixar de responder-me. Chamou-me de amigo, e afirmou: tão logo melhorasse um pouquinho, tivesse a certeza, o faria com a maior alegria. Não pôde. A tal tomou-lhe conta de vez. Faleceu uma semana depois. Foi-se com o Velho. Não teve tempo. Lembrar de! Na semana passada, durante uma das 100 confraternizações em que fui convidado — cheguei atrasado ou faltei —, uma senhora, a d. Zuila, no ecoar de seus 92 anos, olhou-me nos olhos e vozeou: — A vida é breve demais... É maravilhosa, mas o que fica é sempre muito, muito pouco... Tempo, sempre o. O Menino e o Velho brincando de revezamento, como a “pular carniça”, sem dós de senhor ninguém, imagine se de mim.


Às palavras da d. Zuila, deu-se a melódia: a incompletude de vida baixou-me em cortina. A lua, toda céu, insinuava ondas no mar. Desfiando a história de Aaba, que começou na Cachoeira do Riacho do Sangue, rompeu-me o coração alfinetado de saudades — não há uma única lembrança que não me doa —, o desejo de saltar no escuro, a esfolhar uma a uma da mealhas de meus dias, desfazer-me dos trilhos seguros, largar por aí os entulhos às costas, desmanchar os escritos, continuar a apaixonar-me, como desde garoto, pela desconhecida que me passa na rua, mesmo quando ela nunca o fora nem jamais o será por mim. Amar, um dia — ou dois, ganhar o mundo, perder a vida, sumir! Ora, como me lembra a princesa Isadora, das Claráguas del Noroña, na voz de Manoel de Barros: “Tenho em mim esse atraso de nascença.”


Daí que o improviso dessa crônica berce sem atrasos ou pudores e seja absolutamente branco, como se não existisse, nem fosse legível, como não se pudesse guardar. Que se queime, que se rasgue, que seja esquecido, que carregue do cimo distante a paz mais incômoda. Que chegue como sorriso tatuado na testa, a desconstruir espíritos, a apagar velas, a torcer orelhas, a beber-lhes da carne. Assim, verei aquele Menino se ir, veloz, mas marcando em definitivo a única coisa que nos pertence realmente nesta vida: o mais que imperfeito e impaciente agora!



Raymundo Netto que vez ou outra se lembra do mundo grande. Contato: raymundo.netto@uol.com.br blogue: http://raymundo-netto.blogspot.com

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

"Histórias de Leitores", crônica de Tércia Montenegro para O POVO


A relação de um autor com aqueles que o leem é algo mítico. Eu, por exemplo, nunca acreditei inteiramente que houvesse alguém “depois” do meu texto, alguém que o manipulasse e interpretasse. Tinha a impressão de que minhas palavras permaneceriam solitárias, mesmo que fossem publicadas. Entretanto, às vezes surgem os leitores, confessos e expostos. Através de mensagens eletrônicas, eles se apresentam, quase sempre de maneira tão agradável que me constranjo por ter duvidado de sua existência.


Agora, nesse período de final de ano, recebi alguns pedidos para uma crônica natalina. Infelizmente, não vou cumprir a solicitação – primeiro, porque não tenho talento para falar desses assuntos, ditos “da hora”, e depois... bem, acho que é minha obrigação manter a liberdade temática, ao menos para lançar uma pitada de surpresa. Porém, não quero que os tais leitores-correspondentes se sintam rejeitados. Ao contrário, desejo homenageá-los, contando algumas de suas histórias.


Muitos dos que me mandam mensagens têm pendor confessional. Motivados pelo argumento do texto que leram, ou por outra inspiração particular, não resistem ao impulso de contar fatos íntimos e singulares. Eu, é claro, adoro! E lembro com especial delícia certos episódios que assim me foram narrados...


Há o caso de um rapaz que me escreveu do hospital onde se recuperava, após um acidente. O setor de traumatologia não era novidade para ele, segundo me informou: tinha pinos e placas metálicas por todo o corpo, e não havia parte que ele já não tivesse fraturado – exceto, talvez, o pescoço. O que ele no início considerou um infortúnio transformou-se em estilo de vida. Envolver-se em acidentes era um hábito que lhe dava a propriedade de fazê-lo mais corajoso.


