segunda-feira, 15 de abril de 2024

"Ziraldo no Ceará (parte 1)", de Raymundo Netto para O POVO


A última vez que Ziraldo veio ao Ceará participar de uma Bienal aconteceu em 2010, a convite meu, quando estava curador da programação da Bienal Internacional do Livro do Ceará, cujo tema era “O Livro a Leitura e os Sentimentos do Mundo”.

Era abril, o mês do livro e do aniversário da cidade, e eu queria trazer alguns nomes caros à infância brasileira, além de outros que, mesmo não tão badalados naqueles tempos, decerto eram imortais na lembrança dos(as) leitores(as) cearenses de todas as idades, como Carlos Heitor Cony, Affonso Romano de Sant’Anna, Tiago de Mello, Marina Colasanti, Maurício de Souza, Pedro Bandeira, Ana Miranda e Ziraldo. Claro, no quesito literatura infantojuvenil, teríamos os(as) cearenses Horácio Dídimo, Socorro Acioli, Klévisson Viana, Elvira Drummond, Tércia Montenegro, Arlene Holanda, Almir Mota...

Como curador da programação, fiquei responsável em receber os convidados. Naquele dia, iria encontrar o Ziraldo no aeroporto. Disseram-me: “Este não dá trabalho – alguns deram –, pois sempre vem com a esposa ou com o agente dele. Bastava recebê-lo e deixá-lo no hotel.” Assim me disse a produção.

Contudo, não se deu assim. Ziraldo chegou sozinho! Quase correndo, assustado, no meio do povo. Perguntei-lhe pela esposa: “Depois da festa de aniversário que ela deu ontem, eu não sei nem quando ela vai acordar...” E o seu agente?: “Quebrou o dedo do pé.”

Chegamos ao Marina Park Hotel, onde se hospedaria. Apresentei a ele a equipe que estava ali à sua disposição, mas: “Raymundo, eu não fico sozinho!” Perguntou se eu tinha o contato do Mino. Eu tinha. Pediu que eu marcasse um almoço com ele. Teria também uma entrevista marcada, mas não sabia onde, com alunos do jornalismo da UFC – era para a revista Entrevista, sob a coordenação do Ronaldo Salgado.

Enquanto acertava com o Mino o almoço no restaurante da Beira-Mar, tirei de minha mochila uma encadernação com todos os 10 números da revista da Turma do Pererê, pela Abril (1975), o seu retorno após a primeira “temporada” pela O Cruzeiro.

Ziraldo se emocionou. Disse que aquelas ele não possuía. Autografou ao seu estilo. Lamentou que naquele tempo estava chateado com a editora por conta de divergências. “Cabeça-dura”, preferiu cancelar. Por outro lado, sabia que poderia ter se empenhado mais, ter feito mais: “Ninguém falava ainda em Ecologia nem na valorização da fauna nativa ou da cultura brasileira... Tinha tudo para ser um sucesso maior!” Folheou demoradamente e depois me devolveu a minha pequena coleção agora autografada.

De fato, a Turma do Pererê foi a primeira revista em quadrinhos brasileira feita apenas por um só autor, sendo também a primeira HQ a cores publicada no país.

Saímos do hotel para nos encontrarmos com o Mino no restaurante do Faustino, uma excelente vista para o mar. Muito bonito e divertido presenciar o encontro desses dois talentosos cartunistas, ainda mais ciente da importância de Ziraldo no rumo seguido pelo Mino, o pai do “Capitão Rapadura”, o herói que (quase) tudo atura.

Por volta das 15 a 16h, chegou o Ronaldo Salgado acompanhado de um bom grupo de jovens estudantes do 6º semestre do curso de Comunicação.

Pedi que Ziraldo tentasse não se estender muito, pois a mesa dele na Bienal aconteceria no início da noite. Ele me tranquilizou... “Nem gosto muito de falar. Em 15min, eu termino.” Quando sentou-se à mesa, começou a perguntar o nome de um por um. Quando o(a) estudante respondia, ele perguntava: “E por que do seu nome?”. Pronto, ali fiquei certo que seria uma longa, muito longa entrevista.

 

(CONTINUA)





 

segunda-feira, 1 de abril de 2024

"Luzeiros", de Raymundo Netto para O POVO


Publicado originalmente em Os Acangapebas

 

Estacara a hora, e pensamentos ondeados de recordações saudadejavam de distâncias o horizonte.

Silêncio.

Os búzios urdiam o colorido da imensa solidão apresentada.

Os pés firmes, artelhos tortos, unhas pretas, entranhavam-se na areia ao lamber das águas brumaceiras. À mão em concha, proteção do Sol, o velho pescador sorria em seu peito as fantasias de um menino de um dia, firme, garantir: “eu quero ser é pescador!” E foi. Se foi. Lembrava.

Nas vigílias das noites, o silêncio num manto azul de luzeiros cintilantes, a fogueirinha no mar, a harmônica tristíssima e o marulhar a balouçar-lhe os pés.

Ademanhãzinha, via lá do mais alto mar, os magros coqueiros a silhuetarem acenos aos ventos, como os negrinhos correntes em felizes mantos de areias brancas.

