segunda-feira, 27 de julho de 2020

"Para D. Zeneida", uma homenagem às avós por Vicente Jr.



Eu tinha uns dez anos quando a vi com os meus olhos curiosos de menino solto. Cabelo grisalho, penteado à moda de muito antigamente. Cheiro gostoso de Trimm. Óculos escuros de seriedade ímpar. Mas no cantinho um sorriso curto e acolhedor. As mãos com veias azuis combinando com o celeste nobre do vestido de florzinha branca. Veio na minha direção. Passos firmes de vida caminhada na retidão de mulher. Segurou as minhas mãos e eu sem saber o que fazer.... A minha mãe providente apenas disse. "Olhe, foi ela quem criou o seu pai". E eu ainda sem saber como fazer poesia disse uma das frases mais lindas do mundo: Bença vó?!  E ela me abraçou com cheiro doce de alfazema. Sorrimos cúmplices. Gratidão.



domingo, 19 de julho de 2020

"Bigode", de Raymundo Netto para O POVO


Friedrich Nietzsche

Bigode estava de saco cheio da mulher. Ela, todo dia, batia o ponto: “Seu preguiçoso, velho, muquirana...” Até aí, tudo bem, nem ligava. Porém, aquele dia lhe seria intolerável: “... e nem limpa mais esse... esse... bigode horroroso!” Ah, isso não. Havia ido longe demais! Aquele homem, desde o primeiro buço, trazia altivo e orgulhoso aquele volumoso ornamento nasal, a ponto de até ser chamado e reconhecido por ele. E, ela, logo a sua amada, lhe fazia deboche?: “Nunca gostei desse troço. Suportei!” Diante da severa profanação, como se alvejado no peito, Bigode pediu o divórcio.
Os primeiros dias foram terríveis, mas numa noite de cava tristeza, após comer um “cai-duro” de trailer de calçada, sem saber o que fazer nem para onde ir, sentiu uma extravagante liberdade: não precisava chegar em canto algum, dar satisfação a ninguém, nem hora de voltar para casa. Despertou-se ali uma juventude magnífica e com ela uma súbita autoconfiança, o esquecimento do luto divorcial e o desejo de conquistar um novo amor, um “brotinho”, como dizia.
Passou a caminhar na praça, frequentar academia e bares noturnos. Contudo, sendo ele um don Juan à robertiana moda antiga, ainda do tempo de prometer um mar de rosas à namorada, não se deu bem. As mulheres não eram mais as mesmas. Mais ousadas e diretas, algumas até se chegavam, mas na primeira cantada açucarada, olhavam-no de cima a baixo e pulavam fora. Queriam divertir-se apenas, nada mais. Parecia que o seu nietzschiano penduricalho perdera o seu suposto poder sedutor.
Julgando a velhice culpada por tal indesejável aversão, confessou-a ao colega, que de pronto decifrou: “Amigo, é esse seu bigode. Ninguém mais usa isso... assim. Se você tirasse esse bigode, acho que a mulherada ia pirar.”
Desolado, como se caminhasse ao brutal fuzilamento, mas ansioso por sentir novamente o calorzinho de um par de coxas, dirigiu-se à barbearia e, enlagrimado tal qual um bebê ao perder o doce, sentenciou: “Tira... tira tudo, tudo!”
Para a sua surpresa, ao se ver ao espelho, reconhecera aquele rosto adolescente há muito esquecido, quase estranho, e sorriu um sorriso distante, terno e gentil. Ali, assistia a sua juventude ilustrada por sonhos e certezas carimbados na face imberbe.
Naquela mesma noite, em trajes joviais e almiscarado dos pés à cabeça, um seguro Frederico – era esse o seu nome – sentou-se ao balcão de bar de boite bem frequentada. Lançava agora aquele desperdiçado e oculto sorriso ao mundo, como se a ele revelasse um tesouro, as tábuas da lei, um acontecimento.
Foi então que percebeu uma moça – uns 20 e poucos anos, apetitosa e belíssima em seu corpo viçoso, coberto por um suficiente vestido a realçar o corpo saliente – que, assim parecia, não desviava o olhar do seu. Não acreditava e disfarçou a afetação. Piscou presunçosamente e a saudou com o copo, como a consentir a sua aproximação. E ela, acredite, veio. A cada passo dela, pulsava nele um tremor terremótico, lascivo, o entusiasmo de primeiro homem a pisar na lua, quando ouviu da jovem: “Sabia que o senhor é a cara da minha finada mãezinha?”



