segunda-feira, 30 de julho de 2018

"A Dupla", conto de Raymundo Netto para O POVO




Não tendo outro jeito, separou-se.
No começo, sempre difícil, buscava a companhia solitária e ilusória das multidões. Com o tempo, aquietou-se, arranjou um apartamentinho, organizou-o com suas coisas, acomodou e acostumou-se. Melhor: passou a curtir o silêncio e a sua solidão, esta sim, para ele, libertária.
Numa ironia terrível, bem própria da incoerente existência humana, na qual afirmamos amar a vida, todavia nos deitamos com a morte, enquanto gostava daquela situação, sentia precisar de mais alguém. Apesar disso, ciente de ser um incompreendido e da sua indisposição em acordar qualquer coisa que lhe restringisse o mínimo de espaço – tinha asmas emocionais –, decidiu viver a dois consigo mesmo.
Então, nos restaurantes, bares e cafeterias, passou a pedir tudo em dobro. Dois cafés, dois pães, dois pratos, dois pares de talheres... e até a divertir-se em jogos de tabuleiro, de cartas e palavras cruzadas. Dava gosto vê-lo alegremente falando alto, conversando, lendo livros regados a chás, discutindo o cardápio e planejando viagens juntos. Fazia longas caminhadas no parque pela manhã. Um cuidava da saúde do outro, sempre achando que esse outro, por ser da mesma idade, deveria estar tão bem quanto.
A princípio, os vizinhos e moradores do bairro estranhavam, mas, com a rotina, já os reconheciam como gêmeos, percebendo-lhes nos modos, na fala e até no olhar, naquele instante, quem era quem.
Sabemos, entretanto, que a vida comum é um exercício. Com o tempo, a falta de privacidade e o excesso de intimidade podem pôr abaixo a mais sólida relação. Ele começou a desanimar. Irritava-se com frequência. Diante das discussões, jogavam na cara um do outro os seus mais inconfessáveis e inegáveis defeitos e contradições. Assim, aquela convivência se tornou intolerável. E, um dia, como é comum acontecer nesses momentos, estavam no café, quando surge à luz da manhã uma moça belíssima. Não demorou para que eles chamassem a sua atenção. Ela, curiosa e atrevida, aproximou-se, pediu licença e sentou-se à mesa.
Desacostumados com outro contato que não entre eles próprios, apresentaram-se, atrapalhados, a lhe perguntar coisas, as mais banais e supérfluas. A moça sorria: “Calma, rapazes, um de cada vez...”. Ao sair, colheu os números de seus celulares.
Sim, eles estavam completamente apaixonados. Mas tinha que ser pela mesma mulher? Agora, o que estava ruim ficou ainda pior: evitavam-se, faziam refeições em separado, brigavam para usar o banheiro, trancavam-se em seus quartos à espera daquela ligação. E ela ligava. Incompreensivelmente, para um e logo depois para o outro.
Um dia, ao acordar, ele sentiu um estranho vazio. Correu à sala e encontrou um bilhete. O outro fugira de casa para viver ao lado dela, o seu grande amor. Fizesse o que quisesse com suas coisas. Não queria saber de mais nada. Por fim, desculpasse. Se possível, enviaria notícias.
Aquilo foi demais. Ele, abandonado e irremediavelmente sozinho, não resistiu e se matou, não suportando a inigualável dor daquela dupla traição.



domingo, 15 de julho de 2018

"Padre Cícero está de volta ao Juazeiro", dia 20 de julho. Saiba Mais!


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Padre Cícero de volta ao Juazeiro!