Uma jovem, meses atrás, me passou uma mensagem poética, dizendo que gostava de ler minhas crônicas pela manhã, enquanto ouvia o galo cantar na vizinhança. Dizia ser aquele um privilégio raro, numa cidade tão agitada quanto Fortaleza. Achei tudo muito bonito e a parabenizei; não suspeitava que semanas depois ela me escreveria novamente, para desabafar sua revolta. Pois encontrara a vizinha do tal quintal bucólico e, ao conversar sobre a atmosfera pacata que o canto do galo criava, descobriu que o som era apenas uma gravação em disco. Um médico o recomendara à vizinha, para lhe acalmar os nervos...


Recordo ainda a história do homem que, traído pela esposa, resolve terminar o casamento. Como símbolo de sua raiva, engole a aliança, com o objetivo de depois deixar na casa da ex “uma certa encomenda” que seu organismo produziria. Lá entregaria o pacote, decentemente vedado – e, quando aberto, primeiro se veria um bilhete, com a inscrição: “Aqui dentro está minha aliança, no lugar para onde foi o nosso amor”. Mas a performance escatológica não chegou a acontecer: o criativo esposo morreu após longo sofrimento, vítima de obstrução intestinal. Quem me escreveu sobre isso foi sua filha, um verdadeiro talento no humor negro...


Tércia Montenegro - Fotógrafa, professora da UFC e escritora – contato: literatercia3@gmail.com

"Pequena Crônica de Natal", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO


(Dedicada ao filho da Vivi e Miguel, que humildemente nascerá na sublime noite)

Há quem ache triste o Natal. Há quem critique o consumismo desenfreado a que foi transformada a tão nobre data. Há quem deteste os incontáveis símbolos importados. Há até quem espere pacientemente para se suicidar neste memorável dia (outros esperam até a passagem de ano).


Um dia conversando com um amigo que reside em São Paulo — e trabalha como segurança no metrô — ele me surpreende com a afirmação de que “neste período temos que estar atentos por aqui, pois muitos se matam!”. Concluindo, já conformado, que os Natais dele foram irremediavelmente estragados por tais sinistros acontecimentos.


Já eu não: sou um desvairado amante do Natal. Finda novembro e já curto alegremente as luzinhas de jardins, praças e residências (curiosamente nunca tive uma árvore enfeitada).


Entro em regressivo estado de espera.


Culpa de minha terrível infância feliz, de Dona Tizinha, que distribuía bolas e bonecas para as crianças pobres do meu Bairro das Pedrinhas, culpa do pai e da mãe que sempre compravam os brinquedinhos mais simples que fosse e deixavam embaixo das redes de todos os irmãos, assim meio de ladinho pra não serem respingados de urina.


Sou daqueles natalinos mais “bregas”, que põe coroa com fitinha vermelha na porta de entrada, que dependura desajeitadas luzinhas piscantes nas grades das janelas, que compra ainda hoje os discos de Roberto Carlos, enfim: que manda sonoros e-mails cafonas de Feliz Natal para os amigos.


Chega dezembro e deixo de lado o que esteja fazendo e passo a simplesmente esperar o bendito dia. Gosto e curto tanto que só paro de comemorar no Domingo de Páscoa, depois de ter ido impreterivelmente a Tamboril assistir à procissão do Senhor Morto.


Pedro Salgueiro nasceu no Sertão dos Inhamuns (Tamboril, Ceará, em 1964). Escreve contos e crônicas, cometeu alguns livros e edita, em parceria, as revistas Caos Portátil: Um Almanaque de Contos e Para Mamíferos. Contato: pedrosalgueiro64@yahoo.com.br

domingo, 19 de dezembro de 2010

"Liberdade", poema de Fernando Pessoa

Liberdade


Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fernando Pessoa

"Natais na Aquidabã", crônica de Ana Miranda para O POVO


Guardo algumas lembranças dos natais de minha infância, em Fortaleza, no nosso bangalô que ficava na avenida Aquidabã, entre coqueirais e estrelas. A mais sublime é a da nossa árvore de Natal, tão alta, ainda mais sob a perspectiva de uma menininha, e bastante enfeitada. Não é do meu feitio conservar nada por muito tempo, mas tenho até hoje uma lata com enfeites de Natal da árvore de minha infância, ternamente envolvidos em papel. Talvez eu os tenha guardado por sua fragilidade, são quase películas de vidro, em forma de alaúde, capela, sino, anjo, lampião... Todos os anos, abro essa lata com um sentimento estranho, uma espécie de alegria embebida em desalento e de sonho mergulhado em realidade, como se recuperasse um objeto perdido, que se tornou apenas uma miragem, e segurando-a com as mãos sentisse que não é a mesma a luz naquelas tintas, nem são os mesmos os olhos que as veem, nem as mesmas as mãos que as pegam. E a cada ano quebra-se mais um, mais um, o que torna minha plêiade mais preciosa e tênue.


