quarta-feira, 31 de maio de 2023

"Ari: no tempo da lamparina", de Raymundo Netto


Na Bienal de São Paulo para lançamento de "Padre Cícero: o filme"

  

Arievaldo Vianna não era apenas um homem, mas um sonho.

Para alguns, um quixote, um quaresma, uma sherazade de calças, um fabulador de voz grave e declamante, com seu colete de couro a berrar suas histórias em palcos naturais das calçadas, das praças, dos postes, numa delirante genialidade quase beirando à dulcíssima loucura, como alguns outros com quem dividia a sua mala de romances e baú de gaiatices.

“No ano sessenta e sete/Do outro século passado/Nasci naquele recanto/E fui por Deus inspirado/A beber daquela fonte/Perto do reino encantado.”

E bebia e se banhava, de quase se afogar, dessa fonte de trovadores, tocadores, violeiros, sanfoneiros, bumbas-meus-bois e, claro, à lamparina, na rede ou em alpendres, ou nas manhãs azuis, sobre o tapete da bagaceira de engenho, em meio à capoeira, à voz alta, dos folhetins de cordéis, “sua leitura de primeira hora”.

O bravo menino sertanejo do sítio Ouro Preto, alheio às necessidades que a vida lhe trouxe para fazer-se forte, crescia assim, imerso entre a roça e o mundo fantástico: beijocador de princesas, amigo de reis, escalando muralhas de castelos, desafiando dragões, assistindo a gargalhar muito às pelejas de demônios com cangaceiros.

Quem diria que essa tripinha de gente “desasnada” pela leitura da vó Alzira se criaria poeta, ilustrador, fanzineiro, radialista, publicitário, xilogravurista, colecionista, historiador, biógrafo, capista, editor, pitaqueiro, amigo de todos... e alguém a quem as letras brasileiras deveriam tanto?

Quando nos encontrávamos, era uma grande alegria, e se eu não pedisse arrego, não me deixava ir. Num galope à beira-mar atropelava uma história com uma pesquisa, uma leitura com uma piada, uma reclamação com uma proposta editorial que iria nos enriquecer a todos... Mesmo quando depois confirmava: “Minha mulher chegou à triste conclusão de que eu não sei vender a minha arte, não nasci para ganhar dinheiro. As pessoas me procuram e eu sempre cobro muito abaixo do que deveria”.

Meses mais novo do que eu, tinha no falar – e eu o admirava por isso – uma extrema autoridade, uma altivez, mas uma autoridade legítima, uma altivez não pedante, de quem sabe e que transmite esse saber, não o ocultando sovinamente como se fosse um privilégio, uma dádiva divinal. Estive com ele em diversas ocasiões distintas e NUNCA o vi se gabar de nenhum dos prêmios que recebeu, das inúmeras publicações e dos livros que vendia em editoras nacionais, de entrevistas de toda parte do país das quais era convidado. Sabia o amigo Arievaldo, por ser ele um dos grandes, que os prêmios são apenas reflexos e consequências daquilo que fazemos e do que realmente nos importa. Para os fracos e os pequenos, tais desnecessários reconhecimentos podem se tornar armadilhas de espírito. Arievaldo não precisava deles. Era um artista!

Militava na educação, na leitura, nas artes populares e sertanejas. No palco, falava desenvolto, cheio até a tampa de histórias para contar. Criativo, inteligente, impulsivo e impossível.

Agora, dia 30 de maio de 2020, os quase anjos João Grilo, Pedro Malasartes e o Cancão de Fogo, sob a bênção de São Francisco, desceram dos céus em busca do menino grande Ari e o levaram para se assentar ao lado de Patativa, Santaninha, Leandro Gomes de Barros, Alberto Porfírio, Leota e Ribamar Lopes numa conversa que se já era sem fim, agora é que não se acaba no meio desse sereno de estrelas do cordel, a literatura mais genuína e brasileira de nosso Brasil.

Nossa gratidão, irmão Arievaldo, príncipe do cordel cearense.






 

domingo, 21 de maio de 2023

"Dor Profunda", de Raymundo Netto para O POVO


Ela chega frouxa e muda, se atrapalhando com as chaves da porta nervosa.