"Ganhar o Mundo", de Pedro Salgueiro para O POVO




Em tempos de forçada reclusão me veio um antigo pensamento, uma daquelas ideias ociosas que nos assaltam em momento de tédio, seja na mesa de um bar, assistindo a uma chata partida de futebol na TV, naquele intervalo do lanche no trabalho, na parada de ônibus (falando em período de pré-pandemia); e agora que tenho que passar esse longo tempo em casa o tal raciocínio vadio me retorna com frequência: Por que passamos tanto tempo fora de casa, "pernando" sem rumo pelas ruas, procurando “sarna pra se coçar” muitas vezes sem motivos aparentes?
Lembro que antigamente, nos meus tempos de estudante, aperreado para dar conta das matérias atrasadas, tendo que encontrar uma folguinha pra ministrar aulas particulares que garantiam o vestuário, transporte e alimentação, eu vivia procurando um jeitinho de voltar logo, logo para casa, deitar numa rede com um livro interessante (enquanto criava coragem de enfrentar as rabiscadas apostilas), dormir aquela soneca vendo (entre o sono e a vigília) a milésima repetição da “Sessão da Tarde” (Ah, quantas Lagoas Azuis mergulhadas naqueles tempos idos!); pois bem, simplesmente vagar pela casa, em descuidos e afazeres, que era na verdade um prazer, quase uma necessidade sonhada.
Veio o tempo de faculdades (sempre mal terminando uma e já começando outra), do trabalho na repartição, das “peladas” com os amigos, de saídas com a namorada, dos muitos lançamentos de livros, de bares fortuitos e noitadas perdidas... Enfim, o que na época de juventude fora um sacrifício ia se tornando um hábito, não por deleite, mas meramente para seguir, por inércia, na roda viva da vida: fui me tornando um “sujeito da rua”, desses que, feito quase todos nós, ficava procurando um motivo para sair – impune e desligado – por aí, chinelão de dedo, calção surrado, camiseta frouxa: tome andanças pelas livrarias, casas de amigos, terminando preferencialmente num boteco desses que tivesse mesas na calçada.
Porém, sempre nesses instantes de descuidos da mente, me vinha o tal pensamento vadio: eu não estaria tempo demais no “meio do mundo”, por que não ficar em casa lendo, cuidando do jardim, vendo bons filmes, arengando que fosse com os da família? Não seriam perda de tempo demasiada essas andanças sem fim? Juro que não chegava a concluir esses raciocínios, mas maneirava e ficava por um bom período mais caseiro, concentrado, estudioso... Mas de novo a roda do mundo me pegava pelos sonhos e lá ia eu seguindo esse movimentado fluxo da vida (pois convites para sair nunca nos falta, não é mesmo!?).
Acredito que muitos hábitos nossos terão mudado com essa quarentena, alguns permanecerão conosco para sempre (espero!, que da crise hídrica no país ficou o hábito de fechar torneiras, daquela de energia elétrica perdurou o zelo com o desligamento de luzes excedentes em casa), como o da higiene e cuidados com a saúde, mas acredito que outros (a maioria, creio!) novos costumes rapidamente serão esquecidos, como essa saudável reclusão que tanto bem faz ao corpo e a alma: logo, logo seremos de novo seres nômades a não sossegar em casa, a procurar desculpas para “ganhar o mundo”.