O surpreendente da primeira árvore de minha infância eram uns apliques de metal postos nas pontas dos galhos, como pequenos candelabros em forma de flores, que suportavam velinhas brancas e finas, acesas todas elas antes da ceia, de uma em uma, num inefável ritual. Era preciso apagar as luzes da sala para a contemplação da árvore natalina, da luz natural e trêmula, mais poética do que as mimosas lampadinhas de hoje. Assim, vejo como a lembrança é assombrosa, capaz de manter presentes as coisas do passado, pois não tenho mais nenhum desses candelabrinhos, mas é como se os tivesse, pois me recordo deles, ainda mais, do sentimento que me causavam. Aquela árvore dava toda a atmosfera da noite de Natal, mais que nossos vestidos novos de renda engomada ou nossos sapatos novos de verniz, mais que a mesa posta com iguarias e arranjos. Não lembro o que ceávamos, talvez o prato principal fosse mesmo o peru com frutas, nozes, avelãs, pois minha mãe, para casar, teve de cursar a Escola Doméstica de Natal, no Rio Grande do Norte, e lá aprendeu as receitas do Natal europeu. Mas as comidas não deviam ser importantes para mim, pois delas eu nada lembro a não ser um nebuloso bolo recoberto por açúcar cristal. Lembro do presépio, também vagamente, tenho dele um dos anjos em porcelana branca e de cores suaves. Ou de estar no colo da minha adorada babá, Odete, e dos beijos, abraços e presentes que ela me dava nos natais: um broche em forma de besouro, um porta-joias em estanho, forrado de veludo por dentro, com meu nome gravado. Lembro dos presentes de Papai Noel, claro, desde o momento intenso em que o embrulho ia sendo aberto e o brinquedo, revelado! Uma boneca! Ou uma casa com os móveis, na escala da fantasia de uma criança. Inesquecível casa! Aqui na Prainha, num ano desses dei três caminhõezinhos de presente para três meninos pobres. Eles ficaram abraçados aos embrulhos, sem abri-los, uma das cenas mais comoventes.


Sempre houve algo a ensombrear os meus natais: saber que nem todas as crianças ganhavam presentes. Isso me foi dito com tal sentimento que jamais se apagou em mim. Então o Papai Noel não era justo, mesmo sendo bom. Natal sempre me trouxe a lembrança de órfãos, abandonados, esquecidos, crianças maltrapilhas e famintas olhando pelas vitrines o mundo inacessível das luzes, das guloseimas. Não sei quando foi que li o livrinho de Dickens, Cântico de Natal, a história daquele homem avarento que recebe a visita dos três espíritos, e revejo o rosto terrível das duas crianças chamadas Miséria e Ignorância. Triste livro, mas esperançoso.


Hoje tento fugir ao caráter mundano da festa. Aprendi com meu amigo, frei Betto. Houve um tempo em que meus natais eram celebrados por ele. Em tudo nos orientava, mandava com antecedência as receitas, as instruções, os textos, as músicas. Chegava cedo, pois ele mesmo cozinhava, a família toda em volta, ajudando a descascar batatas ou cortar cebolas, enquanto minha irmã ensaiava as canções com as crianças que entoavam suas vozes de anjos. Fainas de comover qualquer coração de pedra. Na hora da festa nos reuníamos em torno de uma mesa com toalha branca, um pão e um cálice com vinho, apenas. O texto escolhido por frei Betto era lido, frase por frase, pelas pessoas em torno da mesa. Depois quem quisesse dizia uma palavra de graças. E cada um de nós comia do pão e tomava do vinho. Ao final, era posta uma mesa com um ou dois pratos, sem excessos. Embrulhos de presentes, apenas para as crianças.



ANA MIRANDA é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias e Dias, Yuxin, entre outros romances editados pela Companhia das Letras.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Lançamento Antologia "Estações da Palavra" da ACE

A Associação Cearense dos Escritores/ACE convida todos a assistirem ao lançamento da 1ª Antologia da ACE, Estações da palavra: Prosa e Poesia.

