domingo, 26 de setembro de 2021

"Mãe só se tem uma", de Raymundo Netto para O POVO


“Eu sou sua mãe, por acaso?”

Com as mãos nos quartos, a se ver um antigo açucareiro, Itelvina, ainda cedo, protestava diante das contínuas solicitações do marido que não dava conta de suas próprias coisas. Admirável nunca esquecer ou errar o caminho para a mesa de refeições ou à TV. Por outro lado, Astolfo, resignado como um asceta e habituado com a turra da esposa, nem ligava. Todavia, não tendo eu também o interesse de passar a mão em sua cabeça, confirmo: em casa, de fato, o homem era de uma prodigiosa inutilidade.

“Se não ajuda, criatura, pelo menos não atrapalha. Se não sabe limpar, não suja, pelamordedeus!!!” Quem ouvisse essa cantiga diária, certamente, pensaria que ela não suportaria por muito tempo, que desistiria e o condenaria aos umbrais do inferno. Mas, veja só, quando criticada por ser a única esposa que, em dia de encontros de família, preparava o prato do marido, disparava: “Eu coloco é um bocado de espinhas de peixe para ver se pelo menos uma dá conta de vez desse imprestável!” Não era nada disso, todos sabiam: ela o servia primeiro para garantir o melhor pedaço e fazer do jeito que ele gostava. Astolfo entendia que aqueles arroubos e ameaças eram da boca para fora, contudo, ali havia um porém: não falasse mal de sua mãe que a casa caía.

Itelvina e d. Ernestina nunca se deram muito bem. A sogra, como muitas, cria que o filho era demais para ela, que poderia ter coisa melhor. Havia falecido há um tempo, mas no calor das discussões, a culpa de tudo era sempre da má criação daquela mãe extremosa.

Astolfo, para escapar dos embates diários, tardava a voltar para casa. Do trabalho ia ao costumeiro bar, jogar conversa fora, beber folgadamente, traçar um espetinho, ouvir um sambinha ou assistir a alguma partida de futebol, qualquer uma.

Naquele dia, excedeu na medida do copo e erguendo-o com uma dignidade extraordinária e um tom de quem profetiza o fim do mundo, mas nunca a ressaca do dia seguinte, rasgou: “Homem que trai a mãe não deveria nem ter nascido!” Acompanharam em uníssono dois amigos de ocasião, tão melados quanto ele: “Mãe é sagrada!”.

Outro colega, o Lafaiete, súbito, largou o copo na mesa, e deitou a chorar um pranto irredutível. Ninguém entendeu. Deram uns tapinhas em suas costas, chamaram-no e nada, o homem desatinou e, aos poucos, pôs-se a cantar miseravelmente: “... eu me lembro o chinelo na mão, e o avental todo sujo de ovo... se eu pudesse eu queria outra vez, mamãe, começar tudo, tudo de novo...”

Os parceiros de mesa entenderam: Lafaiete estava órfão. Todos os abraçaram, com a mais legítima camaradagem e empatia, coisa que a sobriedade muitas vezes não tolera.

E foi assim, cambaleando, que Astolfo voltou para casa com a cançoneta na cabeça: “Ela vale mais para mim, que o céu, que a terra e o mar...”

Itelvina, que já estava em casa maquinando a discórdia do dia, quando o viu cruzar a soleira da porta tão destruído, assustou-se. Ele nada falou, apenas murmurava, como em transe: “Tu és a razão dos meus dias, tu és feita de amor e esperança...”

A seguir, deitou-se no colo da esposa, a chorar convulso, enquanto a mulher o acolhia no carinho de cafunés: “Tudo bem, meu filho, tudo bem... Vai passar, viu? Vai passar...”

E assim, no regaço quente da mulher, Astolfo mergulhou em sono perfeito e seguro, como se a ouvir o canto terno de anjo traiçoeiro, ladrilhado de pedrinhas de brilhantes, de um bosque que se chama solidão.