quarta-feira, 8 de julho de 2020

I Concurso Literário Pintura das Palavras (até 27 de julho)


Além de te ajudar a destravar e a escrever mais e melhor, o Pintura das Palavras te ajuda também a publicar, não só com dicas diárias, mas com essa oportunidade incrível de participar do nosso 1º Concurso Literário Pintura das Palavras, com prêmios em dinheiro, certificados de menção honrosa, publicação do seu texto e, o melhor de tudo, uma bolsa para o curso 321escreva, ministrado por Vanessa Passos.
PARTICIPAÇÃO
Para validar sua participação, é necessário:
·         Seguir o perfil @pinturadaspalavras no Instagram;
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NORMAS DE ENVIO
Cada autor(a) pode enviar apenas 1 (um) conto, com tema livre e de no máximo 2 (duas) páginas no Word.
O conto deve ter a seguinte formatação: Fonte 12, Times New Roman, espaçamento 1,5.
Textos que não seguirem essa formatação serão eliminados do Concurso.
O conto deve ser enviado para o e-mail concursopinturadaspalavras@gmail.com no período de 10 de julho a 27 de julho de 2020.
Junto com o arquivo do conto, cada autor(a) deve enviar um arquivo à parte com a sua minibiografia de até 5 (cinco) linhas. Os arquivos devem ser assim nomeados: o conto: Título do conto – Nome do(a) autor(a); a minibiografia: Minibiografia – Nome do(a) autor(a).
RESULTADO E PREMIAÇÃO
Serão selecionados 10 contos a serem publicados em um livro digital (e-book) com ilustrações da artista visual Raisa Christina e prefácio do escritor Marco Severo.
Entre os 10 contos selecionados, serão escolhidos 3 contos referentes ao 1º, ao 2º e ao 3º lugar. Os autores destes três textos serão assim premiados:
·         1º lugar: R$ 300,00 + Bolsa integral para a próxima turma do Curso 321escreva
·         2º lugar: R$ 200,00
·         3º lugar: R$ 100,00
O resultado será divulgado no dia 30 de setembro de 2020 nas redes sociais do Pintura das Palavras.
O resultado é irrevogável.
 REALIZAÇÃO
@pinturadaspalavras
APOIO
@resumoeditorial



"As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira", pela Arribaçã Editora (Cajazeiras-PB)


A coletânea As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira, organizada pelo poeta Rubens Jardim, será publicada pela Arribaçã Editora. Publicada até agora apenas de forma virtual, a coletânea é uma das mais completas a abordar o universo poético feminino e reúne poetas de todas as épocas e gerações do Brasil. Ao lado de nomes como Hilda Hilst, Cecilia Meireles, Olga Savary, Cora Coralina e Maria Firmina, entre outros, estão grandes poetas da literatura contemporânea de diversos estados do Brasil.
Em pronunciamento em suas redes sociais, o organizador da coletânea, Rubens Jardim, saudou a decisão da Arribaçã Editora de transformar o projeto em livros impressos. Ele fez um apelo para que as autoras presentes na coletânea enviem termos de autorização, para que a edição seja agilizada.
De posse dos termos de autorização, a Arribaçã inicia imediatamente a edição dos três volumes. As autoras que não enviarem a autorização, ficarão de fora da coletânea. Em relação as poetas que já faleceram, que ainda não estão em domínio público, as autorizações devem ser feitas por familiares e/ou herdeiros. As autorizações devem ser enviadas para o email de Rubens Jardim: re.jardim@uol.com.br
As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira é um projeto do poeta Rubens Jardim desenvolvido em sua página nas redes sociais. A cada postagem, novas autoras eram enfocadas, sempre divulgando um poema e a biografia da poeta abordada. O projeto foi transformado em PDF e distribuído via internet e só agora vai virar realidade impressa.
Natural de São Paulo, Rubens Jardim, organizador da coletânea, é poeta com diversos livros publicados. Também organiza eventos e saraus poéticos. Fez parte do Catequese Poética, movimento iniciado por Lindolf Bell em 1964 com o objetivo de tirar a poesia das gavetas, tornando-a mais acessível através de apresentações, declamações, conferências e debates nas ruas e em universidades.
A expectativa dos editores da Arribaçã é de que até o final do ano os três volumes estejam impressos, dependendo da agilidade dos trâmites burocráticos.
Criada pelos jornalistas e poetas Lenilson Oliveira e Linaldo Guedes, a Arribaçã Editora tem suas raízes fincadas no Alto Sertão da Paraíba, mais especificamente em Cajazeiras. A editora trabalha com obras literárias, acadêmicas, biografias, entre outras. Contatos podem ser feitos na página da editora no Facebook, Twitter e Instagram ou pelo email: arribacaeditora@gmail.com
A editora também tem canal no Youtube. Endereço do site: www.arribacaeditora.com.br