Na ocasião, o Programa Papo Literário e a Academia Maria Ester de Leitura e Escrita/AME receberão o Diploma Amigo do Livro.

Serão homenageados três associados da ACE, entre estes o Associado 100%, o que frequentou todos nossos eventos este ano.

Local: Auditório Waldir Diogo –Térreo – FIEC - Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Avenida Barão de Studart, nº 1980)

Data: 20 de dezembro de 2010 (segunda-feira)

Horário: 19h30 minutos.

No encerramento, será servido um coquetel.

"Aproveite do Dia", clipe da música de Pingo de Fortaleza e Henrique Beltrão


quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

"Noite e Dia", poema de Raymundo Netto


Noite e Dia

O amor que corre dencanto dobrado em limalhas de pensamento

Regurgita à tua face quando num momento te vestes num sorriso.

Como em margens seguras do sonho impreciso que me te tens às mãos

Figura nos chãos debaixos pés uma canção de amor em teu caminho.

Por onde passas és redemoinho.

Tua liberdade furiosa, sei, a ninguém pertence.

Arrastas e vences o que te importas

E assopras com as pernas as poeiras do teu tempo.

Forte e frágil és sombra de vento.

És nubem que quando deságua de chuva

Irisa-se em luar

Quando no teu corpo, onírica paisagem, tua pele enluarada florirá.

Por onde ondeia és maraberto:

Verde e silente, de amaresiar...

Engolindo toda a vida em ti descoberta.

Devorando-te pensamentos.

Te devorando, Dvorak.

Sorris e teus sorrisos são as chaves e achaques.

Por onde teus olhos passam,

Constelações palpebradas declinam

— No alvorecer no arvorescer —

Noite coroa dia; Dia entorna noite.

Na casta cobiça de construir peça a peça o mosaico de tua alma canora,

Segredo-lhe meu silêncio; o ouve muda; não o abraça não o rejeita nem o chora.

As palavras são torcidas uma por uma na língua mais branca

Na frase cuidadosamente pró-ferida

Na cautela exaurida que a tudo sublima na neblina que acompanha a mais prenhe solidão.

Preciso de ti... ah, como te preciso...

E o horror da confissão é o meu juízo, parto de tudo na vida, o meu bálsamo e a minha dor.

Sempre distante, distante demais, como a estrela a lançar sua luz e calor.

A penitência ricochete às paredes do meu coração onde sulco teu nome, em gravação,

com cinzéis de saudade.

Não é, porém, meu nome que vejo em teus olhos nem de a felicidade.

Pois como no poema, repouso em tua janela,

Tu és meu in verso, és ela: a minha condenação.

Encontrei-te por dentro em teu corpo desabotoado, e na mais linda tristeza de repente me tomaste ao lado.

E eu que te não amava, agora até te era,

E lancei para o céu a tarda espera das alegrias

Em troca da grande novidade de ver-te todos os dias.

Teu olho de chama que acastanha meu desejo

Teu batom a negar-me o teu beijo

E no latejo da tua mão na minha, vermelha e quente,

A sentença incontinente

De teu coração feraz

Que enquanto de longe pareces deus, de perto, meu amor, és muito mais.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

"Vinho, Vi e Perdi..." *, crônica de Raymundo Netto para O POVO


Tempos há, amargando homérico pileque, lancei-me ao cálice da abstemia. Dia desses, por sua vez, diante da convocação de amigas a pactuar música e poesia regadas ao tinto e seco, hesitei, e após atrapalhada engenharia de sacar rolhas, libertamos os deuses embotelhados, e os tomei à boca rósea e cristalina, parcimonioso, enquanto eles, ao contrário, tomaram-me por inteiro num único gole, mais ligeiramente do que língua de camelô. A noite, do que me lembram, fora linda, mas na manhã seguinte aportei em casa, sol lumioso, indo-me bêbado pela escadaria piramidesca, notoriamente trôpega também, dando-me os braços e corrimões, ao sentir-me o estômago querendo lamber os pés.