O marido acompanha àquele ramerrão com o olhar também silencioso: ela lança as chaves no console, a bolsa no sofá, os sapatos atrás da porta e avisa que vai se deitar um pouco, não estava se sentindo bem.

Todo dia o mesmo mal-estar, o mesmo mau-humor. Quisera poder dizer à mulher que deixasse aquele emprego indigesto. Mas como abrir mão daquele salário indispensável para cumprir os compromissos da casa?

Ele esquenta o jantar. Senta no canto da cama, acaricia seu rosto, chama a mulher a levantar-se no arrasto. Sentam-se à mesa. Como sempre, nenhuma palavra sobre o trabalho, colegas, chefes, rotina. Ele a provoca, quer saber o que a incomoda, mas ela é resoluta: "Não estrague meu jantar, pelo amor de Deus!".

Depois, apenas o consolo da novela e, ao deitar, mais uma noite fria de sofrer por enxaquecas à véspera.

Cansado de meses de desestímulo, apatia e desânimo, ele toma uma decisão: vai visitá-la no emprego. Precisa entender o porquê daquilo. Pensa em convidá-la para um almoço, uma caminhada em shopping ou apenas para sentar-se num banco de praça e tomar um sorvete, qualquer coisa que mude aquela rotina e lhe dê algum prazer. Entretanto, ao chegar ao endereço indicado, não encontra a referida firma. Estranha. Busca na internet e também não a encontra. Decide ligar para a esposa. Contudo, ela ao atender, reage: "Não venha aqui. Eles não gostam que empregados recebam visitas no trabalho, homem". Desliga na cara dele. Aborrecido, retorna para casa, com a pulga atrás da orelha, iria conversar com ela mais tarde. Porém, a mulher chega com a mesma indisposição e se nega a explicar qualquer coisa: "Depois de um dia desses, ninguém merece!".

Na manhã seguinte, ele se oferece para deixá-la no trabalho. Quer que ela seja feliz. Vê-la chegar arrasada todos os dias estava acabando com ele. Ela se recusa. Vai não. Deixasse de besteira: "Sozinha, eu não me atraso. Você é muito lento!".

Curiosamente, naquela noite, ela chega animada, receberia a tão esperada promoção. Finalmente, havia o reconhecimento. Cantarola, improvisa um novo jantar. Conversa sobre sonhos esquecidos e se deita com ele, com o amor de antes.

Mesmo assim, quando ela estava saindo para o trabalho, ele anuncia: "Quero ir com você. Não encontrei o endereço de sua firma. Preciso saber". Ela se indigna, pergunta o que ele está pensando. Acena com a cabeça e bate a porta em sua cara: "Machista, possessivo, ciumento!".

O marido, sem compreender tamanha ira e mistério, dirige-se novamente em busca do endereço que ela lhe confirmou e nada! Liga para o telefone da empresa: engano! Liga para ela: ninguém atende! Se desespera, enraivece, chora e ela nunca mais voltou para casa.




 

"A Mentira do Amor", de Raymundo Netto


“E mais... vou dizer a você algo que eu nunca disse antes: Eu te amo, Maria Regina!”

Roberlândio era um homem que se orgulhava, de bater forte no peito, por não mentir nunca, em hipótese alguma. Nisto, era um obsessivo, um quase santo. Como ela conhecia bem essa sua ideia fixa, naquele instante da discussão, sentiu um alívio extraordinário, baixou a guarda, e ele se aproximou, em passos lentos, meneando a cabeça e com um sorrisinho patético que a ela causava, sabe lá Deus o porquê, um certo elã. Dali até mais tarde ninguém mais responderia por si naquela casa.