"Leitores", de Pedro Salgueiro para O POVO



Sempre me chamava atenção quando, no meio dos afazeres na sua pequena oficina de sapateiro, entre consertos e cheiros de solas e colas, meu pai desamassava um velho jornal que viera embrulhando materiais de encomendas da capital, com paciência botava as folhas, muitas delas rasgadas, em cima de uma mesa ampla e riscada de ponta de faca no fabrico de sapatos, sandálias, cartucheiras... Com uma paciência tocante, deixava quase novinhas as páginas, que depois eram lidas com esmero por vários dias; não raro chamava um amigo para comentar uma notícia antiga que para ele tinha sabor de novidade, naqueles tempos em que as informações demoravam a chegar ao sertão.
            Alguns amigos que viajavam traziam também surrados revistas e almanaques, recordo de algumas “Seleções” amarrotadas, “Almanaque Fontoura” carcomido nos cantos, meio ensebados pelo manuseio das diversas mãos que passavam pela oficina, páginas dobradas indicavam histórias mais divertidas, até sovela já encontrei como marcador de páginas; às vezes eu chegava sorrateiro, perambulava por lá sentindo o cheirinho gostoso da cola na vaqueta, ia ao quintal, sem que ele me percebesse, tão entretido estava na sua leitura: uma vez, pego na distração, largou rápido a revista e recomeçou o trabalho, com jeito de menino que tivesse sido pego em flagrante nalguma danação.
            Seu Arimatéia (que devido as suas insistentes leituras era apelidado, não sem ironia, por alguns amigos de “Ari Mundial”, do que se orgulhava) escondia na gaveta da máquina de costura alguns cordéis com poemas populares, alguns com temas picantes que sempre lia pros amigos longe da vista da gente; não conto as vezes em que, subitamente, ele parava uma dessas leituras pela chegada de um estranho, mulher ou criança... Quando eu estava por perto logo me mandava fazer alguma tarefa bem distante, dar um recado inútil, que mesmo na minha pouca idade já sabia ser apenas uma forma de continuar, sem plateia indesejada, aquela leitura traquina.
Quando não queria testemunha para alguma conversa proibida ou leitura picante com os amigos, mandava-me ir à bodega do meu avô materno, logo do outro lado da rua – o que eu adorava, pois por lá sempre ganhava uns bombons e ficava peruando ele jogar damas com amigos, mas na maioria das vezes o velho Chico Inácio estava de cabeça baixa com seu livrinho de caubói em distraída leitura, aí não adiantava pedir a bênção nem olhar guloso pra lata de bombons, das páginas ele só arredava se algum freguês insistisse em bater com o nó dos dedos na gasta madeira do balcão.
Indo pra casa, costumeiramente avistava (no terreiro da sua casa de esquina no Alto das Pedrinhas) minha tia Maria sentada numa antiga cadeira de balanço com seu livrete à mão, então corria para casa buscar a velha edição de O País dos Mourões, de Gerardo Mello Mourão, que meu velho guardava na gaveta do guarda-roupa: pegava o volume e fingia lê-lo com aquele delicioso prazer dos adultos.
E hoje, matutando sobre meu vício por livros, chego à conclusão de que bem mais que ensinamentos na escola, conselho de professores etc., o que verdadeiramente me influenciou nesse gosto foram esses inveterados leitores que fui vendo pela minha infância afora. 







