sábado, 27 de fevereiro de 2021

"Pium", de Raymundo Netto para O POVO


“N-Não é nada dis-disso, gente! Deixa eu explicar...”

Janaína era uma jovem irrevogavelmente tímida e solitária. Havia quem dissesse, por pura troça, que a moça possuía o segredo do manto da invisibilidade, tal seria a sua capacidade de “passar em branco” fosse onde fosse. O exagero não era, porém, distante da realidade. Trabalhava naquele escritório há 5 anos. Entrava calada e saía muda todos os dias, de forma que um vaso de planta ornamental era mais popular.

Naquele dia, no entanto, um detalhe despertou a curiosidade geral: um chupão no pescoço de Janaína! Sim, a mancha roxa a tomar extravagante o seu pescoço pálido soava como um escândalo. As colegas, que nunca lhe dirigiam qualquer palavra, quase em coro, a rodearam: “A noite foi quente, hein, garota? Abre o jogo!”

Janaína, num misto de surpresa e falsa indignação, corou abruptamente enquanto gaguejava a sua frustra tentativa de dispensáveis explicações. As colegas a acalmavam: “Besteira... quem nunca, não é?” Nesse instante, ela notou pousar em seu ora tentador pescoço o olhar malicioso de seus colegas, que a assediariam pelo resto do dia, afinal, a inesperada revelação de tigresa tinha lá as suas delícias.

Janaína custava a acreditar no que acontecia. Sentia-se como subitamente abduzida de seu mundo paralelo, escuro e sem graça. E o mais engraçado de tudo é que aquele suposto chupão era, na verdade, fruto da simples picada de um incômodo inseto. Aliás, em meio à excitação daquela “estreia”, sentia-se também envergonhada, pois que o seu Romeu, sabia ela e somente ela, tratava-se mesmo de um borrachudo!

E mais: nunca havia tido sequer um namorado. Quando não estava no batente, cumpria o dia a ler mangás, contos góticos e eróticos, escrever fanfics, colecionar figuras de ação e a se entupir de sorvete e batatas fritas, assistindo a temporadas intermináveis de animes. Fora isso, era dormir e sonhar com a vida que queria ter. E, para nossa surpresa, era aquela: ser o centro de atenções, ouvida, desejada, amada e invejada!

Assim, em terra de sapos, de cócoras com eles, desatou a exercitar a língua e a imaginação, ocupando o ouvido das colegas com ousadas e vibrantes histórias de amantes e namorados imaginários. Elas, boquiabertas, animavam-se e não se conformavam por não terem nunca reparado na pequena e atarracada Janaína, uma hedonista, libertina, e por que não dizer, devassa!  

Não parou por aí: nos dias seguintes, em banho de loja, abandonou as rotineiras malhas do Dragon Ball e Sailor Moon, os seus inseparáveis tênis de cano alto e passou a usar blusas mais justas, com razoável decote, e uma saia de poderosa fenda, a equilibrar-se sofridamente nos calçados, mas mantendo seu mundo cenográfico, o que duraria por mais alguns dias, nos intervalos do cafezinho, na qual era uma espécie de Sherazade do edredon, uma fabuladora de profanos prazeres.

Todavia, é sabido, desde sempre, entre a glória e o fracasso, tudo passa! Caindo na rotina de todas as coisas móveis e sem haver nada de novo debaixo do sol, passou rapidamente a ser ali qualquer uma. As colegas aos poucos cansaram da mesmice de suas narrativas, então, mais adocicadas, além do que, nunca apresentava nem era vista ao lado de tais garanhões e aquele chupão logo ingressaria na modalidade “troféu antigo”.

Janaína endoidou. Para ela, antes ignorada do que esquecida. Sentia-se traída, um verme. Então, não foi de estranhar nem de causar espanto, quando certo dia ela não compareceu ao escritório, estando hospitalizada após ter desesperadamente enfiado a cabeça dentro de um vespeiro.





 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

"Vagas", de Eduardo Silva


   Para Lucirene Façanha

 

Era uma mulher,

descalça pela praia a caminhar,

apagava o aveludado da areia

que as ondas insistiam em renovar.

 

Vieram ondas fortes...

 

Era uma moça lembrançosa

com coração leve, descarregado.

Já não a machucavam as pedras passadas.

 

Soprou uma brisa amena...