No dia seguinte, bem-amada, Maria Regina chegou ao trabalho como se pisando em nuvens. Estava no corredor do cafezinho com as colegas e não se conteve: “Vocês não vão acreditar... Roberlândio me disse que nunca amou outra mulher na vida.” As amigas se entreolharam, descrentes. Umas riram muito; outras apenas ponderaram: “Mulher, deixa de ser besta. É claro que amou.” Maria Regina, na paz de céu de brigadeiro, nem ligou: “Amou nada. Ele me disse que nunca havia dito ‘eu te amo’ para alguém antes de mim... E ele não mente!” As meninas saíram de fininho – alguém, talvez, até com certa inveja –, deixando Maria Regina a só, encostada num umbral de porta, suspendendo na ponta dos dedos uma xícara no ar a esfriar, ao contrário dos pensamentos românticos calientes que a tomavam: “eu, o seu primeiro amor...”

Naquela noite, ao chegar em casa, o marido encontrou a mesa bem posta, a mulher sorridente e carinhosa em sua nova lingerie e banhada a Avon Cristal “Toque de Amor”. À mesa, seu prato favorito: “Minha flor, não precisava...” Ela, delicadamente, estendeu o indicador nos lábios dele, sorriu, cerrou a luz do olhar e o beijou cirurgicamente.

Aquele lar, durante uns dias, era de uma felicidade intolerável, até a Remédios, cunhada de Maria Regina, aparecer para tentar vender a ela uns pontos de rifa. Conversa vai, conversa vem, Maria Regina soltou, numa excitação adolescente: “Menina, fiquei tão feliz... Seu irmão me disse que nunca amou outra mulher antes de mim.” Remédios franziu a testa, olhou para ela por cima do aro dos óculos, num pasmo igual ao que temos quando se cogita que a Terra é plana: “Roberlândio? O meu irmão? Ele lhe disse isso?” Encostou-se no sofá, segurando o antebraço de Maria Regina, e se pôs a gargalhar a ponto de engasgar. Maria Regina assombrou-se: “Ele me disse, juro!”

Recompondo-se, Remédios foi categórica: “Ele, desde rapazola, era um apaixonado compulsivo. Teve muitas namoradas. Quando acabava, era um sofrimento desgraçado. O coitado chorava, se escondia no quarto, não queria comer, só falava que o coração estava partido, doente, morto. Como é que não amava, criatura?” “Mas ele não mente...”, asseverou a envergonhada Maria Regina, que sentia ali como se as estrelas tombassem por sobre o seu desapontado coração. “Olha, cunhada”, disse Remédios, “se mentiu ou não mentiu, se amou ou não, sinceramente, mulher, isso não tem importância alguma.” Maria Regina, escancarou os olhos, escandalizada: “Para mim, tem sim... e muita!” Despediram-se ao portão e ela entrou em casa fervendo de ódio por sua ingenuidade. Deitou-se de bruços e pôs-se a chorar.

Quando Roberlândio chegou em casa, estranhou: nem mesa, nem mulher, nem cheiro de Avon. Como a casa estava escura, se guiou pelos soluços sofridos de Maria Regina. Sentou-se à beira da cama, mas quando a tocou, recebeu um safanão que o fez tombar no chão: “Que é isso, Maria Regina?” Ela levantou-se e começou a dar-lhe palmadas, chamando-o de muitas coisas, entre elas, de mentiroso. Roberlândio se revoltou: “Mentiroso, eu? Eu não minto, eu não minto.” Então, quanto mais ele dizia que não mentia, mais e mais forte ela batia: “Você me disse que nunca amou outra mulher antes de mim, e é mentira, seu mentiroso!” Desviando-se das mãos pesadas da mulher, Roberlândio explicou: “Meu amor, eu nunca menti para você. O que eu disse foi ‘Eu te amo, Maria Regina’. Ora, é claro que eu nunca disse isso antes... Eu disse ‘Eu te amo, Fulana’, ‘Eu te amo, Sicrana’... mas ‘Eu te amo, Maria Regina’, eu só disse isso para você..., Maria Regina...” E ali, numa solenidade besta e descabida antes do próximo e derradeiro bofetão, ainda ouviu-se: “Eu não minto jamais!”





 

domingo, 14 de maio de 2023

"Zenaide", de Raymundo Netto


Nesta foto, a Zenaide tinha apenas 18 anos. Oito anos depois se casaria e, no ano seguinte, ingressaria em um panteão imaginário historicamente consagrado quase na mesma harmonia ao de fadas, ninfas, deusas ou coisas assim, e que, como Deus, traduzimos apenas em uma única sílaba: mãe! Assim como rezam as mitologias, a renúncia e o sacrifício são as tônicas dessas aventureiras – não são todas a embarcar nesta aventura, claro.