sábado, 4 de julho de 2020

"Boca de Inferno", de Raymundo Netto para O POVO



Eurídice era o diabo! Mulherzinha casca grossa, cruel, fofoqueira, mais fria do que uma noite sem amor. Não à toa, afirmavam os cidadãos daquela pacata cidadezinha esquecida, acabou sozinha: “E tem homem que aguente aquilo?”
Morava Eurídice em uma casa alta, a mais elevada da rua principal. Às tardes, sentava-se atrás da balaustrada, observando a todos de sua posição superior. Quando em vez, gritava com os passantes, os criticava, revelava seus segredos compartilhados pela funesta “rádio fofocaria” da cidade. Soberba, não temia ninguém e adorava uma discussão, na qual, sem escrúpulos, saía vitoriosa.
Todavia, um novo pároco, cansado de ouvir o seu nome malcitado pelos fieis, a alertou: “Acautelasse, pois daquele jeito poderia cair no inferno!” Ora, o medo de ser rebaixada à condição de inferno, logo ela, detentora de um espírito elevado – e não movida por outro sentimento meritório –, a fez refletir e tentar amansar seu coração tão “verdadeiro”.
Nos dias seguintes, passou a bater à porta daqueles que havia injuriado. Para surpresa deles, ela figurava um sorriso tão desconhecido quanto sinistro, acompanhado de um discurso de falsas moralidades cristãs. Às mãos, uma cestinha de pães, doces, geleia ou biscoitos. Certa de sua recompensa espiritual, após um curto e desconcertado abraço, saía pela rua, pescoço altivo, ao olhar basbaque daqueles que, logo, logo jogariam aquelas oferendas pela janela, com receio de estarem envenenadas.
Embora soasse falso e interesseiro, ela, reconhecemos, se esforçava. Por conta daquele abraço, ao cruzar a porta de sua casa, corria para tomar um demorado e esfregado banho. Chegava a doar ou jogar fora a roupa que usara. Diante de uma abundante raiva de si, se inclinava ao oratório: “O Senhor está vendo, hein?”
Entretanto, algo se deu. Aquelas pessoas começaram a confabular sobre o estranho comportamento da “bruxa”. Cogitaram ter ela alguma culpa secreta, íntima, algo grande, uma fraqueza qualquer. O que seria? Fato: a criatura estava ficando mole!
Baseados nessa certeza, a vizinhança deixou de temê-la. Olhavam-na com desdém, sorriam cinicamente ao cruzar com ela no mercado, às vezes dando-lhe até cotoveladas e esbarrões. Foi na feira, que aproveitando-se dessa fase de paz e amor, uma incauta, antes perseguida, olhou-a com uma aversão singular e atirou: “Bruxa velha solteirona!”
Eurídice não acreditou no que ouviu. Teve vontade de espancar, morder a orelha e matar aquela infeliz, mas, lembrando-se do alerta do padre, segurou como nunca seu ímpeto atroz, caindo numa convulsão e agonia, seguida por uma espetacular ânsia de vômito.
Em meio a todos os curiosos, a mulher se contorcia, enguiando, enguiando até vomitar um imenso dragão. A fera, saindo de sua boca, rugia aterrorizante, macabra e, voando com as suas negras asas de morcego, cuspia fogo nas casas do entorno, colocando o povo para correr – com exceção dos já desmaiados – e depois partindo em direção ao horizonte.
Na semana seguinte, Eurídice era de uma docilidade impressionante, dando bons-dias, desta vez sinceros, livre agora da antiga azia que lhe tomava a boca do estômago há anos. Mesmo assim, todos, desde então, a tratavam com excessivo respeito, imaginando que outros terríveis monstros estariam abrigados, ali, no ventre daquela mulher.



