Crônica publicada em O POVO em 2008
Pois bem, estava cruzando
o Benfica, bairro intelectual e boêmio de nossa Fortaleza, indo visitar um
amigo que mora próximo à universidade, quando vi chegar um fusquinha verde no estacionamento
aberto de um shopping. Como se fossem fogos despertando a dormência daquela
tarde, explodia-lhe o escapamento, traçando no chão uma trilha de doze
parafusos. Os taxistas e pedestres riam daquela “arrumação”.
Desceu do carro um senhor
magro, com cerca de oitenta anos, rosto marcado e pálido, testa larga e os fios
de cabelos brancos puxados para trás das orelhas. Com as mãos na cintura,
olhava surpreso para os lados. Leon, um funcionário que trabalha ali há mais
tempo, gentilmente tentava explicar-lhe alguma coisa. Aproximei e ouvi quando aquele
senhor insistiu, impaciente:
— Mas, meu filho, você é
quem não está entendendo... Eu moro aqui!
Não tinha mais dúvida:
aquele homem era mesmo o professor
Moreira Campos!
Leon não sabia o que fazer.
Decerto, deveria ser um engano. Fazia já algum tempo que ali funcionava o estacionamento,
e antes, ouviu dizer: "havia apenas uma casa antiga onde moravam dois
velhos", mas que o shopping havia comprado e demolido a tal casa.
Percebi que o Moreira,
então boquiaberto, deixara cair uma rosa que vermelhejava o viço, como se a dizer
“para tão longo amor, tão curta a vida''*. Ficou assim, estático, dirigindo um
olhar atento e desesperançado para o pequeno rapaz que falava, falava e
falava...
— Vamos tentar resumir
essa história, faz-se longa demais!, concluiu, deixando o moço a falar com as
moscas.
Fly, um cachorro magro que farejava latas de lixo, parou e pôs-se a
latir, arranhando a porta do carro com a patinha: Dizem que os cães vêem coisas...
Contrariado e perdido, o
professor sentou-se no meio-fio do passeio, ensombrado por um benjamim, apoiou
o queixo pessimista no dorso de uma das mãos e divisou aquele shopping, mergulhando
em si mesmo, encolhido pela tristeza. “As moscas insistentes provavam-lhe os
cantos dos olhos” e ele refletia: “A vida endurece”!
Não via mais a sua casa,
mas por dentro, chorava-a. Ouvia as mesmas vozes, o ranger do armador, o
tilintar dos talheres na cozinha, a zoada das crianças no corredor, o piano da companheira
amada: a Zezé... Passou pela sua cabeça, penso, as alegres reuniões e o papo
literário, o café, o convívio com amigos no pequeno jardim de sua casa, a
delícia da beira da rede na varanda, o desgasto do piso comido por tantos passos,
o gemer de ferros do relógio na parede, o cheiro da terra molhada pela chuva
colorida em iluminuras pelas histórias da Natércia, o cheiro do inhame quente,
do piqui, da manteiga da terra, os passeios na calçada depois do jantar, e daí,
sentiu saudades da penumbra da noite, onde queimava o lume de um cigarro... Desabafou:
— Não tem coisa pior do
que voltar para casa e encontrar as portas fechadas... O mestre Tchecov já
dizia: “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira”.
As pálpebras franjavam o olhar
plangente. Ele resistia, mas não estava sendo fácil:
— Não podia ficar para
semente, ora! — caiu num silêncio melancólico, uma sensação perturbadora de não
reconhecimento. Sim, aquela casa o abrigara e o acolhera por tantos anos. De
lá, do “buraco da jia”, gabinete construído nos fundos da casa, é que vaporaram
muitos dos seus fantasmas! Agora, eram apenas lembranças que se perderam no pó das
paredes que ruíram. — E os meus amigos, Manelito, Artur Eduardo, Aderaldo,
Colares, Caetano, Sânzio, Pedro, Inês e Ângela, se quiserem me ver? A casa era
tão minha que até já tinha a minha voz. Eu podia falar pelas colunas, paredes,
telhados, janelas... E agora, quando quiserem me encontrar, como farão?
Abeirei-me ao contista, mostrei-lhe
um livro de sua autoria que, coincidentemente, trazia. Pedi uma dedicatória. Moreira
sorriu, compreendeu meu recado, e tomou-lhe às mãos.
Leu um trecho de "As Três Irmãs":
“(...) tinham mandado
demolir o casarão: queriam espaço para o estacionamento de automóveis, mais
lucrativo (...) O senhor de cabelos brancos comentava:
— Uma pena!
— Isto era casa para ser
tombada. Um patrimônio.
— Não temos tradição.
— Pura verdade.”
Fez-se novo silêncio. Recordou
sua vinda para a cidade amada, pigarreando um pouco para depois declamar: “Fortaleza
era então provinciana, era menina. Cadeiras nas calçadas e a tristeza dos
lampiões a gás em cada esquina”.