Na ébria ilusão de que molhando-me passaria o mal-estado, entrei no box do chuveiro, e, acho, apaguei! Horas mal dormidas e irrecuperáveis, já as sabia... No repente, acordei com água lá pelo pescoço e apavorei-me. Como poderia isto acontecido? Tentei abrir a porta do box e sair, mas pesou-me a lembrança da reprimenda: “Você não consegue tomar banho sem molhar o banheiro?” Ora, se com um pinguinho aqui e acolá era aquele deusnosacuda, que dirá se eu banhasse a casa inteira com aquele aguaceiro? Não, ou me sairia com um plano B ou, juro, morreria ali, afogado como um peixe.


Assim, prendi a respiração, mergulhei e descobri que a culpa de tudo aquilo fora de alguém — provavelmente as crianças em seus intermináveis banhos — que fechou a tampa do ralo. Ah, se eu escapasse daquilo... Destampei-o, imediatamente, e a água escoou, como seria de se esperar, pela tubulação. Entretanto, por inexperiência, nunca passara por tal situação, esqueci de me afastar e fui colhido num redemoinho gorgolejante d’água que me arrastou cano abaixo.


Por que não nadei? Meu amigo, nunca aprendi a nadar. Aliás, também nunca aprendi a beber, dirigir, assobiar, fazer bola de chiclete e andar de bicicleta, restando-me hoje apenas escrever, coisa que alguns afirmam, também não sei, e têm lá as suas razões...


No aperto sifonado, desacordava, quando passou-me às vistas um filme, assim mesmo como dizem, um curta decepcionante, quase apenas um trailer, e em preto e branco. Confusas imagens de meus inúmeros mundos obsoletos arrancados do peito pela desembaraçada capacidade de desprendimento e de inconclusão. A música gritava “Tempo, tempo, tempo, tempo, que sejas ainda mais vivo no som do meu estribilho”... e eu a respondia: pois que esta vida me venha bem devagar até restar-me apenas de tal tempo o seu ponteiro final.


Daí, súbito, despertei sentado à superfície de um box vazio de um tudo, exceto de um molambo pálido e nu, cuja alma pejada de inocentes pecados era banhada pelas córridas águas purificadoras gritando-lhe à meia mente a certeza de sua existência: errar, errar, errar e persistir no erro até que este, puro e besta, seja a única coisa mais certa deste mundo...


(*) baseado em Veni, vidi, vici (em português: "Vim, vi, venci"), frase do general romano Júlio César, em mensagem ao Senado após vitória na Batalha de Zela.


Raymundo Netto que desconfia de tudo, mas acredita em qualquer coisa. Contato: raymundo.netto@uol.com.br Blogue AlmanaCULTURA: http://raymundo-netto.blogspot.com

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"Sofreres d'Amor", crônica de Airton Monte para O POVO


Quem porventura acreditar que o romantismo morreu faz tempo, que não é mais crível nem possível a existência de pessoas românticas nesse mundo tão pobre de sentimentos, eu decididamente aconselho, sugiro que pense um pouco melhor, pois pode estar redondamente enganado. E com o empedernido coração pleno de equívocos. Sim, porque há pessoas que pensam de modo muito diferente e apesar da gélida indiferença de alguns de nossos semelhantes, ainda acreditam piamente no existir infindável do romantismo, quer estejam ou não incendiadas de paixão. Eu, mesmo correndo o risco de parecer patético, confesso ser um romântico incurável, sem qualquer pejo nem pudor. Sim, sou tão romântico que até pareço haver saído de um poema de Álvares de Azevedo ou de Lord Byron.


Conheço uma amiga, dessas raras mulheres que envelhecem sem perder o romantismo nem a capacidade de devanear sobre romances fantasiosos ou reais. Outro dia, numa de nossas longas conversas, ela me confessou timidamente que achava lindo um homem sofrer por amor. Não sofrer calado, discretamente, quase às escondidas como quem esconde, envergonhado, um terrível pecado. Admirava com fervor aquele tipo de homem que sofre às escâncaras, ostentando a sua dor-de-cotovelo feito um galardão pelos bares noite adentro, contando seu drama a qualquer desconhecido, com coragem suficiente para mandar a dignidade às favas. Respeito a opinião da amiga que, aliás, já ensandeceu vários homens.