"O encantamento de Arievaldo Vianna e sua chegada no Céu", de Klévisson Viana


Que a Divina Providência
Inspire esses versos meus,
Traga a verdade e a doçura
De Jesus, Rei dos Judeus
E o sopro incontestável
Da influência de Deus.

Arievaldo Vianna
Foi poeta brasileiro,
Cordelista de renome,
Bom irmão, bom companheiro;
Tudo que fez tinha o brilho
De um talento verdadeiro.

Aqui no plano terrestre
Só semeou a bondade,
Ajudou o semelhante,
Nunca perdeu a humildade,
Foi um artista dotado
De grande simplicidade.

Tinha verve de humorista
A qualquer hora do dia
E, quando contava um causo,
Botava encanto e magia
E, por onde ele passava,
Brotava um pé de alegria.

Encantador de plateia,
Com voz bonita e possante,
Culto, suave e profundo,
Com sua prosa instigante,
Da cultura popular
Era devoto e amante.

Viveu 52 anos,
Porém produziu por dez
Artistas mais dedicados.
Cumpriu bem os seus papéis
E teve destaque como
Um dos grandes menestréis.

Deixou mais de 30 livros,
Folhetos bem mais de 100.
Com imensa facilidade,
Escrevia muito bem
E, em matéria de humor,
Não tinha para ninguém!

‘O Baú da Gaiatice’
Foi o seu livro de estreia,
Sua prosa e o seu verso
Tinha o dulçor da colmeia
Do mel silvestre extraído
Pra o deleite da plateia.

Escreveu pra São Francisco
Um livro bem pesquisado
Com tudo que era folheto
Sobre o tema registrado.
Com paciência, anotou
Depois deixou publicado.

Com o “Acorda Cordel”
Alçou voos nacionais
E teve oportunidade
De produzir muito mais
Junto com Jô Oliveira,
Artista muito capaz!!!

E, para Leandro Gomes
De Barros, fez com valia
Um livro muito importante
Contendo a biografia
Do mestre lá de Pombal
Que foi rei da poesia.

Vários livros publicados
De sua verve tão fina...
Fez “Sertão em Desencanto”,
“No Tempo da Lamparina”.
Cada obra que escrevia
Era única, genuína.

Na família era estimado
Por pais, irmãos e por filhos.
Pra ajudar quem precisava
Nunca botava empecilhos,
Pois seu vagão de bondade
Nunca saía dos trilhos

Deixou centenas de amigos
Que choram sua partida
Prematura, na verdade,
Sem direito a despedida.
Todos lembram de Ari
Nos bons momentos da vida.

Dizem que os bons morrem cedo,
Ari cumpriu a missão!
E o bom Deus o levou
Pra residir na Mansão
Celeste onde a poesia
É linda igual oração.

Marcos Aurélio chorou,
Autemar tá descontente,
Chora Itamar e Vandinha
Sua presença inda sente,
E Klévisson Viana luta
Pra tocar o barco em frente.

Sua mãe, dona Hatiane,
Seu paizinho Evaldo Lima
Rezam para o filho amado
Por quem nutrem grande estima.
Ari fez da vida um verso
Com oração, métrica e rima.

O seu filho Daniel,
Sua filha Mariana,
O Yuri e o João Miguel
E a esposa Juliana
Lamentam a partida súbita
De Arievaldo Vianna.

Contudo, o bom Deus achou
Por bem chamar o poeta,
Pois viu que sua jornada
Já estaria completa.
Como Deus tinha outros planos
Traçou pra ele outra meta.