 

Era uma menina em liberdade.

Às mãos, duas conchas guardava:

sonhos que não se quer deixar.

 

O sol se punha.




 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

"Clube Ponto de Leitura Itinerante" de Grecianny Cordeiro para O Estado

Ler é paixão. Ler é renovador. Ler, é abrir os horizontes. Ler é viajar para onde talvez nunca seja possível ir. Ler pode ser um ato extremamente solitário, tal como o escrever. Mas ler, também, pode ser feito de uma forma coletiva e compartilhada. Foi através do Clube Ponto de Leitura Itinerante que conheci a leitura compartilhada, levada a efeito por várias pessoas, cujos olhos cintilam ao dar suas impressões acerca do livro lido.

O CPLI completará cinco anos de existência em 2 de junho de 2021, sendo idealizado e criado pela professora, poetisa e contadora de histórias, Cris Menezes, uma leitora apaixonada pelos livros, movida pela necessidade de contagiar os amigos com a sua grande paixão: ler.

Nos conta Cris Menezes que foi “incentivada por algumas amigas professoras Simone Ferreira, Maria Teresa, pela escritora Nanda Góis e as amigas Inês Ramalho e Joseneide Lima, juntas formaram o Clube de Leitura e foram convidando amigos”.

As reuniões são mensais, no primeiro sábado do mês, com duas horas de duração. Por ser itinerante, vários são os locais de encontro, dentre bibliotecas, museus, teatro, quintais, sítios, orquidários, praia, bares, praças e casas de amigos. Os integrantes indicam e votam nas obras a serem lidas, dentre elas, seis livros de literatura cearense. Em razão da pandemia, os encontros têm ocorrido de forma virtual.
Quando da leitura de autores cearenses, por vezes, o próprio autor participa da reunião. Já marcaram presença: Stélio Torquato, Lourdinha Leite Barbosa, Carlos Vasconcelos, Jorge Pieiro, Nezite Alencar, Zélia Sales, Nice Arruda, Raymundo Netto, Lucirene Façanha.

No quinto ano de aniversário do Clube, esta que vos escreve será a homenageada, com a leitura do livro Siara: uma lenda de amor.

O Clube surgiu de uma paixão, de um sonho que se tornou realidade, com dezenas de enriquecedores encontros, plenos de alegria, trocas de ideias, participação em bienais do livro, festivais, saraus...

Dessa contagiante história de amor aos livros e à leitura, muitos fazem parte, pelo que ouso mencionar alguns, citados nos escritos da própria Cris Menezes: Mileide Flores (anfitriã no Quintal Cultural), Alque, Simone, Tetê, Inês, Dudu, Leonília, Fátima, Espedita, Terciana, Lucirene, Glória, Zélia, Raymundo Netto. O Clube Ponto de Leitura Itinerante, nos mostra que sempre haverá espaço para a leitura e a literatura. Sempre haverá espaço para a paixão, o amor, o sonho, a esperança, a amizade… Sempre.



 



 

"Telhado de Vidro", de Raymundo Netto para O POVO


 “Meu amor, não é o que você está pensando...”

Essa afirmação tão ridícula quanto a outra de “nunca ter acontecido comigo antes” saiu da boca de um perplexo Aquiles quando descoberto em flagrante.

Era alta madrugada. Odisseia acordou e deu pela ausência do marido na cama. Estava ele num canto do quarto, olhar vidrado na tela do celular, mordendo os beiços com apetite, o que ela constatou pela luminância do aparelho em seu rosto.

Agora, Aquiles gaguejava, agarrado fortemente ao celular, enquanto a colérica mulher, fazendo uso dos poderes concedidos pela bíblica curiosidade feminina, o arrancava violentamente de suas mãos, para depois perceber, com inusitada frustração, que o objeto daquela atenção não era a suposta pornografia, mas, sim, apenas um gamezinho desses quase infantis. Mais inocente do que isso, só se estivesse embalando um nenê. Desconcertada e hesitante, ainda o menosprezou: “Um cabra velho desses, acordando de noite para ficar com joguinhos? Tenha vergonha, seja homem. Pensei que era mulher pelada!”

O marido, lenta e silenciosamente, escorregou pela colcha da cama, se enrolou com um pedaço de lençol permitido pela ofendida esposa – que ainda resmungava – e, em posição fetal, fechou os olhos e adormeceu.