Sentia-se um deus, enquanto jangadeava; em casa, porém, a figura magra dos filhos, a mulher maltratada, a comida quase posta à mesa, o entristecia. Deus morto era o que era!

De enquanto fora do mar, para engolir as mágoas, tornava-as com uma branquinha, senão não dava... Francisco, filho mais velho, sempre de ir buscá-lo no bar: “De novo, pai? Bora, a mãe tá chamando pra janta!” e o carregava nos ombros. Ele, não muito mais do que uma criança, faltava de só chorar a vergonha diante do seu Francisco.

Ah, mas quando de chegada a hora da lida, era todo habilidade de mestre! Entanto, devido às doenças a vir de idade e da má sorte, teve que parar. Desde então, fazia a canivetes jangadinhas de vender aos turistas. Alguns zombavam do infeliz:

– Ah, desse tamanhinho é fácil. Quero ver é fazer jangada de verdade!

– Eu faço, doutô! – orgulhava. – Não duvide, faço, sim, e das boa!

Mas não havia de venda quase nada; bom de prosa, tempo gasto no leriado nas rodas de rapazes e moças, era de sua volta à noite da vila umas poucas migalhas e muitas, quase todas, jangadinhas.

Francisco crescera na dificuldade e, mesmo tanto, um dia chegou ao pai: queria ser pescador! De susto o velho logo se inquietou. Enfim, haveria de voltar em braços jovens de filho ao mar, donde nunca de haver saído na vida. Pôs-se a trabalhar a empenho:

– Olhe, meu filho, escute: quem faz um cesto, tendo tempo e cipó, faz um cento! – ria-se, remoçado. O filho iria ao mar!

Naquele dia Francisco partiu. Partiu e voltou não. E mais nada. O mestre enlouqueceu. Todos os dias, tomava as areias madrugueiras a divisar o vasto vazio de nada e coisa alguma. Silêncio.

A sua mulher, por outro lado, inda servia a mesa. Rezava. Estranhava-lhe os modos do marido. Acostumara-se, ora. Quantas noites cruzadas ao claro? Quantas de silêncio?

Mais dias e, então, Francisco voltou. Havia um acontecido. Nem importa qual: voltou!

Depois, por se esquecendo, pediu ao pai, a bênção de nova chance. Queria mesmo era ser pescador bom como ele; não se dobrar a oceano algum, adestrar-lhe as vagas e saber-lhe os cicios e segredos; queria, pois seu querer era tão mais forte quanto ele.

O velho pescador alucinou. Apertou o arrugamento da testa e coçou, sob o chapéu de palha, pés de confusão. Ondas quebravam no dorso das pedras desabrolhadas ao veludo frio do mar. A folgada sucessão de águas reconstruía memórias. Poesia gritava aos seus ouvidos em voz rouca dos corais, e foi assim que respondeu.






 

segunda-feira, 18 de março de 2024

"Hotel São Pedro: estertores finais", de Raymundo Netto para O POVO

O polêmico infortúnio do Hotel São Pedro (ou Iracema Plaza), edificação em forma de navio, que singra a região desde 1951, um dos pioneiros do ramo hoteleiro na orla da cidade, entre outras peculiaridades arquitetônicas e turísticas, é apenas mais um capítulo da nossa Fortaleza distraída e ambiciosa. Uma cidade sem passado, sem rosto, sem futuro possível.

Há quem diga, no discurso nostálgico, idealizado e falso: “Antigamente as pessoas respeitavam mais o que era antigo”. Isso é uma disparatada ilusão e, para não romantizar mais, outra mentira! Contamos nos dedos as nossas edificações construídas no século XIX. As poucas que restam, e muito poucas – por experiência, em breve, ainda menos –, datam do início do século XX, pois que nossos pais e avós, que Deus os tenham e os perdoem, já gostavam mesmo do “novo”, dos “modismos”. Naquela época, patrimônio era apenas uma palavra horrorosa e sem sentido, a não ser para aquela minúscula e sempre poderosa parcela privilegiada que já nasce em berço de ouro (que depois vira patrimônio e até razão de morte em família) e que sabe bem o valor que um patrimônio (financeiro) tem. Daí, em 2024, quando o exótico e imponente prédio completa 73 anos de existência e divina resistência, nós fazemos com ele o que a sociedade ignorante, consumista e desperdiçadora faz com os nossos idosos: os reconhecem como inúteis, desprezam a sua história, o seu legado, os seus feitos em vida produtiva e passam a desejar que se vão, que morram logo para não dar mais trabalho e ocupar aquele lugar que poderia ser de outro. Afinal, já viveu demais... e o povo gosta mesmo é de plástico, espelhos, silicone e BBB!

Vejamos: há 18 anos – acredite, tempo suficiente – teve início o seu processo de tombamento. O que foi feito desde então? Nada! “Deixa cair! Quero é ver!”

