terça-feira, 14 de janeiro de 2014

"Enlutada", inéditos de "Os Acangapebas", de Raymundo Netto (14.01)


Safira seguia a passo vago ao lado do caixão do marido. Olhava Edmundo de cima abaixo, de baixo acima, como se a qualquer momento fosse de sua providência acertar o véu, recompor um detalhe, apertar os cadarços, ajeitar-lhe as mãos pesadas no peito mudo. Como se ele, dali a pouco, pudesse lhe pedir qualquer coisa, qualquer uma. Ela o faria, certamente, o faria, como sempre.
No mesmo passo, desviava a atenção dos olhos úmidos para as paredes nuas, às imagens de um Cristo triste e rendido a esvair-se em sangue, enquanto a mocinha da funerária, que interrompia o silêncio com irritantes saltos ligeiros, trazia os copos descartáveis e o café para as visitas:
"Não tem ninguém, senhora?"
"Ninguém, por quê?"
O casal se bastava em si, nem filhos, orgulhavam-se, lembrou. Foram morar longe: "Família só serve para dar pitaco!" O amor lhes era tudo. Era o teto, o chão e o cobertor do casal. O que poderia faltar diante do amor de duas almas tão sinceras?
Durante algumas horas, apenas uns poucos, menos de dez, colegas do trabalho, passariam por ali. Alguns deles, cerrados em óculos escuríssimos, mal emitiriam palavras, apenas grunhiam. Poderia ser qualquer coisa, de "lamento" a "ainda bem". Perguntariam:
"Como foi que aconteceu?" "Tão jovem..."
"Não sei. Ele estava tão bem, feliz, e de repente... Foi-se."
Não demorariam. Teriam outros compromissos, qualquer um, senão ficariam, mas ligasse — se tivesse deles sequer algum número. Entretanto, trariam a mais bela e única coroa de flores. Nela, uma cor clichê: "Saudades".
Ficaria por horas novamente só, imutável, sentada numa incômoda poltrona de viúva a rememorar o sorriso elevado que ora jazia ali, sepultado em algum lugar daquele cadáver, objeto repulsivo a caminho dos vermes que conduzem à desintegração terrena.
Por vezes, tomava coragem, levantava-se e parava diante do corpo do marido. Espalmava a mão na testa lânguida e uma ânsia lhe tomava o corpo em arrepios lancinantes. Como seria possível amá-lo assim? Como poderia guardar na lembrança aquele homem? "Morto!" Punha-se em soluços de agonia. O peito arfava em espasmos sucessivos e ela tremia, esfregando as mãos na saia: "Que nojo! Nojo! Nojo!"
Mais tarde da noite apareceu da penumbra outra mulher. Chegou no portal do salão e estacou. Vestia o negro na corrente de profundo abatimento. Olharam-se. Não se conheciam, decerto, mas era como se se soubessem. Aproximou-se, margeou o esquife, como chegasse aos pés de um precipício, e deitou a mão levemente na perna esquerda do falecido. Com breve, seu olhar transmudou de grave a enlouquecido, desesperado. Deitava em lágrimas convulsas, num choro pesaroso e inconsolável de encontrar eco nas demais cabinas mortuárias. Mais um pouco, até seria possível invejar Edmundo na sua condição de morto.
Safira assistia passiva, comovida e atônita. Por um momento, não se sentia mais só. Na verdade, não sentia nem o próprio corpo, nem a mesma dor.
Aproximou-se da outra, tocou-lhe os dedos e pronunciou-lhe um beijo na testa. Voltou à poltrona, tomou a bolsa e, num suspiro profundo e sem olhar para trás, se foi, enquanto a enlutada subia, ainda trêmula, no caixão de Edmundo, aninhou a face saudosa sobre o seu peito e, como uma jura imortal, morreu com ele.

3 comentários:

  1. Quanta capacidade de imaginação e expressão, heim meu amigo!? Sensacional! Mais um que imprimo para D. Zeneide. Bjo

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  2. A viuvez tão sentida... tão ampla torna a mulher pequena diante da amplitude do vazio. O espaço "Oco" tem um quê de consumo que nos deixa dormentes. Vc é muito bom....

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    1. Fabreu, grato pela leitura e pela conclusão certeira. Abraço.

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