Pela manhã, à mesa do café, Odisseia não perdoava. Ria-se, zombava de Aquiles, e dizia, balançando a caneca no ar: “Claro que você não pode ter disposição para trabalhar. Passa a noite agarrado a joguinhos eletrônicos... Vou te contar, viu?”

Um sábado, cumpria ela o ritual de suas tardes de salão de beleza, quando, na falta de assunto, desabafou com alguma graça e descontentamento aquela história para as amigas. Elas caçoaram do marido: “Como é bobo o Aquiles, gente...”.

Com pouco, no atávico confessionário das madeixas, as clientes começaram a dar pitaco na vida da Odisseia e, curiosamente, a revelar histórias, naquele contexto, engrandecedoras dos feitos de seus infiéis maridos que, ao contrário do abestalhado Aquiles, eram bem ousados. E não se restringiam à pornografia, ao sexo virtual, troca de nudes ou encontros às escuras, esses fetiches bem anos 90, mas à presencialidade da sem-vergonhice institucional mesmo, envolvendo casos de affair com belas e magérrimas mulheres, supostas viagens de negócios convertidas a férias conjugais em praias paradisíacas, as faturas intermináveis de cartões de crédito com penduricalhos às amantes, as escapadelas do serviço com a colega de trabalho para motéis – cumprindo a máxima “Antes de tarde, do que nunca” –,  os frequentes desaparecimentos, após um suspeito banho de colônia, em clubes de uísque, partidas de futebol ou de cartas com os “amigos” todas as sextas, a coleção de B.O.s por “roubo” de aliança e celulares, entre outros casos bizarros da mais pura sacanagem matrimonial.

Enquanto todas gargalhavam sob as escovas atentas dos pacientes cabelereiros, superiora, alguém ainda sentenciava: “Eu acho é bom. Assim ele me deixa em paz!”

Odisseia esboçava um sorriso de pose, mas estava pasma e, ao mesmo tempo, sentia-se humilhada, ali, no centro da arena das mais tórridas aventuras. Interrompeu o tratamento, “esquecera uma panela no fogo” e correu para casa. “O que as amigas pensariam dela?”

Qual não foi a sua surpresa, quando, ao entrar aos prantos no quarto, encontrou Aquiles com calcanhar e tudo no mais idílico pelo, agarrando os seios fartos e então ofegantes de Felicidade, a diarista. Assim, o marido saltou rapidamente aos pés da esposa, confirmando o seu tradicional script: “Meu amor, não é o que você está pensando...”

Odisseia rebentou um sorriso, colocou a bolsa novamente no ombro, deu meia-volta e saiu correndo ao salão para contar a novidade: “Eu acredito, amooor... Eu acreditooooo...”



domingo, 14 de fevereiro de 2021

"Artes & Ofícios", de Pedro Salgueiro para O POVO


Em nossa infância (na pequenina Tamboril dos anos 1970) vivíamos no Bairro das Pedrinhas, que era bem simples e no qual só existiam, quando lá chegamos, umas 7 famílias. Fomos morar numa ruazinha ao lado de 2 casais de tios; e, ao redor desse trio de casas sem cercas entre os quintais e um terreiro amplo que se estendia até os fundos de uma antiga maternidade, reinávamos quase 30 crianças (ainda hoje erramos a contagem dos muitos primos) entre brincadeiras, idas à escola General Sampaio e visitas diárias ao casarão dos avós maternos, que moravam no Centro.

O mais espantoso, visto da distância de hoje, é que essa multidão de meninos e meninas fora sustentada por pais muito pobres: um pedreiro, um ferreiro e um sapateiro, que mantinham sempre um roçado para ajudar na alimentação (sem falar nas sacrificadas mães, que tinham de dar conta de tudo no dia a dia dessa imensa legião): dos 10 filhos do pedreiro Luis Petronílio, apenas 1 perseverou na profissão do pai; dos 9 do ferreiro Zé Inácio, nenhum seguiu batendo ferro; e dos 6 do sapateiro Arimatéia Salgueiro, quem quis alisar sola que nem meu velho?