Minha mãe, antes de ser mãe, era uma mulher. Como qualquer uma, tinha seus sonhos, anseios, medos e incertezas. Uma vez que eu não conheci essa moça da fotografia, não posso assegurar o que passava pela sua cabeça. No entanto, pude, sim, anos depois, construir-me como ser à sombra desse mesmo sorriso.

Quando criança, na escola, era comum nas festas das mães nós declamarmos poesia, cantarmos músicas ou ensaiar esquetes no Dia das Mães. Não me lembro de ela participar de alguma. Era dentista. Seus pacientes a esperavam. Ela não poderia estar presente. Lembro-me de uma ocasião em que ela pediu para que papai ali estivesse, pois a minha irmã mais velha, a Alice, iria apresentar a canção “Mãezinha Querida” em sua homenagem.

Ela também não ligava muito para datas, convenções, simbolismos. Dia das Mães, aniversários, Natal, nada disso tinha para ela essa relevância que há muito se propaga, principalmente pela necessidade de fomentar o comércio. Cresci assim também, acreditando na importância de todos os dias, sem distingui-los, sem enaltecê-los, a não ser quando necessários para provocar reflexão e não para lucrar e/ou procurar razões para se embebedar ou comer de graça em festas. Mesmo assim, como uma tradição de família, não havia um aniversário em que não fossemos acordados na rede ou na cama com sua voz carinhosa, cantando: "Hoje é dia de seu aniversário... Parabéns, parabéns..."

Minha mãe foi uma criança e adolescente diferente. Há quem diga ter “espírito velho”, cheia de responsabilidades familiares – tinha 9 irmãos e sendo uma das mais velhas, ajudava a mãe a tomar conta dos mais novos (e é até madrinha de alguns deles) –, além de auxiliar na produção de iguarias para o “Bar O Mendonça”, de seu pai, localizado em frente à Praça da Polícia, no Centro, e ministrar aulas de reforço a crianças para ganhar um extra – muitas vezes o fazia de graça.

Li, uma vez, em escritos poéticos de sua adolescência – tinha uma letra linda –, mensagens ao seu Jesus, apresentando-se, na pureza da alma, de seu desejo de ser útil ao próximo, de servir às pessoas. Talvez por isso tenha escolhido, primeiro, o ofício de professora (1959), e depois a de dentista (1964). Mais tarde, passaria o resto da vida em missão sacerdotal, acumulando uma família imensa a atender, a acolher, a amar.


Formada professora pelo Instituto de Educação do Ceará (1959)


Tive o privilégio, durante nossa convivência, de ouvir de sua boca, em horas perdidas à mesa do café ou do almoço, algumas de suas histórias, ou mesmo de assisti-las presencialmente durante anos, muitas vezes alternadas por cantorias de músicas do passado.

Eu sempre conversei muito com ela, o que mudou nos seus últimos anos. Às vezes, ligava para mim “porque seu pai quer saber de você”. E quando comentavam para ela sobre eu ser muito ausente, dizia “Ele é artista”. Para ela, eu “ser artista” justificava o meu comportamento, minhas anormalidades (e fragilidades) e discursos extravagantes. Mas uma coisa é certa: ela podia até não aceitar ou entender, mas se divertia muito, e eu adorava vê-la gargalhar das minhas baboseiras diante da mesa de família repleta de filhos barulhentos.

Até hoje eu guardo uma caixa de lata com centenas de tampas de adoçante. Comecei a juntá-las há anos e não sei bem o porquê. Já me perguntaram e eu geralmente digo que esta é a minha única chance de ingressar no Guinness Book, porque acho muito difícil que alguém quebre um recorde como esse tão inútil. Entretanto, o curioso aqui é relatar não ser eu o único autor desta façanha. Minha cúmplice é minha mãe. Mesmo durante os seus últimos anos, quando nos distanciamos mais, ela me ligava para eu pegar ou mandava por algum irmão um saquinho com tampinhas de adoçante que ela não deixava jogar no lixo e as guardava: “São para o Netto”.