— Pois é, professor
Moreira, mas essas coisas não acontecem só no Ceará, não, viu? No Rio de
Janeiro também deixaram demolir a casa do Machado de Assis.
— Sim, eu sei, estive com
ele... Estava casmurro por conta disso! A casa foi-se indefesa. Nem os lidos...
Contudo, sempre acreditei que “o destino é o mais fértil dos ficcionistas,
aquele capaz de todas as tramas e enredos”. Quis o destino que esta casa não
sobrevivesse. O consolo é que “valem todos os momentos que deixamos impregnados
naquele chão de mosaicos tão antigo.”
Puxando um cadarço do
mocassim e espantando uma mosca que lhe mordiscava o lábio, Moreira olhou a rua,
apontava as pessoas que passavam: uma mulher que, arrastando cinco crianças
descalças e alegres, trazia um prato enrolado com uma toalha; o senhor de olhos grandes e brancos, onde as
contas do terço corriam-lhe pelos dedos; duas velhas moucas; uma moça de blusa
de mangas compridas de bolinhas com o esmalte das unhas roído, e outra mulher
que passava agitada com o dedo em riste, bradando: “Meu irmão foi um mártir!”
— Está dando uma de doida,
criatura? — perguntou, com sorriso, a ela. Confessou-me: — Toda a literatura
que escrevi se inspirou neste território cearense e em sua gente. Sou seduzido
pelo ser humano e pelo que ele tem de vulnerável! Aprenda, Raymundo: sem
experiência vivida, é raro conseguir-se grande coisa em ficção. Falo da
verdade artística. Para ser arte, tem de se recriar o real, caso contrário se
torna matéria jornalística!
Levantou-se, tossiu um
bocadinho, olhou novamente para o vazio. Dirigiu-se, agora mais tranquilo, ao
Leon. Lembrou e falou de Leonete, sua prima-irmã, enquanto o rapaz recebia as
chaves e registrava a placa de seu fusca: “XQ - 2992” . Moreira deu uma
tapinha no capô duro e recomendou que “tivesse pena do bichinho...” Depois, colocando
o braço sobre meu ombro, perguntou se naquele negócio (referia-se ao shopping)
tinha, pelo menos, um cinema. Adorava cinema! No outro dia, disse, iria ao Bosque
das Letras, tinha tantas saudades das árvores de lá... “As árvores continuam
por lá, não? Olha, olha...”
Chegara a noite, as
corujas apareceram rasgando mortalha “num cair de asas leves, impressentidas, como
num sopro de morte” no alto do vazio que restou.
(*) Último verso do Soneto 88 de
Camões
Moreira Campos (1914- 1994) nasceu em Senador Pompeu ,
Ceará. Contista, fez parte do grupo Clã e é autor de Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), Dizem Que Os Cães Vêem Coisas (1987) e outros. Foi autor da Coluna
semanal Porta de Academia (1987 a 1994) no jornal O
POVO. Algumas falas e trechos do texto
são adaptações e transcrições da produção de Moreira Campos.
Raymundo, gosto tanto de ler o que você escreve porque sendo literatura me emociona. E por me emocionar sei que é real. Foi o Moreira Campos quem me fez conhecer o seu Sombra e você. Vendo o seu cuidado com o livro que tratava de Moreira Campos, logo percebi que ali se tratava de amor, de afinidade com o tema do ensaio, a literatura de Moreira, e não só de trabalho. Por isso fui ao lançamento do livro de contos fantásticos e depois li, reli e até rabisquei comentários sobre o seu Os Acangapebas... Dias desses envio (rssr). De longe sigo a sua trajetória literária e, quem sabe um dia, ainda teremos um encontro casual que renda uma boa crônica escrita por mim, já que nesse dueto serei eu a pedir um autógrafo. Abraço.
ResponderExcluirQuerida Rejane, feliz demais por essa sua leitura tão carinhosa. Sim, nossos primeiros encontros vieram por conta do Waldy e do Moreira, dupla muito boa de apresentação. Respeito o que fala à literatura, pois é ela que me mantém, de uma forma ou de outra, ao mesmo tempo que também me leva para caminhos tanto conflituosos que nem sei aonde vão dar. Estou curiosíssimo com esses rabiscos sobre Os Acangapebas. Gostaria de postá-los aqui no AlmanaCULTURA. Gostaria é pouco. Sei de suas leituras, mas não tive o privilégio de ter sua obra em minhas mãos. Podemos consertar isso, e nem precisa ser um encontro casual, podemos marcá-lo. Trocamos livros e autógrafos. Será um prazer. Feliz sempre com suas observações. Grato. Muito. Abraço.
ExcluirEXPECTACULAR....VIVA MOREIRA CAMPOS.
ResponderExcluirObrigado, Alejandra.
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