Essa antigas profissões têm sobrevivido a duras penas, quase não se encontra mais um ferreiro para confeccionar foices, enxadas ou armadores, isso tudo se compra nas casas de ferragens ou mesmo nos supermercados, como se não existisse mais a figura fuliginosa do mestre araponga. Ainda hoje guardo na memória o bater de ferro e o roncar do fole e o chispar do fogo da oficina do meu tio Zé (na mesma rua havia a oficina do mestre Toquinho); dos antigos sapateiros só tenho notícia do seu Zé Manela, ainda na ativa, e do artesão Anastácio Cícero (que, pelo adiantado da idade, já não trabalha), quando tudo que se calça é comprado (também como se fosse produzido por milagre) nas lojas, abstraindo a figura curvada dos nossos lambe-solas de antigamente, a exalar o delicioso cheiro dos couros, vaquetas e colas. Os pedreiros não, estes continuam firmes e fortes, aumentaram em número e qualidade, são disputados por todos para erguer e conservar casas e prédios comerciais.

Porém os ofícios que mais me encantavam quando menino eram os “carregadores d’água” em seus jumentinhos cheios de canecos de madeira dependurados em ganchos de ferros nas cangalhas escanchadas dos sofridos animais (quem da minha idade não se lembra de seu Dãêta, Izim e Quiza choteando atrás de cacimba boa pros lados do Cuandu?) e, também, a profissão rara (esta, sim, a que mais me impressionava) dos “espanadores de tetos” com suas vassouras de cabos compridos a tirar casas de aranhas, ninhos de pássaros e até cobras dos frechais altíssimos das velhas casas: recordo bem de seu Antônio Roseno varrendo ao contrário tesouras e cumeeiras do casarão do meu avô Chico Inácio; mas inesquecível mesmo era avistar seu Antônio Dino (mais conhecido como Sembereba), com seus quase 2 metros de altura, vindo lá das bandas do Papoco para espanar com seus vassourões gigantes os muitos casarios da cidade, parando em cada calçada para contar histórias mirabolantes, tiradas engraçadas, com seu vozeirão de gigante, no ombro um imenso capo de vassoura cuja ponta da frente já se encostava à parede do mercado e a de trás ainda vinha na Grota da Mijada, na entrada da rua.



 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

"A Rede", de Raymundo Netto para O POVO

 

Cansado de ouvir os reclamos da mulher todos os dias à beira do fogão, Zé Panapanã, que acabava de chegar da lida na roça, ainda salgado em suor e com as pernas “à milanesa”, largou a enxada e mergulhou na primeira rede que encontrou no alpendre.

Quando pronto o almoço, não se buliu. Nem quando a mulher, insistente, sacudia o punho daquela rede: “Tá morto, Zé? Ôxe, nem pra comer se mexe? Avia!” E nada.

Poderia ser birra, o Zé era teimoso e ao mesmo tempo não tinha ambições, nem as pequenas, maisqueria o sossego do que tudo no mundo. Dali não sairia, nem para comer, para ir ao banheiro, pitar seu cigarrinho ou dormir.

A mulher se preocupou, mas achava que o turrão não resistiria à frieza cortante da noite. Porém, ao acordar, ela o encontrou ainda mais embiocado, não se vendo nem uma brechinha do homem na rede: “Vai trabalhar hoje, não, preguiçoso? Aqui não tem café pra gente dorminhoca, viu?” Não adiantava. Por mais que Solange berrasse às franjas da rede, o Zé não dava um pio. Dias depois ela decidiu consultar o farmacêutico da cidade que, na falta de outro doutor, poderia ter com o marido: “Tá custando dentro da tipoia, seu Augusto. Não levanta pra nada, nem pra comer, nem pras necessidades. Deve de tá doente... mas não fala nada...”

O farmacêutico estranhou a história e, por curiosidade, descambou a visita.

Chegou batendo sonoras palmas no batente da casa, como se não soubesse estar logo ali, recolhido na rede, o marido de Solange.

Arrastou um tamborete, tentou puxar conversa, sem sucesso. Perguntou se sentia dor, se havia diarreia, alguma anemia, dificuldade de respiração. Com esforço, vez ou outra ouvia um sussurro, uma espécie de “deixe estar” ou coisa parecida. Puxava o pano da rede tentando abri-la para examiná-lo e não conseguia. Já irritado, porém percebendo a aflição da mulher, receitou algumas mezinhas: “Deve ser somente alguma verminose associada à cisma mesmo. