domingo, 18 de novembro de 2018

"Redenção", de Raymundo Netto para O POVO



Gedeão incomodava-se. Passasse à calçada, a vizinhança logo lhe apontava olhos censurosos. Era um desgraçado, sabiam mais do que ele próprio. Sabiam sempre mais, de não entender como não haveria de saber nada. Pois sim, a sua mulher o traía às ventas e ele nada! Como poderia?
Já havia de telefonemas anônimos. Bilhetes de solidária maldade lhe chegavam. Os colegas e mesmo os familiares mais próximos, com vexame, insinuavam desconfianças... Era de tão claro, mas Gedeão parecia receber tudo com a naturalidade de um Jó, incompreensível ao geral pensamento humano e, ademais, masculino.
Diante da porta da casa, torcendo a chave, a curiosidade de uma rua despontava aos ouvidos: haveria ali outro alguém? seria daquele dia a desforra? falaria à sonsa da mulher as verdades? surraria aquela vagabunda? acabaria dali, de vez, a pouca vergonha?
O silêncio frustrante de um nada acontecia.
Naquele dia, entretanto, após minutos, saía ela, a esposa jovem e imperdoavelmente linda, pela mesma calçada, acompanhada de estranho. A lágrima descia única e atrevida à face, a luzir do suor vertido no calor da hora. O homem ao lado nem não tinha cor. Fosse outra, dignaria vaia, mas ela, não, era diferente. Temiam-na.
No vento de sua passagem, correram todos à janela da casa. Gedeão, magro ao paletó, cruzava os dedos nos cabelos da cabeça reclinada. “O desespero corroía o peito”, pensavam todos a suspirarem dós da sua inocência. Homem estudado, embora simples e apaixonado, trouxera aquela moça inda adolescente, virgem parecia, do interior, mal sabendo as palavras de boca. Deu-lhe nome, casa, comida. E agora, era de pagar esse preço. Por tanto a enganar olhos e ouvidos, a vadia aproveitou-se.
Como tudo na vida, menos na morte, o tempo passou. Gedeão, acolhido com disfarce generoso pela vizinhança, encontrou breve outra mulher. Esta, filha única da vizinha, a mais cruel algoz de sua outrora companheira. Via na filha a redenção daquele corno, pois nela o exemplo quase litúrgico de virtude e fidelidade.
Gedeão casara assim em festa de rua. Nunca mais que ficara só. A sogra, entretanto, não deixava o casal esquecer a outra. Sempre a relembrar de suas imperfeições e a ostentar a compensação na excelente escolha a remir o seu passado.
Foi-se a novidade. Gedeão atravessava a calçada, incomodado. Era de um encabulo só. Olhos demais, palavras demais, amigos demais e algo mais lhe pedia a vida. A esposa já percebia. Acolhendo-o em seus braços, buscava chegar à sua dor, lhe preencher o vazio de seu coração choroso.
E foi numa noite que Gedeão abriu, com sorriso, a porta da alcova, e apresentou à mulher um homem sem cor, e ela, compreensiva em seu sublime e devoto amor, abriu os braços, como numa cruz, para o seu mundo.

domingo, 4 de novembro de 2018

"A Voz de meu Pai", de Raymundo Netto para O POVO



José Pedro, o Deca (29.6.1939 - 25.10.2018)

“Vejo meu pai como um artista. Saber viver é uma arte. De todas, a mais difícil! Ele era semianalfabeto, nascido numa cidadezinha que nunca eu ouvira falar e, mesmo assim, conseguiu um emprego seguro, casou-se e teve nove filhos, criando e educando a todos. Em seu emprego, era querido e respeitado tanto pelos chefes como pelos subalternos. Quando ia ao Quartel era recebido como uma celebridade. Até o general o tratava com cortesia – chamava-o de mestre Raymundo – e sempre se oferecia para ajudar-lhe quando precisasse. Hoje, quando penso como papai conseguia conquistar todas essas pessoas, independentemente de patente ou de nível social, percebo que tinha muita sabedoria.”
Há apenas 12 anos, o meu pai, José Pedro, passou a me visitar quase que diariamente pelas manhãs. Ele, mais acostumado a dar do que a pedir, chegava humilde, quase litúrgico, em gestos e palavras. Trazia debaixo do braço um caderno velho de apontamentos onde montava uma espécie de autobiografia. Precisava de minha ajuda para “ver se estava tudo certinho”. Minha missão, quase a de um escrivão: sentar ao seu lado, digitar o que escrevera e melhorar aqui e acolá, sem alterar o texto, a sua “voz”, tornando-o bem compreensível ao expressar o que acontecera e o seu sentimento a respeito. Então, enquanto eu digitava, lia em voz alta. Ele, ao lado, acompanhava. Explicava-me, quando achava necessário, as entrelinhas daquela história, confirmando-a com lamento, certa timidez ou mesmo se divertindo muito.
O menino, que nascera no Dia de São Pedro, na rua das Neves, s/n, em Casa Amarela, no Recife, falava sobre a infância, as escolas, as aventuras e travessuras, a juventude no Largo da Paz, os carnavais, os primeiros amores, o trabalho – desde os 13 anos –, a vinda a Fortaleza, o casamento, a família, as dificuldades financeiras, as escolhas, as renúncias, a sua vida religiosa, entre outras delícias.
Naqueles dias, visivelmente emocionado ao passar a limpo aquelas memórias, quase toda passagem do texto gerava uma nova história, uma vida que mais parecia ter 100 anos (tinha 67). Eu questionava, pedia-lhe para repetir aquilo, tentava situar historicamente, enquanto na minha cabeça tudo se transformava em imagens de filme antigo, um drama humano, que, aparentemente, poderia ser a história de qualquer um, mas não o era para aquele homem.
No trecho acima, em que descreve o pai – quando pequeno, por perceber que a maioria das pessoas gostava mais das mães, decidiu gostar mais do seu pai –, ele, sem o perceber, retratou-se como nós, filhos, o vemos. Sim, aquele “artista” era ele mesmo. Daí, ao final, outro trecho: “A maior lição que recebi, e esta, veio do exemplo de meu pai, é procurar ser o pai que ele foi, fazendo tudo pelos filhos.” E o fez, assim como pelos seus netos, enquanto pôde. As lições que nos deixou comprovam isso.
Até que na manhãzinha de 25 de outubro de 2018, ele descansou desse mundo, deixando agora as suas memórias, como as folhas de outono, ao vento, espalhadas entre as nossas e as de outras tantas pessoas que nos chegam e sorriem ao falar o seu nome, a nos provar que a vida não cabe no tempo, apenas se alimenta dele, assim como aquilo que insufla o corpo, quando muito, transborda dele, resistindo ao esquecimento e nos acolhendo naqueles momentos em que achamos não existir nada mais na estrada que valha uma vida.


Meu pai, eu e minha mãe (Zenaide), em um dia dos pais