Sei de casos do mesmo gênero, com alguns findando inclusive em suicídio. Nada vejo demais em sofrer por amor, do sujeito sentir-se mutilado ao perder a mulher amada e que a pensava sua para todo o sempre, assim na terra como no céu. Nada há de anormal, de doentio, em se ficar um certo tempo deprimido, na fossa, macambúzio, sem ver nenhuma graça na vida, em outras mulheres, tomar porres homéricos, dar escândalos em público, passar um vexamezinho aqui, outro acolá. Sofrer por amor é, talvez, a mais humana das dores. Entanto, como não creio nem sequer um pingo nesse tal de propalado amor eterno, penso que todas as dores e sofreres d’amor devem ser intensos e passageiros qual chuvas de verão. As musas mudam, se vão, mas o romantismo fica, dura, resiste, permanece.


A amiga, depois de ouvir-me, olhou-me de esguelha como se eu fosse um ser extra-terrestre, um alienígena do sentimento. De infarto você não morre, porque não tem coração, falou-me ela. E retirou-se, incontinenti, de minha incômoda presença. Chamei o garçom, pedi mais um chope e um samba bem triste do Noel. Quedei-me a lembrar amores idos e vividos, ocultos nas brumas do ontem e o quanto sofri, padeci por cada um deles num inventário masoquista. Para alguns escrevi poemas. Para outros, canções. Os versos permaneceram vivos, já os amores não. Meu coração não é besta e por eles não sofre mais. Meu coração é um vasto cemitério sentimental povoado de lápides anônimas, derruídas, soterradas pela poeira do olvido. O vento do tempo, implacável coveiro, felizmente apagou os nomes gravados em cada tumba. Mas não me arrependo de havê-los vivido.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Abertas as Inscrições para o II Edital Mecenas do Ceará


A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult) anuncia a abertura de inscrições para o II Edital Mecenas do Ceará, a partir do dia 7 de dezembro de 2010. O processo de seleção objetiva regulamentar o procedimento de inscrição, avaliação e julgamento dos projetos culturais apresentados à captação de recursos através do Mecenato Estadual em consonância com os preceitos da legislação estadual de incentivo à cultura. O edital terá recursos na ordem de R$ 4.788.000,00 (quatro milhões setecentos e oitenta e oito mil reais), que se dará através do repasse de até 2% do ICMS oriundos da arrecadação das empresas do Estado do Ceará.

Constitui objeto do presente Edital o apoio a programas, ações e projetos artístico-culturais apresentados por pessoas físicas ou jurídicas e que tenham por objetivo o fortalecimento do setor cultural cearense e a promoção do desenvolvimento social e econômico do Estado do Ceará, cuja execução esteja prevista para iniciar entre o período de janeiro a abril de 2011.

Todos os programas, ações, ou projetos apresentados deverão desenvolver em seu processo de execução a produção de produtos e serviços que englobem as áreas de artes visuais e fotografia, audiovisual, teatro, dança, circo, música, arte digital, literatura, livro e leitura, patrimônio material e imaterial, artes integradas (projetos, ações e programas que contemplem mais de uma linguagem artística).

O Edital, Anexos e outros poderão ser encontrados por meio do seguinte link:

http://www.secult.ce.gov.br/categoria1/mecenas-do-ceara/ii-edital-mecenas-do-ceara-2010/ii-edital-mecenas-do-ceara

"Reencontro", poema de Raymundo Netto


Sabes, tu já eras minha antes mesmo de nascer

Pois que tua alma fora partida de um mesmo pão

E teu corpo meu já fora

Porque teus poros são iguais aos meus

Meus dedos só cegam nos teus

Tua pele respira em mim

Teu sorriso me esquece da vida

E tua vida na minha é completa.

J. Fernandes, um dos maiores pintores do nosso Ceará, encantou-se

foto: O POVO


Aos 83, morre J. Fernandes


Na quarta-feira (8), a arte cearense perdeu um de seus grandes nomes. Vítima de falência múltipla de órgãos, o desenhista e pintor J. Fernandes (1927–2010) faleceu por volta das 20 horas. O velório ocorreu ontem (9) no cemitério de Caucaia, onde o corpo foi enterrado ao meio-dia. Há aproximadamente 40 dias o artista plástico estava hospitalizado.


Natural de Fortaleza, José Fernandes de Alencar começou cedo seu envolvimento com a arte. Conduzido ao ateliê Raimundo Cela, teve suas primeiras formações. Ficou conhecido por abordar temas cearenses em seus quadros. J. Fernandes era um dos remanescentes do Grupo Scap (Sociedade Cearense de Artes Plásticas), que contava com nomes como Aldemir Martins, Bandeira e Estrigas.