Quando o corpo de Ari
Sucumbiu à bactéria
E o espírito do poeta
Se desprendeu da matéria,
Os anjos levaram Ari
Dessa terra deletéria.

Chegou no Céu Arizinho
Com uma mala de cordel.
No portão logo avistou
Alzirinha e Seu Manoel,
Os seus avós estimados
Que abraçaram o menestrel.

E Ari, não mais sentindo
Dores, fraqueza e cansaço,
Vendo seus avós queridos,
Os envolveu num abraço
E confirmou que a família
É incontestável laço.

Após descansar um pouco,
São Pedro, bem sorridente,
Cumprimentou o poeta,
Que já estava contente,
E não sentiu mais tristeza
Daquele instante pra frente.

Num belo jardim que havia
Perto da Santa Mansão
Estava Alberto Porfírio
Improvisando em quadrão
E junto a ele encontrou
João Firmino e Azulão.

João disse a Arievaldo:
— Que bom lhe ver por aqui!
Se achegue, ande pra cá
E venha olhar de per si
A festa que hoje faremos
Pra lhe receber, Ari.

E chegou Ribamar Lopes
Escrevendo num caderno.
Quando viu que era Ari,
Deu-lhe um abraço fraterno
E disse: — Ari, lhe esperava
Na morada do Eterno!

Ariano Suassuna
Cumprimentou o poeta,
Chegou Gonzaga Vieira
Andando de bicicleta
E logo foi se formando
Uma plateia seleta.

Chegou ali Santo Antônio
(Seu santo de devoção)
Ao lado de São Francisco,
Veio apertar sua mão.
Ari segurou as lágrimas
De alegria e emoção.

A Santa Virgem Maria
Lhe mandou carta lacrada.
Quando Ari abriu e leu,
Disse a Santa Imaculada:
“Fique calmo, sua mãezinha
Por mim será confortada.

A seu pai, Evaldo Lima,
Já mandei uma mensagem.
Ele é maduro e entende
Que a vida é uma passagem
E as riquezas terrenas
Não passam de uma miragem”.

João Firmino se achegou,
Perguntou: — Arievaldo,
Como vai Klévisson Viana,
Meu amigo de respaldo,
Rouxinol do Rinaré
E Evaristo Geraldo?

Ari disse: — Eles estão
Com medo da pandemia,
Mas, mesmo em tempos difíceis,
Nunca perdem a alegria
E não abandonam o front
Em defesa da poesia.

Ari disse: — Também tem
O Pedro Paulo Paulino,
Marco Haurélio e Eduardo
Macedo, poeta fino!!!
E o nosso Jota Batista
Que é um cabra malino!

Tem Paiva e Paulo de Tarso
Poeta e declamador,
O pessoal da AESTROFE
Digno de todo valor
Os vates do CECORDEL
E a Casa do Cantador.

Depois chegou Valdir Teles
Com a viola afinada
Junto a João Paraibano,
Vate de mente afiada,
Cantaram pra Arievaldo
Uma bonita toada.

Chamaram então o poeta
Patativa do Assaré
E Paulo Nunes Batista,
Com inspiração e fé,
Deu vivas ao bom poeta
Que viveu em Canindé.

Ari olhou para um lado
Onde se avistavam uns jarros
Chegou uma comitiva
E estacionou uns carros
Trazendo o grande poeta
Leandro Gomes de Barros.

Leandro deu-lhe um abraço
Com efusiva alegria,
Lhe cobriu de elogios,
Recitou uma poesia
E agradeceu Ari
Por sua biografia.

Ari louvou a Leandro
(Aquele espírito de luz),
Quando o foi chamar de mestre
Disse Leandro: — Jesus,
Só ele é quem é o Mestre
Que morreu por nós na cruz!

Foi uma festa bonita
Que durou mais de um dia
O jardim celestial
Se encheu de alegria
E em toda parte nasceram
Muitas flores de poesia.

FIM