Acontece algo assim também com outro prédio na cidade, que, como não poderia ser diferente, pertence a uma família iletrada, rica de dinheiro e de cultura de TV. O proprietário já afirmou, com toda a sua autoridade (ou boçalidade) política e bancária: “se tombarem, eu o derrubo!” Lembremos da inocente canção: “quem tem mais do que precisa ter, quase sempre se convence que não tem o bastante.”

Coincidentemente, desde o início do processo, o São Pedro ficou à deriva diante do esvaziamento dos últimos moradores e do seu desrespeitoso, gradual e acelerado desmonte. Alia-se a isso, a falta de decisão e de ação do Poder Público (uma legislação que treme feito vara verde) e os conflitos de interesses com a família proprietária, irmanando-o com o “Mara Hope”, outro “encalhe” na nossa deflorada Praia de Iracema, a praia dos amores, que devem estar por vir com os escafandristas do futuro buarqueano.

Nos meus inquietantes sonhos, esses concentradores de renda têm a noção de retribuir à cidade e à sociedade – que bem sabem ser explorada a seu serviço – esses patrimônios. Que as grandes construtoras, curiosamente generosas em doações abundantes e “despretensiosas” durante as campanhas políticas, unidas, usassem desses recursos na solução de casos como esse, quando a engenharia poderia mostrar o seu valor. E que os gestores, com coragem e mais atentos aos clamores sociais (e não políticos, partidários e/ou econômicos) e àquilo que a sociedade precisa, mesmo quando não entende ou não sabe, abraçassem essas causas, articulassem parcerias estratégicas e inteligentes, tomassem a frente de campanhas de mobilização de recursos para cumprir e fazer valer o idílico “pertencimento”. E que o nosso “Titanic de tijolos”, que há quem diga “Nem Deus derruba”, não se choque com o vil iceberg “da força da grana que ergue e destrói coisas belas.”


(*) texto adaptado do anterior de 2021, mas como nada mudou...

 



 

domingo, 17 de março de 2024

"Coleção ESTALOS!", da Avoante Editora e Reboot Comics Store


Um, dois, três, quatro... ESTALOS!

Sim, são quatro, até então, as edições da Coleção Estalos!, uma seleção de mini graphic novels (10,5x14,5cm e 26 páginas, P&B), com tamanho e preço que cabem no seu bolso... ou bolsa, mochila ou seja lá qual for o acessório onde você prefira acolher esses pequenos portais de outras dimensões quadrinhísticas.

A Avoante Editora, que, segundo a própria, “nasceu com o desejo de tomar o mundo, formando seu resistente bando e dando voz e canto a cada uma de suas aves, arribando aos céus às asas da criatividade e pintando o firmamento com a penugem de sua terra natal”, traz à frente o roteirista, revisor, editor e professor Luís Carlos Sousa, o comunicador, crítico de cinema e youtuber PH Santos e Érika Sales, proprietária da Reboot Comic Store, revistaria especializada em quadrinhos e produtos geek, além de ser ponto de encontro e promoção de eventos e publicações independentes na área.

A organização e planejamento da Coleção é de Érika Sales, que divide a direção editorial com Luís Carlos Sousa – que também é editor de toda a Coleção –, sendo Márcio Moreira o responsável pelo design do seu projeto.

A Coleção tem por objetivo fomentar a produção independente local, trazendo sempre grandes feras dos quadrinhos cearenses.

Entre os títulos atuais:

ESTALO 001. Anamnese, de Márcio Moreira (roteiro e revisão) e Talles Rodrigues (desenho):

poderia ser “Yellow Submarine”, poderia ser “Another Brick in the Wall”, mas não é, apesar do surrealismo. Um mundo distante geograficamente, mas muito próximo de nossas mentes em ebulição. Nele, alguém pensa que vai morrer. Será? A sua salvação está nas mãos de um ser, uma curandeira mística, que mergulha com ela no espaço da fantasia de si mesmo para combater seus medos e ir em busca da razão de sua angústia.  


ESTALO 002. Complexo de Dédalo, de Johta (roteiro e desenhos). Márcio Moreira foi o revisor e a capa contou com a participação de Rodrigo Matos: um autor independente de quadrinhos gay passa por um bloqueio criativo, justamente quando aparece a oportunidade de sua vida. Juntamente com o gato Kerberus e alucinações (?) íntimas, acompanhamos a luta de superação de conflitos não muito estranhos (o seu “labirinto”) do jovem... hã... protagonista.


ESTALO 003. Licya e o Labirinto, de Márcio Moreira (roteiro) e Débora Santos (desenho). No miolo, a participação flashônica e especial de Nádia Lopes, Talles Rodrigues, Natália Prata, Luís Carlos Sousa, Letícia Bernardo, Davi Ferreira, Johta e Nycolas Di: voltando ao “labirinto”, desta vez com a engraçada adolescente Licya que, diante de um esbarrão acidental com a jovem Kaline, tem que tomar uma decisão aparentemente simples, porém, a leva a antever seu futuro de sucessos ou conquistas que poderão vir ou não por conta dessa escolha. Será que a fofa conseguirá se decidir antes de surtar?