“Eu o conheci no tempo em que a Scap era o centro de atividades culturais. Com seu talento e bom trabalho ele se destacava dos outros”, enfatiza o também artista plástico e escritor Nilo Firmeza, conhecido como Estrigas. O psicanalista Antonio Mourão Cavalcante manteve uma relação de amizade com J. Fernandes na última década. “Ele era uma pessoa muito sensível. Um verdadeiro poeta e extremamente tímido. Era um excelente pintor de nível nacional e internacional.”, disse o psicanalista.


José Fernandes deixou cinco filhos adultos, três mulheres e dois homens, além da viúva Maria Malheiros. O artista ganhou fama por suas participações no Salão de Abril entre 1953 e 1990. Em 1955, foi premiado com a Medalha de Ouro na 11ª edição. “É mais um membro da Scap que desaparece. É mais um bom pintor que deixa de existir. Mas o J. Fernandes ficou na história dado a qualidade do trabalho desenvolvido por ele”, pontua Estrigas. (O POVO)


Chuvas do Adeus


Artista de várias nuances, segundo Nilo Firmeza, o Estrigas. J. Fernandes, um dos artistas plásticos remanescente da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap), como Aldemir Martins e Antônio Bandeira, faleceu ontem, em Fortaleza, vítima de falência múltipla de órgãos. Sua obra, dizia Estrigas, "é uma lição de que a arte de ontem ainda é boa para hoje e amanhã".


Estrigas conheceu o pintor e desenhista durante a década de 50, na época em que estava se projetando por meio de suas exposições individuais. Em 1955, seu quadro "Castigo imerecido" foi contemplado com a medalha de ouro no Salão de Abril.


"Escrevi sobre o trabalho de J. Fernandes, muito bem sucedido. Teve uma fase muito próxima do abstracionismo e ainda percorreu o expressionismo e o impressionismo. Embora soubesse desenhar e também fosse um bom aquarelista, ele pintava com óleo e tinta acrílica, técnica que passou a utilizar mais no final", conta.


Entre os temas abordados por Fernandes, Estrigas cita o paisagismo e os assuntos ligados ao mar. "Também fazia figuras e trechos de rua. Tinha muito talento. Era muito reconhecido por pessoas ligadas às artes e muito popular no mercado".


Porém, foi através do quadro "Chuva", que originou várias outras obras em torno do assunto, que ficou mais conhecido. "Todo mundo queria uma chuva de Fernandes. A gente brincava dizendo que ele já tinha pintado o inverno todo", comenta. "É mais uma perda para os remanescentes da Scap, grupo que já está bastante desfalcado. Mas a realidade é essa. Ele deixou o nome e ficou na lembrança das pessoas. Morreu cedo, tinha uma idade respeitável, não se podia dizer que era velho. Mas a morte não escolhe".


Homenagens

Em 2004, o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc/UFC) promoveu, dentro do calendário do cinquentenário da Universidade, uma exposição retrospectiva sobre a fecunda trajetória de J. Fernandes, uma homenagem ao artista que, de 1961 a 1990, emprestou seu esforço aos trabalhos do MAUC. Desenhista e pintor, J. Fernandes iniciou-se nas artes plásticas ainda jovem, com desenhos nas calçadas da rua onde residia, em Fortaleza.


Recebeu por algum tempo orientação do mestre Raimundo Cela, especialmente na área do desenho. Com a volta de Cela ao Rio de Janeiro, foi apresentado por Jean-Pierre Chabloz a artistas plásticos iniciados nos movimentos de renovação da arte cearense durante a década de 40, como a criação do Centro Cultural de Belas Artes (CCBA), em 1941, e da Sociedade Cearense de Artes Plásticas, no ano de 1944.


Começou a participar das diversas edições anuais do Salão de Abril, a partir de 1953 e até 1990, e a Salas Especiais nos XXV, XXVIII e XXIX Salões Municipais de Abril (1975, 1978 e 1979), aparecendo ainda na Mostra Paralela aos XL e XLI Salões Municipais de Abril, realizados em 1990.

J. Fernandes participou ainda das mostras "A Paisagem Cearense" no Museu de Arte da UFC (1963) e "Quinze Artistas Cearenses", no Crato (1966). (DIÁRIO DO NORDESTE)