O livro Padre Cícero, o filme, de autoria de Raymundo Netto, inaugura a a Coleção Memória do Audiovisual Cearense, de fomento ao acervo e preservação do patrimônio audiovisual brasileiro. A obra traz uma história breve dos primeiros 50 anos do cinema no Ceará (1924-1974), recorte que vai desde a primeira exibição cinematográfica no estado até o ano em que o diplomata, diretor e roteirista Helder Martins de Moraes se une ao empresário e produtor Francisco Martins de Morais e inicia a sua luta para filmar o primeiro longa-metragem colorido do Ceará e primeira obra audiovisual ficcional sobre a vida de padre Cícero, considerado ainda hoje o maior líder espiritual brasileiro.
Padre Cícero: os milagres de Juazeiro (1976), um filme tão controverso quanto o seu personagem, foi filmado em vários sítios cearenses e teve um elenco composto por artistas de grande nome do cinema nacional da época e atores, hoje referências do teatro e da TV cearenses, como Jofre Soares, Dirce Migliaccio, José Lewgoy, Rodolfo Arena, Manfredo Colasanti, Cristina Aché e os cearenses Ana Miranda, Nildo Parente, Ricardo Guilherme, Seny Furtado, Haroldo Serra, Walden Luiz, Marcus Miranda, além de vinte e cinco técnicos, cem coadjuvantes e cerca de mil figurantes.
O projeto, que contou com o apoio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, e como patrocinadores M. Dias Branco, Estácio, Banco do Nordeste e Empresa Vitória, em vasta pesquisa, conta a sua história, desde a concepção e filmagens ao seu lançamento, incluindo a ficha técnica, curiosidades e fotos. Como anexo, a obra traz o roteiro original do filme (simulação de fac-similar), com notas, e o encarte da reprodução do pôster em tamanho original, com a ilustração de Benício, autor de diversos cartazes de filmes de sucesso na época. Também disponível estojo com 2 DVDs (filme original, trailer e documentário com a participação de membros da equipe técnica e atores, mais de 40 anos depois).

SERVIÇO
1.       Lançamento documentário e livro Padre Cícero, o filme
Com a presença de Renato Casimiro, responsável pela pesquisa na equipe técnica (1975), e Valmi Paiva, membro da equipe de produção e ator coadjuvante (1975).
Quando: 20 de julho, sexta-feira, a partir das 10h
Onde: Fundação Memorial Padre Cícero (Praça do Cinquentenário, s/n, Juazeiro do Norte)
Outras Informações: (88) 3511.4487

2.       Lançamento longa-metragem “Padre Cícero: os milagres de Juazeiro” e livro Padre Cícero, o filme
Quando: 20 de julho, sexta-feira, às 18h
Onde: Teatro Centro Cultural Banco do Nordeste – Cariri (Rua São Pedro, 337, Centro, Juazeiro do Norte)
Outras Informações: (88) 3512. 2855 |    
Investimento: Livro (com roteiro original) + Poster + Kit-estojo (2 DVDs: Filme/Trailer + Documentário): R$ 60,00


sábado, 14 de julho de 2018

"Casamento", de Raymundo Netto para O POVO



Na igreja, as pessoas se reuniam na organização de um bazar para angariar recursos à paróquia. Laura carregava caixas, quando foi abordada por dona Neide, uma das beatas, que percebeu-lhe as mãos: “Você não é casada, minha filha? Cadê a sua aliança?”
Surpresa, Laura apenas balbuciou um tímido e não convincente “Perdi”. Neide, ao contrário, bem vivida e maliciosa, olhou a jovem com desdém e, espalmando a mão esquerda bem à frente de seu nariz, projetou a volumosa aliança dourada: “Pois eu sou casada de papel passado e com as bênçãos de Nosso Senhor. Não sou mulher de sem-vergonhices, não.”
Laura, constrangida e diante de outros olhares fuzilantes, pediu licença e saiu pela escadaria aos prantos. Sim, ela não era casada e isso, ninguém sabia, lhe era uma tremenda frustração. Há anos, conhecera Serafim e logo se apaixonara. Ele propôs: “Amor, vamos morar juntos?” Ela espantou-se. Queria, mas não queria assim. Sonhava-se em véu e grinalda de flores de laranjeira, vestido alvo de cauda longa, diante do padre e da família, com direito a daminhas e pajens, sininhos, chuva de pétalas de rosa e de arroz, mas Serafim insistia: “É uma festa apenas, meu amor. O que é uma festa?”
Laura, mesmo com rigorosa formação religiosa, hesitava. Afinal, era o Serafim “Um fofo!” Até que um dia, convidada a ser madrinha de um casamento de amiga, enamorou-se por tudo: pelas cores e luzes, buffet, balões de gás, discursos e juras de amor eterno, brindes, um milhão de fotos e um buquê. Chorava como se aquela fora a sua tão desejada cerimônia matrimonial. Natural sair de lá decidida a colocar o rapaz na parede: “Só casando!” Entretanto, ele, sofrendo o diabo, afirmou: “Então você não me quer... quer a festa!” Laura, sentindo-se vista de forma tão fútil, irritou-se, gritou aos céus de relampos e temporais: “O que eu quero é não vê-lo nunca mais!”
Parecia uma eternidade, mas poucas semanas depois, Laura soube que a amiga, recém-casada, fugira com um ex-namorado. Perplexa – não dera tempo nem de conferir o álbum de fotografias – e sem pensar, procurou Serafim: “Como pôde? Tudo tão lindo, perfeito, e ela foge... assim?” Ele, um inveterado saudoso e perdido em amores, lhe estampou um beijo de novela: “É só uma festa, meu amor... Uma festa...” Então, sem adiar mais, Laura se entregou a Serafim. Com pouco, alugaram uma casinha e passaram a viver juntos. Porém, mesmo amada e contente, ela tinha suas vergonhas e, daí, naquele mesmo dia em que foi encurralada pela beata, perguntaria ao Serafim: “Querido, um dia nós vamos nos casar?” “Só se for de novo”, respondia ele, sem tirar as vistas do jornal. “E Deus, as suas bênçãos?” Ele beijava delicadamente a sua mão e sorria: “Somos abençoados, meu amor. Eu te amo, você me ama. Deus é amor!” E ficava por isso mesmo.
Até que, no dia seguinte, voltando do mercadinho, ela passou pelo calçadão da praia e viu, para seu espanto, o marido de dona Neide, o velho Olegário, de calção, aos amassos e lambendo os beiços com uma moça em biquíni. A vizinhança comentava: “Que velho mais safado. Todo dia é essa lambança. E na frente de todo mundo!”
No domingo, após a missa, dona Neide, como se esperava, aproximou-se de Laura com outras colegas de fuxicos e lançou: “Ô, Laurinha, me tire uma dúvida, criatura. Você e o seu Serafim são casados, tico-tico no fubá, ou o quê?” Ao que ela, segura e altiva, respondeu: “Nós somos felizes, dona Neide. Só isso: felizes!”




segunda-feira, 9 de julho de 2018

"Cadê a banca de revistas que estava aqui?", de Luiza Helena Amorim para O POVO



Todas as pessoas desse mundo, nas suas vidas virtuais ou reais, se acham no direito de ao menos um dia no ano entregar-se a resmungar por algum motivo, ou protestar contra um mau serviço postando uma denúncia nas redes sociais. Pois bem. Hoje é meu dia.
Quero gritar aos quatro ventos: que fim levaram as bancas de revistas de Fortaleza?
Assumo a mea culpa. Sou de uma geração que passou a consumir informações, literatura, entretenimento em plataformas digitais. Foi um processo tão sutil que nem me dei conta que estava ali a acompanhar quase tudo nos sites e redes sociais. O acesso é rápido, prático, barato. Que pecado há nisso? Contudo, fecham as bancas.
Das lembranças mais agradáveis que eu guardo da infância, as bancas situam-se em um lugar de destaque. Será que esse hábito teria influenciado minha escolha em tornar-me jornalista? Talvez, pois me lembro dos primeiros textos publicados nos encartes infantis. Esperava os finais de semana para andar pelas ruas do bairro, passar no armarinho e comprar papéis de carta, como muitas meninas da minha geração faziam. Para em seguida, ir correndo ver as revistas em quadrinhos da Turma da Mônica ou os novos álbuns de figurinhas...
Depois veio a fase das revistas de adolescentes, dos materiais de estudo, das revistas de culinária e por fim as de literatura e jornalismo... Nas bancas comprávamos os jornais para ver as listas de aprovados no vestibular, se não tivéssemos nervos para ouvir pelo rádio ou pelo simples prazer de guardar aquele documento sentimental.
É contraditório, porém, sou entregue às novas plataformas, mas, não totalmente. Tenho o gosto “antigo” de ser feito traça, de ter a leitura como uma experiência sensorial de tocar o papel. Seguindo sempre um ritual: gosto mesmo é de folhear rapidamente, um jornal ou revista e já selecionar os conteúdos de meu interesse, e depois fazer a leitura cuidadosa dos textos. Quando trabalhei em uma editora, era dia de festa quando as revistas chegavam da gráfica, abrir os pacotes e sentir o cheiro de publicação nova... Novos comportamentos de consumo de informações, baixa demanda por jornais e revistas impressos, a crise. Como sobreviver a essa avalanche? Não sei. Só lamento.

Luiza Helena Amorim
luiza.helena.amorim@gmail.com
Jornalista e escritora