ESTALO 004. Goku e a Flauta Doce, de Deleon Stu (roteiro) e Nycolas Di (desenho): aqui, novamente as escolhas empatando a vida da gente. Nessa divertida história, o personagem-menino tem que escolher entre a flauta doce, com a qual levaria arte ao mundo, e o pequeno Goku, parceiro no objetivo maior de meter a peia em todo o mundo.

 

A Coleção e os seus números podem ser encontrados e adquiridos na Reboot Comic Store, localizada no Shopping Benfica. Claro, eu já tenho a minha...

E melhor: estou sabendo que, em breve, sairá a número cinco. Para não perder nenhum número, conhecer esse ponto de encontro dos quadrinhistas e aficionados por HQs e estar a par das novidades da Avoante Editora, acompanhe:

Instagram:

@rebootcomicstore | @avoanteeditora

Facebook:

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Site e Loja Virtual:

www.rebootcomics.com.br

Contato (e-mail):

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quinta-feira, 14 de março de 2024

"A Rede", de Raymundo Netto para O POVO

 

Cansado de ouvir os reclamos da mulher todos os dias à beira do fogão, Zé Panapanã, que acabava de chegar da lida na roça, ainda salgado em suor e com as pernas “à milanesa”, largou a enxada e mergulhou na primeira rede que encontrou no alpendre.

Quando pronto o almoço, não se buliu. Nem quando a mulher, insistente, sacudia o punho daquela rede: “Tá morto, Zé? Ôxe, nem pra comer se mexe? Avia!” E nada.

Poderia ser birra, o Zé era teimoso e ao mesmo tempo não tinha ambições, nem as pequenas, mais queria o sossego do que tudo no mundo. Dali não sairia, nem para comer, para ir ao banheiro, pitar seu cigarrinho ou dormir.

A mulher se preocupou, mas achava que o turrão não resistiria à frieza cortante da noite. Porém, ao acordar, ela o encontrou ainda mais embiocado, não se vendo nem uma brechinha do homem na rede: “Vai trabalhar hoje, não, preguiçoso? Aqui não tem café pra gente dorminhoca, viu?” Não adiantava. Por mais que Solange berrasse às franjas da rede, o Zé não dava um pio. Dias depois ela decidiu consultar o farmacêutico da cidade que, na falta de outro doutor, poderia ter com o marido: “Tá custando dentro da tipoia, seu Augusto. Não levanta pra nada, nem pra comer, nem pras necessidades. Deve de tá doente... mas não fala nada...”

O farmacêutico estranhou a história e, por curiosidade, descambou a visita.

Chegou batendo sonoras palmas no batente da casa, como se não soubesse estar logo ali, recolhido na rede, o marido de Solange.

Arrastou um tamborete, tentou puxar conversa, sem sucesso. Perguntou se sentia dor, se havia diarreia, alguma anemia, dificuldade de respiração. Com esforço, vez ou outra ouvia um sussurro, uma espécie de “deixe estar” ou coisa parecida. Puxava o pano da rede tentando abri-la para examiná-lo e não conseguia. Já irritado, porém percebendo a aflição da mulher, receitou algumas mezinhas: “Deve ser somente alguma verminose associada à cisma mesmo. Paciência.”

Todavia, o certo é que nem Solange conseguia que o Zé tomasse qualquer coisa, como nem aqueles poucos sussurros se ouviam mais. Ela apelaria, então, ao jovem pároco local. Ele, de cara, denunciava a ausência divina no coração daquele homem que, inclusive, nunca pisara a soleira da igreja e não cumpria sequer com os seus sacramentos.

Em uma primeira visita, tentou extrair, inutilmente, uma tal confissão. Depois, clamando aos surdos céus, o provocou a levantar-se dali, ameaçando-o até de excomunhão. Nada! “Está endemoninhado, só pode. Contra as forças do Todo-Poderoso ninguém pode, dona Solange. E como deixar de atender a uma esposa tão amável, caridosa e temente a Deus como a senhora? Só endemoninhado!” E abraçava àquela mulher, que nem tinha ideia de que era aquilo tudo, e cuja face pousava agora menos inocentemente na sacra batina quase tão cerrada quanto a rede do Zé.

No domingo, uma romaria se quedava em torno da encolhida rede de Zé Panapanã. Dezenas de fiéis da paróquia, empunhando missais, velas de todos os calibres, terços e rosários, cantavam hinos e rezavam pela cura do marido de Solange, que já trazia ares de viúva, mas uma viúva bem fornida, disposta, aparentemente melhor do que antes da crise, sempre ao lado do padre, cuja oratória – confessava – lhe causava um certo frenesi.

Foi ali, naquele instante divinal, que alguém apontou de joelhos para a rede que se abria lentamente. Todos, boquiabertos, se abraçando ou fazendo o sinal da cruz, testemunharam sair da fresta aberta da rede uma borboleta cujas asas batiam incessantes, carregando a criaturinha para onde avermelhava o horizonte e para longe daqueles barulhosos vizinhos.

 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

"Nerds" (na íntegra), de Raymundo Netto para O POVO


Stanley era um daqueles garotos que vulgar e pejorativamente eram carimbados de “nerd” na escola. Com isso, sempre fora excluído das rodas mais populares, visto com a mesma estranheza que aparentemente exalava. Silencioso, tímido, embora pouco discreto – usava sempre camisas pretas com estampas coloridas, bottons e pins em todo canto –, ainda conseguia reunir outros ao seu redor quando, na hora do recreio, aparecia com gibis de super-heróis, distopias ficcionais, aventuras espaciais e interplanetárias repletas de androides que, com o tempo evoluiriam para publicações undergrounds, sci-fi, cavaleiros steampunks, mangás, figurinhas e jogos de RPG.

Na sua casa, sem irmãos e saindo da adolescência, trancando a porta do quarto, era irreconhecível: vivia na sua mente fervilhante de imaginação as mais eletrizantes aventuras de seus ídolos, fosse pulando nas paredes ao som do lança-teias de boca, treinando sua espada Jedi coberto em lençol ou praticando um “gomu gomu no qualquer coisa” contra maquiavélicos travesseiros e almofadas. De resto, quando não estudava, era vidrado em TV, nas séries favoritas, numa crença de “vida longa e próspera”, cercado por quadrinhos, álbuns de figurinhas, máscaras, batarangues, modelos de naves espaciais – como a Millennium Falcon –, entre outros brinquedos, o espaço e a fronteira final...

Entretanto, os hormônios da juventude explodiam como supernovas por dentro e ele passou a sentir falta da “mocinha” naquelas brincadeiras. Onde estaria a sua Mary Jane, Tempestade, Lori Lemaris, Batgirl, a srta. Naaamiii...?

Sabia que ali estava o seu ponto fraco, a sua icônica fragilidade heroica: diante das garotas, entrava em um desconcertante e irrecuperável estado de letargia e tartamudez.

Havia uma, apenas uma garota a não lhe causar tais efeitos. Era a vizinha do oitavo andar de seu prédio. Fã de mangás e animes, vez ou outra ela o encontrava no hall do condomínio e aproveitava para consultá-lo sobre as novidades das revistarias ou trocar ideias sobre os últimos episódios daquelas séries do Miyazaki. Os olhinhos dela brilhavam por cima de seu sorriso branco e tímido, como a bandeira nipônica, encantados com o falatório colorido e tão seguro daquele rapazola.

Um dia, inesperadamente, Shizuko – era esse o seu nome – o convidou para conhecer a sua coleção de mangás em seu apartamento: “Não se preocupasse, estava sozinha!”

Stanley a acompanhou no elevador, mas, de repente, sentia gelar as suas pernas. Olhando bem – nunca reparara direito –, passou a perceber em Shizuko uma beleza singular. Esguia, muito branca, pescoço longo e cabelos cor de rosa. “Como a Jessie... Tão pokemônica!” Sim, estava quase apaixonado, uma dimensão inexplorada até então.

Todavia, imaginou: aquilo tinha tudo para dar errado. Que mulher se interessaria por um cara vestindo camiseta do Homem-Aranha, que ainda brinca com bonecos e é completamente obcecado por quadrinhos? Tirando a sua mãe, ninguém!

De fato, Shizuko apresentou-lhe a sua coleção, mas não se deteve ali. Atraída pelo súbito acanhamento e seu excesso de inocência, se jogou num épico e descompromissado beijo de dorama, conduzindo-o a um primeiro descuido de amor... ou de sexo, vá lá.

Ao final da tarde, ela, sentada na cama, abotoava a blusinha: “Você foi incrível, Stan!”

Ele, definitivamente inebriado por novas sensações, era outro, sentia-se empoderado, seguro e alucinado, como se conquistara o Everest. Não parava de falar. Não parava.

De repente, pôs a camiseta e, para surpresa dela, saltou pela janela de seu quarto. Porém, ao invés de lançar teias e se desembestar pelos arranha-céus comemorando o grande feito, estatelou-se fatalmente na quadra próxima à piscina.

Afinal, nós sabemos: em quadrinhos, nem sempre os heróis têm finais felizes...






 

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

"Saudades, Infinitas Saudades!", de Pedro Salgueiro para O POVO


Desligado que sou, ando frequentemente no mundo da lua (mesmo debaixo deste calor causticante da nossa loirinha desmazelada pelo sol) quando tomo conhecimento de fatos e pessoas que faz tempo são muito conhecidos dos outros, e tomo da surpresa um susto, lendo a página na internet do mestre Ronaldo Salgado, descubro que existe um Dia da Saudade, paro o dedo nervoso de passeador de internet e quedo pasmo a ler a pequena pérola:

“AH, SAUDADE! QUE MODOS DE EXISTIR?

Tenho alguns amigos que costumam me cutucar com vara curta como se eu fosse onça pintada. Falam em alto e bom tom: "Cara, tu sempre quer um motivo pra beber!" Essa não é uma verdade nem absoluta nem relativa. É simplesmente uma verdade, entre tantas espalhadas por aí. Mas hoje, quando se comemora o Dia da Saudade, alguém aí tem o destempero de me criticar porque vou brindar a saudade? Du-vi-d-o-dó! Saudade é copo cheio de memória. E com memória não se brinca! Tenho até desconfiança de que uma e outra são retroalimentadoras entre si. Ora, a gente sente saudade do que viveu... Isso não é esteio de memória? E a gente guarda na mente e no peito esquerdo lembranças, reminiscências e recordações do que vivemos... Isso não é leitmotiv de saudade? Embaralha as expressões verbais para ver o que acontece! Saudade de pessoas, de datas e épocas importantes, de beijos e abraços fervorosos debaixo de sol quente ou de chuva indômita. Saudade de canções cantadas ou não em serenatas ao luar. Saudade de livros, filmes, discursos, gols, gestos, atitudes, carícias e carinhos, segredos e aventuras... Ora, pois tá! Até de bancos de praça onde se trocou o primeiro e interminável beijo sente-se saudade – pergunte a Ronnie Von, que cantou aquela música que nunca me sai da memória. Vixe, olha a memória aí de novo, juntinha com a saudade. É, gente, saudade é de vida e de morte. País, mães, avôs, avós, irmãos, irmãs, filhos e filhas, netos e netas, amigos, amigas, heróis de carne e osso e representacionais, ídolos... Eu tenho saudade até do Zé Pilintra, que eu não conheci, mas não sai do meu 1/4 de Bar – Terraço Poeta Sales! Pois taí um brinde à Saudade!”

Pronto, passei o dia inteiro a cometer saudades, não uma só, que sou repleto delas, vivo em faltas de dinheiros, vontades, coragens, mas empanturrado de recordações e saudades – o pensamento voou ao passado (tem razão o bardo da comunidade das Quadras da Aldeota: passado e saudade andam de mãos dadas sempre).

Lembrei-me devagarinho a infância, corri para os campinhos de futebol improvisados no meu Alto das Pedrinhas, lá pelo Tamboril de antigamente, mas não só os três ou quatro recantos que marcávamos entre grotas e areias e pedras, mas os dos bairros vizinhos dos Pereiros e Praça 11, onde disputávamos nossas primeiras pelejas mais organizadas; de lá a memória (e a saudade!) vagaram pelo campinho triangular da Rua de Baixo (que por ser caminho do cemitério, certa vez paramos o joguinho para que desfilasse rua abaixo um enterro: porém antes que o cortejo triste dobrasse à esquerda na Ponte da Mijada já recomeçamos a partida no mesmo local e lance onde havia parado), dali para o estranho campo do Morro do Tetéu, e recordei que lá de uma trave não se avistava a outra, seguia a lembrança para o Campo do Juremal, quando me dei conta já umas lágrimas me embaciavam os olhos.

Então lembrei que não deveríamos ter apenas um dia da saudade, mas um ano talvez, um mês, quiçá uma semana... Talvez bastasse alguns minutos por dia! E já que as saudades são infinitas, deduzo que – na verdade – jamais poderíamos delimitar um tempo para sentir saudades.

 



 

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

"Linguagem", de Raymundo Netto para O POVO


“Mulher intelectual não pega homem!” Ouvira isso inúmeras vezes, mas, naquela noite de coração desértico, quente e vazio, seria diferente.

Ao espelho, vestia, quase em lágrimas, a roupa mais fatal. O próprio corpo queria saltar do vestido, ela não se reconhecia, envergonhava-se, mas nada importava mais!

Chegou a um pub. Pouca luz, muita fumaça, ar alcoólico e frenético barulho. Por ela, se jogaria na barra de pole dance, mas dirigiu-se ao bar, pediu uma bebida, a mais forte, que guardou entre os dedos até quando chamaram ao pequeno palco o poeta, um rapaz magrinho de cabelo avermelhado. Ele pegou o microfone, olhou para o público desatento e declamou aos gritos o seu poema.

Em meio à barulheira, o tilintar de copos e as risadas expressivas, ele continuava uma falação ardente, suspirosa e inútil, enquanto ela, mesmo quando alguém já apalpava a sua bunda, fitava-o. Não se sabe se por um instinto atávico e autossabotador, certo é que sentira tanto amor ali, capaz de encher até buraco sem fundo.

Ao final, aproximou-se dele, em uma indisfarçável timidez. Imersos no alvoroço, se olharam em risinhos desnecessários, quando ela deixou escapar: “Estou sem calcinha.”

Ele riu desconcertado: “Que comentariozinho mais exótico... ”

Extasiada, respondeu: “A um cantinho mais erótico? Agora? Sim, podemos ir, sim.”

Ele insistiu ao seu ouvido: “Não, eu disse exótico!” Ela, pasma consigo mesma, engoliu de vez o trago e emendou: “Sim, eu também. Foi o que eu disse... exótico?”

Marcaram então de se encontrar no sábado próximo, quando ele a levou ao zoológico para ver o recinto dos pandas. Era alucinado por pandas. “Que fofo!”, ela pensou.

Após uma hora de jujubas, aulas de cultura chinesa, veganismo e pandas, ela encorajou-se e tascou: “Sim, mas... você não gostaria de ir agora a um motel?”

Ao convite inesperado, ele murmurou: “Eu preciso que saiba de uma coisa...” Ela adiantou-se: “Você é gay? Ai, meu Deus, esse amor por pandas...”, quando ele acudiu: “Não, não sou gay... Eu sou virgem!” Aliviada, ou quase, estranhando ainda a resistência, pensou que seria uma experiência singular. Ele insistiu: “Mas muito virgem. Virgem demais. Nunca beijei uma mulher. Apenas espelhos, dorso da mão...” Ela nem quis saber e o trouxe à boca, quando, naquele momento tão inaugural, em vez do aguardado beijo recebeu dele uma tremenda lambida.

Ela sentiu um nojo colossal: “Que foi isso?” Ele queria mais. Nova tentativa. A lambeu outra vez, desta vez o rosto inteiro. O poeta tinha uma língua abundante, descontrolada. Tomara gosto e não pararia mais, se ela não se lembrasse de um falso e emergente compromisso. Ele compreendeu. Segurando a baba e com os olhos brilhantes, insistia: “Quando nos veremos outra vez? Quando?”

Não sabia o motivo, se por ser de Humanas ou pelo desespero de quem se afoga, mas o recebeu em sua casa.

Desta vez, sem cafés, enxerimento na estante de livros, entre outras preliminares, foi ele que se atirou sobre ela, afoito e covardemente, num apetite absurdo, rasgando-lhe as roupas e lambendo-a inteira, dos pés à cabeça e vice-versa. E a lambeu tanto, mas tanto, por horas sem fim, que pela manhã não havia mais nenhum pedacinho desejoso dela para contar história.





 


 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

"Vidente", na íntegra, de Raymundo Netto para O POVO


Há 30 anos aguardava o grande amor de sua vida.

Ainda jovem, diante da angustiante sensação de que não havia neste mundo um rapaz que a agradasse, Grace sucumbiu à tentação de consultar uma vidente: “Encontrarei alguém que me sirva, que eu possa amá-lo?” A vidente, uma idosa de olhos quase brancos, nariz adunco, queixo proeminente e de poucos dentes, escondia o cume da cabeça e boa parte de seu rosto e pescoço por um xale escurecido, dando-lhe aspecto de ave agourenta. Seus dedos magros e nodosos espalhavam de forma circular as cartas na mesa, até que sua mão terrivelmente fria apertou o pulso da moça, enquanto apontava para uma das cartas: “Ali está ele... Que homem lindo... Ele está vindo, vindo...” 

Grace, antes arrependida de estar ali naquele ambiente inóspito, esqueceu o pavor e só perguntava: “Onde? Vindo de onde?” A velha se recolhia lenta e estranhamente no espaldar da cadeira, envolvendo-se em sombras: “De navio. Ele não é daqui. Estrangeiro. Está vindo. De navio. Vindo...” Emudeceu, não respondendo mais às perguntas da moça eufórica: “Logo vi que só podia ser de fora... Aqui não tem um que preste!” E saiu alegre e saltitante à rua, deixando para trás a velha a coçar o queixo com o indicador trêmulo: “Está... vindo...”

No entanto, não vinha, nem veio. Nada de Grace encontrar seu amado prometido.

Anos depois, não haveria um dia sequer no qual ela não desse uma volta no cais com o pretexto de ver o mar, tomar um café, curtir o vaivém de pessoas ou assistir ao pôr do sol, na esperança de dar de cara com o homem da carta. Mas ninguém a interessava. Ou melhor, ninguém sequer se parecia com o homem que ela desenhou em sua mente. Voltaria à vidente, mas do velho cortiço não restava mais nada. Desesperou-se!

Com o tempo, obcecada pelo anunciado amor, a sua presença no casamento das amigas chegava a azedar. Era inconveniente, via defeito em tudo, agourava o amor alheio, embriagava-se, de forma que foi isolada em seu sonho de amor romântico.

Passadas décadas desde a profecia da vidente, Grace entrou em um velho bar do cais do porto. Cruzara com ele diversas vezes, mas nunca se interessara por ele devido ao ar promíscuo exalado por seus frequentadores: pescadores, marinheiros e prostitutas. Naquele dia, porém, isso não mais a incomodava. Entrou, sob uma cortina de olhares curiosos e de cantadas maliciosas, e sentou-se no canto do balcão amadeirado.

O balconista, um senhor de uns 60 anos, aproximou-se e advertiu-a: “Acho que a senhora não é bem o público daqui...” Ela corrigiu: “Senhorita. E me dê uma cerveja.” 

E estava ali, sem mais esperanças, entretida na fumaça de seu cigarro, quando correndo o olhar pela parede viu uma galeria de fotos e, entre elas, reconheceu a de seu amado. Gelou! Gritou pelo balconista e perguntou quem era aquele homem. Ele estranhou: “Esse quadro foi uma homenagem à equipe de um navio que naufragou na costa há uns 30 anos. Esse aí é o ‘Charles Francês’. Chamavam ele assim. Era oficial. Afogou-se.” Grace, atônita, caiu ali mesmo em lágrimas lancinantes.

Durante dias, não saiu de casa. Quando não estava adormecida, envolvida em cobertores, chorava. Sentia não haver mais sentido em sua vida. Sua busca findara tragicamente. Contudo, uma madrugada, como se delirante, correu para aquele bar. Estava fechado. Com uma banqueta, quebrou o vidro da janela e adentrou. Caminhou vagarosamente pelo corredor escuro até postar-se estática diante da foto de Charles. Acendeu o isqueiro e a admirava com ternura até quando, de súbito, a beijou.

Uma corrente de vento entrou pela janela derrubando garrafas, copos e alguns quadros da parede. Com ela, um som sinistro, quase gemido, quase gargalhar, tomava todo o ambiente, também envolvido por uma névoa cinzenta. Nesse instante, Grace abriu os olhos e, para seu espanto, diante dela estava o capitão Charles.

Ela, sem acreditar, com os olhos marejados, sorriu emocionada: “Eu esperei você por toda a minha vida... Ah, eu sempre te amei.”

O homem, orgulhoso de si, pegou uma garrafa de uísque e a levou para o salão, onde estirou-se numa espreguiçadeira. Colocou as pernas em um banco, apresentando as botas envolvidas em algas e cheirando a peixe. Foi quando lhe dirigiu as primeiras palavras: “Chéri, tirre as minhas bottes.” Grace não acreditou. “Como é que é?” Ele insistiu veemente: “Tirre-as já, mulher! Que diable!”

Grace, boquiaberta, deu meia-volta, saltou pela janela e, encontrando o primeiro estranho à sua frente, deu-lhe com muito gosto aquele beijo tão aguardado por mais de 30 anos...




 


 

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

"Eurrico ou Eugênio?", de Raymundo Netto para O POVO


Quem o visse chegar ali, caminhando a passos frouxos e profundos, teria a segura impressão de que estava a entregar o pescoço à forca. Mas não ele. Não o Eugênio.

Sabia-se lá, mas cruzava o extenso balcão do cartório numa tristura medonha, maior do que a de uma noite sem novela ou sem amor, o que viesse primeiro.

“O que o senhor deseja?”, arriscou uma balconista.

Vinha registrar um filho, mais um “último”, pois o mais velho dos três também o seria, assim como o segundo ou como este, e, provavelmente, o próximo.

Recebeu parabéns de um ou de outro circundante: “Um filho? Que graça: um filho!” O mais idoso tapou-lhe nas costas a benção recebida do Grande Pai Celestial. Porém ele nem nem. Tinha pressa. Registrar a criança e se mandar logo dali.

“Qual será o nome da criança, senhor?”

“Eurrico!”, foi o que respondeu. Assim, na bucha.

“Eurrico? O senhor tem certeza, senhor?”

Absoluta. Ele, o pai, era Eugênio, não queria isso para a criança, que o bichinho não tinha culpa. Culpa mesmo – enfatizava com o indicador erguido solene no ar – era da mãe. Ali, todos sabiam... sempre era da mãe!

A atendente, sem entender bulhufas daquele discurso, tentou contornar:

“Bem, o senhor não prefere, ao invés de... Eurrico, Eunício?”

Eunício? Deus o livrasse: “Que nome terrível! De jeito algum.”

Lembrava: “Eu... Gênio!” Trazia no peito franzino o orgulho de criança. Gostava de ler desde cedo. Inteligente e curioso. Um gênio de verdade, como sua mãe anunciava, enquanto o sol se punha, por cima do muro para a vizinhança. Seus pais nunca tiveram problema com ele. Nunca pediu nada demais. Tudo suficiente, até na respiração. Costume que carregou por toda a vida, numa humildade e modéstia – complementadas com a realidade do salário – de fazer vergonha.

“Quem se abaixa muito, mostra o fundo das calças”, dizia a sua avó, impressionada como ele não havia sido engolido pelo mundo, um monstro sedento de gente direita para arruinar. Mas Eugênio, porque ninguém o notara, vingou, cresceu, enamorou-se pela primeira mulher a olhar para sua testa rala e casou-se. Ademais, aquela mulher, provavelmente uma resignada, era bonita. Ninguém, nem a sua própria mãe, entendia como aquela moça jeitosinha dera cabimento ao sem graça do Eugênio que, claro, na sua inutilidade existencial e contagiosa, acabou por lhe enfear a vida e a figura.

Restava-lhe um emprego chinfrim, um ganho de nada, trabalho excessivo e o não reconhecimento, o que o deixava deveras arrasado nos poucos momentos de folga que tinha, nos quais passava horas e horas parado, feito estátua de ilustre desconhecido, assistindo à vida que passava em torno de si. Assim, pensava: de que adianta ser gênio? queria mesmo era ser rico. Eu... Rico! Encucado com isso, botou pra fora a entranha quando aquela estranha lhe perguntou: “Afinal, meu senhor, qual é o nome da criança?”

O nome? ... deixasse ver... Eurico. Seria esse: Eurico! Com dois “r” para não ter dúvida e ficar mais estiloso: “Eurrico!”

E Eurrico de quê?”, insistiu a moça se abanando.

“De merda, que é o sobrenome do pai, é que não vai ser...”