 


 

domingo, 12 de setembro de 2021

"O Corpo Nu", de Raymundo Netto para O POVO


 

“Desaforo! Sacrilégio! Blasfêmia!” O padre, convidado para celebrar a missa de passagem do morto, horrorizou-se ao ver que ele, bem deitado e curiosamente sorridente no esquife, estava absolutamente nu. Elias, amigo fiel de Betinho – esse é o nome do falecido –, ponderou: “Na vida nada se leva, seu padre. É o desejo dele”.

Pasmo em sua autoridade, o sacerdote enxugou a testa calva com a estola: “Como assim? Quem ele pensa que é?” 

“O defunto?”, retornou quase cínico o Elias. 

“Ora, vamos, morto não tem querer, meu jovem”, sendo imediatamente corrigido: “Esse tem, seu padre, e é ser enterrado nu.”

No velório, poucas testemunhas, apenas uns quatro amigos de boêmia e um maior número de ex-namoradas, amigas e amantes velavam Betinho. Como exige a boa etiqueta funerária, aproximavam-se do caixão, examinavam-no da cabeça aos pés com atenção – e, por vezes, com sinistro entusiasmo – e despejavam lágrimas inconsoláveis. Algumas, a sós com o cadáver, até abraçavam o féretro, como se a tirar a última casquinha do falecido. 

“Como morreu?”, perguntavam. “De amor. Nunca amou, mas quando aconteceu, lhe foi fatal.” Assim, elas puxavam o lenço e o olhar para ele, debulhando um choro incomum de dor de saudade e, ao mesmo tempo, de traição e rejeição. Isto para um morto é a morte!

O padre, em meio ao rebanho distraído, pedia forças aos céus para salvar aquela alma da ruína do pecado. Não conseguia nem olhar para aquilo: “Chegar nu à frente do Senhor? Indecência!” Elias insistiu: “Mas, seu padre, e ele não veio de lá assim?” 

Mesmo não sendo grande cristão, Elias cumpriu o catecismo básico imposto na época do colégio e argumentou: “E o Jó, aquele homem da paciência, lembra? Aliás, o senhor precisa aprender com ele, viu? Pois é, não é em Jó que encontramos: ‘Saí nu do ventre da minha mãe, e nu partirei. O Senhor o deu, o Senhor o levou’”.

“Está repreendido, meu filho! Eu não posso anunciar a vida eterna a esse, a esse... depravado inconsequente nessas condições. Não posso!”

Enfim, deu-se assim a melódia. Os amigos, doidos para ir ao bar e percebendo que aquela missa não ia sair mesmo, se determinaram: reuniram-se, empunharam as alças do caixão e saíram num cortejo desembestado capela afora em direção ao cemitério. 

O padre inquietou-se com a profanação. Arrepanhou a batina e, agitando a pesada cruz, passou a perseguir os “sequestradores”, batendo em suas cabeças e conclamando, ali mesmo, com auxílio de um coroinha sonolento, a cruzada católica do tapa-sexo, na tentativa de salvar dos infernos a alma do pobre Betinho, aos solavancos naquele caixão. “Irmãos, fechem esse portão! O campo é santo... santoooo!”, berrava o padre.

Daí, diante do portão do cemitério, agora trancado e guardado por um renque de carolas, a batalha continuou fervorosa. O padre, o coroinha, duas beatas e um bêbado puxavam o caixão de um lado, enquanto os amigos de Betinho o puxavam de outro, estraçalhando-o e deixando estatelar o corpo na calçada. Isso não impediu que o inflamado bate-boca continuasse, cercado por uma plateia anônima de curiosos que tomava as dores e o partido do padre ou dos amigos de Betinho. E essa zoada só findou, quando o morto, impaciente com tal indefinição, escalou feito lagartixa e pulou o muro do cemitério, desaparecendo das vistas assombradas e em busca, ele mesmo, da sua derradeira e desejada pá de cal, o aceno final de despedida a esse mundo de gente má e hipócrita.