Ela nunca me perguntou o porquê de eu guardar essas tampinhas, provavelmente nem via qualquer importância naquilo, mas abraçava a minha causa, assim como fez em toda a sua vida, estando sempre ao meu lado, sem esperar nada em troca, sem me cobrar atenção, se esforçando naquilo que ela dizia ser muito difícil: ser mãe!



Uma vez chegou, preocupada, até a reunir os seis filhos, apenas porque alguém havia dito a ela que nunca a vira beijando os filhos e, portanto, por isso, não seria uma boa mãe. Realmente, mamãe não era de beijar. Terminada a reunião solene, finalizamos: Ela era a melhor mãe do mundo!

Quando do lançamento de meu primeiro livro, no tempo livre, ligava para toda a família, imensa, convidando-a. Dizia, com a honestidade e inocência de sempre, “Eu não li o livro, mas alguém leu e me disse que até chorou. Ora, se fez chorar é por que deve ser bom, né?”

Hoje, durante um café na Padaria Romana, eu vi uma velhinha sorridente, cercada de familiares, filhos e netos, auxiliando na sua marcha difícil, comemorando o Dia das Mães. Aquilo me fez pensar e me doer: “não cheguei a ver a minha mãe assim, velhinha. Foi-se cedo demais. Cedo demais.”

Sentei-me aqui e escrevi esse relato. Apenas um pouco do que era minha mãe, entre tantas coisas que já escrevi e que irei escrever para tentar não esquecê-la (infelizmente é possível) e mantê-la por perto, pois, como naquela canção – ela cantava tão bem: “Eu cresci, o caminho perdi, volto a ti e me sinto criança. Se eu pudesse eu queria, outra vez, mamãe, começar tudo, tudo de novo.”


E para ela, a música que tanto gostava de cantar neste dia:


https://www.youtube.com/watch?v=suUvAm56J4Y







 

sábado, 13 de maio de 2023

Portfólio Editorial: "Fortaleza Descalça", de Sânzio de Azevedo

 

PORTFÓLIO EDITORIAL: Fortaleza Descalça, reminiscências de Otacílio de Azevedo, série Memória, da Coleção Nossa Cultura da Secult (2010), com coordenação editorial, capa, projeto gráfico e Nota Editorial à 3ª Edição de Raymundo Netto, apresentação de Angela Gutierrez, textos de Otacílio Colares e José Valdivino, diagramação de Jozias Rodrigues, revisão de Sânzio de Azevedo, Raymundo Netto e Eveline Cunha, com fotos do Arquivo Nirez (352 pp).

Para mim, uma imensa alegria e orgulho ter publicado essa 3ª edição de Fortaleza Descalça, obra de referência que conheci às vésperas de lançar o meu primeiro romance, “Um Conto no Passado: cadeiras na calçada” (2005), e que me deu a segurança para lançá-lo. Trabalhar na construção dessa obra, contando com o apoio dos filhos do autor, Sânzio de Azevedo e Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez), também não é para qualquer um.

Melhor ainda ter deixado de legado editorial (me parece ter sido o último que editei pela Secult) essa belíssima edição, corrigindo alguns erros e acrescendo imagens de difícil acesso aos leitores das demais edições, pesquisadores e amantes de um Fortaleza que, dia após dia, vai desaparecendo debaixo de nossas instagramáveis fuças.



sexta-feira, 12 de maio de 2023

"O Amor, de Novo", de Pedro Salgueiro para O POVO


Tem épocas em que o excesso é o mesmo que falta, de tanto que temos nos invade um enorme vazio de ausência e morte. Nada nos faz felizes, esse bicho arredio que brinca de esconde-esconde conosco o tempo inteiro. Então saí em busca do novo, mesmo ainda tendo muitos à disposição, intactos, ainda com o cheiro de madeira da estante (cada um tem sua droga, umas fortes; outras, simples placebo).

Um volume marrom escuro, bastante amarrotado, com riscos e brancos de uso; desgastes comuns de quem, por amor ou ódio, o pegou de jeito, lendo e amassando junto ao peito ou carregando em sovaco transporte afora... A cor surrada, escurecida ficando clara, se mostrou ser apenas um cartonado de proteção, sóbria... Era, na verdade fora, uma edição comemorativa de 25 Anos da Editora, por baixo das abas de cartolina grossa a pérola brilhante do novo: a capa de tecido parecia ter sido vislumbrada pela primeira vez desde que saiu da casa editorial.

Eu mesmo andava bastante alquebrado de tantas dores, as velhas e agravadas chagas da alma, que carregamos desde sempre fingindo normalidade... Também as dores físicas da

idade e mal cuidados (desenvolvi o triste lamento de culpar sempre este tempo de pandemia: se gordo porque fiquei muito em casa, se triste devido ao medo e angústia minha e dos outros ao derredor; as velhas, úteis e belas desculpas verdadeiras de sempre).

Mas nada como o ‘Amor, de novo’, não é mesmo!? Virei cuidadoso a capa sóbria, austera mas fina e gasta, e a foto em preto-e-branco da velha escritora, após um texto que seria da ‘orelha’ explicando sem dizer tudo, texto de homenagem da autora a outros que percorreram aquelas mesmas surradas veredas de sentimentos já quase esquecidos, também os agradecimentos (antes tão comuns, hoje tão raros nos livros e na vida), um

belo poema de W. B. Yeats: “Memórias: Uma tinha beleza/ E duas ou três tinham charme/ Mas charme e beleza eram nada/ Porque a erva da montanha/ Não mantém a sua forma/ Onde a lebre esteve deitada”.

A frase de segunda epígrafe da própria autora nos alerta: “Estou amando outra vez, coisa que nunca quis...” Pronto, eu também estava prontíssimo para amar, senão amor de verdade, carnal, mas daqueles dos quais somos povoados durante a vida inteirinha, morno, esperançoso e triste... Frágil, volúvel, desses que não resistem ao próximo flerte.

Mas para não correr riscos parti para a negociação com o amigo vendedor, saí de fininho rumo aos também maltratados bancos da Praça da Gentilândia.

“Fácil pensar que aquilo era um quarto de despejo, silencioso e abafado numa cálida penumbra, alguém veio à tona para afastar as cortinas e abrir as janelas. Era uma mulher, que em passos rápidos saiu por uma porta, que deixou aberta. Assim revelado, o quarto estava sem dúvida cheio demais.”

Fechei de imediato e volume e saí para comemorar, meus cômodos repletos de tralhas acumuladas, que me impediam de vagar com leveza pela vida... Após duas voltas na praça, evitando olhar para os frequentadores dos bares, que sempre há um conhecido convidando para uma cervejinha (mas ainda era terça-feira), resolvi rumar impunemente para casa, de onde prometi somente sair após me redescobrir: novamente amando.






 

domingo, 7 de maio de 2023

"Pacatuba em Ruínas", de Raymundo Netto para O POVO


Há quase dois meses escrevi um texto no qual anunciava que o município de Pacatuba estaria de LUTO pela inadmissível e inconformável situação de RUÍNAS que então nos apresentava.

Cantada em verso e em prosa por muitos dos grandes escritores cearenses, a “cidade queridinha”, antes reconhecida pela existência e permanência de seus casarões, sobrados e casarios que resistiram durante anos, vem perdendo pouco a pouco o seu maior tesouro e maior atrativo: o seu patrimônio histórico e arquitetônico.

Em apenas três anos, dois casarões foram demolidos. Um deles, o maior de todos, o de Mariana Cabral, que conferia um charme todo especial à praça onde, diante dele, se encena a Paixão de Cristo, completando assim outra via-crúcis.


Demolido

Demolido

Agora, após um extenso período de abandono e sem nenhuma ação preventiva de preservação, o sobrado, um dos dois que pertenceu ao capitão Henrique Gonçalves da Justa e que compõe há séculos um majestoso conjunto arquitetônico no centro de Pacatuba e que deveria ser para o povo pacatubano o símbolo da própria origem e orgulho da cidade, está prestes a ser demolido. E isso ainda não se deu devido à intervenção do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará e do Núcleo de Apoio Técnico do Ministério Público do Ceará que requer, agora, a declaração de Patrimônio Histórico para o sobrado. Contudo, passado esse tempo desde o acontecido, durante o qual a administração da cidade chegou a passar pelas grades da lei por outros motivos, nada mudou e a tônica da demolição assombra novamente esse legado desprotegido.

Henrique Gonçalves da Justa foi o primeiro presidente da Câmara (ou seja, na época, o prefeito da cidade), também o primeiro arruador e grande benfeitor de Pacatuba, que empresta o seu nome, ainda hoje, à sua principal praça, que hoje assiste à tragédia causada não pelas águas da chuva, mas pela desmemória, pela ausência de legislação e de políticas públicas eficientes nesse campo e, pior, pela falta de vontade política e do clamor popular por longos e imperdíveis anos. Dói-me supor que a população não sofra e não se envergonhe com isso.

Além da sequência de prédios demolidos nos últimos anos, percebo, toda vez que volto a Pacatuba, mais casas descaracterizadas, sem nenhum incentivo de manutenção dessas fachadas. Este belíssimo sobrado, percebia, indiferente à sua importância, estava cada vez mais deteriorado, mesmo quando ainda ostenta na triste sacada de ferro as iniciais altivas de seu saudoso proprietário: “H. G. J.”.



Em sua História da Seca, Rodolfo Teófilo, protegido e grande amigo do capitão Henrique, escreve que no dia de sua morte “a florescente Vila de Pacatuba cobria-se de luto e pranteava a morte do seu benfeitor, o capitão Henrique Gonçalves da Justa. A fatalidade pesava IMPLACÁVEL sobre a família cearense. Henrique Justa [...] dedicou-se, desde os verdes anos [...] a trabalhar pelo engrandecimento e prosperidade de Pacatuba, então pequena e acanhada povoação. Empregou grande parte dos seus capitais em construir casas, aformoseando assim a futura vila, influiu para a regularidade dos serviços públicos, animou a instrução, desenvolveu mais a indústria, deu-lhe todos os elementos de prosperidade. Progredindo assim a Pacatuba, e já ligada à capital por uma linha férrea, foi elevada à vila, de cuja Câmara Municipal foi ele o primeiro presidente.”

E, então, nos chega essa fatalidade: a sua residência, supostamente também a primeira sede da farmácia de Rodolfo Teófilo, líder do movimento abolicionista em Pacatuba, a ponto de desmoronar. Não fosse o Ministério Público, a Defesa Civil da cidade não se incomodou de precipitadamente determinar a sua execução. A Prefeitura e a Câmara Municipal também não cumpriram o seu papel. Mesmo provocada, a Secretaria da Cultura do Estado, por meio de seu Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural, também silencia, assim como o Iphan e a Assembleia Legislativa.

Perdemos, aos poucos, o doente, sem os devidos socorros, sem a atenção merecida. Pergunto: é isso mesmo? Vamos ter que engolir mais esse descaso com o nosso Patrimônio? Ainda há tempo de mudar o final dessa história.




 


 

terça-feira, 2 de maio de 2023

“Nilto Maciel: quando se tornou imortal”, homenagem ao grande escritor (30 de abril de 2014)


"Ora, deixemos esses passados mortos e vivamos o presente. Uliyana chegaria dentro de alguns minutos e eu a pensar em escritores medíocres. Entreguei-me, de olhos fechados, a fantasiar suas feições. Por que teria me procurado? Informou-me, por telefone, ter percorrido quase toda Fortaleza: da estátua de Iracema à feirinha de artesanato da Beira-mar, do centro cultural Dragão do Mar aos caranguejos da praia do Futuro. E por quais vias você me descobriu, ó czarina de meus delírios pós-soviéticos? Ofereceu-se para vir ao Monte Castelo, onde moro. Pode ser agora? Pode ser a qualquer hora. Passadas cinco páginas de Tchekhov, um táxi branco e reluzente deixou diante de minha mansão a mais estonteante das raparigas russas de todas as eras. Joguei o contista sobre o diário e corri a abraçá-la. Trazia livrinho dentro da bolsa vermelha: O senhor pode me dar autógrafo? Percebi logo tratar-se de exemplar da edição russa de Carnavalha."(...)

Era assim a vida animada e fantástica de Nilto Maciel, na sua casa no Monte Castelo, onde residia sozinho, balançando na cadeira em frente à TV, lendo as centenas de livros que lhe chegavam pelo correio, ou debruçado num computador a alimentar famintos blogs e a escrever todotempo o tempotodo.

Por vezes, já pela noitinha, após a sua sopa e remédios  éramos vizinhos , ligava apenas para saber se podia desligar seu computador moderno, cheio de mensagens alienígenas, ou se eu achava que daria tempo de retirar dele um valioso pendrive sem o risco de perder a sua irreparável "obra completa".

Deitado num travesseiro de sonhos, ou de ficções, acordava com a cabeça pintada de contos, crônicas, romances, ou mesmo daquelas piadinhas infames ou irônicas que os amigos se acostumaram a ouvir em suas ligações, nas quais com a voz disfarçada, meio gutural, dizia:

 Meu amigo... estavam agora mesmo falando mal de você... Sabe quem foi?

 Não, Nilto... (Sempre) Não, Nilto... Fala logo... O que foi?

E ele ria uma gargalhada quase que dramática, divertindo-se, e comentava causos que nunca sabíamos se eram verdades ou mentiras. Com ele, sempre era assim, nunca se podia ter a completa certeza. Hoje, durante a triste nova da tarde, tive essa mesma impressão: Será essa apenas mais uma marmota do Nilto Maciel? Verdade ou mentira?

Havia lá suas coisas, seus livros cuidadosamente separados nas prateleiras, sua cadeira de balanço, seus óculos, o fone e os controles da TV ao lado dela. O computador ligado, assim como a luz da sala, provavelmente ele ainda trabalhava, notívago que era. No sofá, a toalha com o brasão do Fortaleza e uma calça, deixada sempre a postos, para o caso de aparecer visita. No quarto, uma coleção de dvds, uma surpresa para as filhas, num deles um adesivo remetia à sua querida "Tusa". Desabei com isso.

Na cozinha, ao trancar a janela, pude ouvir o eco ainda fresco de sua voz: "Netto, quer uma coca-cola, quer? Eu pego a sua coca-cola... Ou quer alguma coisa mais forte?"

Ao lado, na poltrona, a mala feita, separada com antecedência para ir ao Encontro de Literatura Fantástica, em Sobral, onde abriria o evento. No jardim, livros envelopados que ele nunca lerá, de amigos que ele sempre divulgou em seu blog, dentre eles Enéas Athanázio, Geraldo Jesuíno e Francisco Miguel Moura.

Pensei muito num fantasma que me atormenta. Lembrei das vezes que conversamos sobre isso. Como ele nunca reconheceu esse fantasma, nunca me levou a sério. "Era a vida, Nettó."

Hoje, assisti à saída silenciosa de Nilto de sua casa, deixando para sempre os seus livros colecionados durante a vida de literatura e os seus arquivos de uma obra completa que nós também não conheceremos. O vi carregado e imaginei que, ao invés de homens simples do IML, eram aqueles seus admiradores leais, carregando-o nos braços para um pomposo carro à espera da glória da imortalidade (leia-se não esquecimento) almejada por todo persistente escritor. Acenei timidamente, da sala de visitas, entendendo ser aquela a última vez que nos encontraríamos ali. Lamentei, claro, todos os momentos perdidos, mas prefiro agora pensar no que fizemos e rimos juntos.

Vai-se Nilto Maciel, que nos últimos anos de sua vida esforçou-se para não ser esquecido, publicando um livro atrás do outro, inclusive fortuna crítica e memórias. Vai, mas não vai de todo, deixa aqui a sua voz, os seus pensamentos mais ousados, as fantasias, a sua arte, a transgressão e a loucura de viver "sem fronteiras" a sua paixão literária.

Nilto, vai com Deus, irmãozinho. Fica a sua falta, mas a sua lembrança nos brilha mais.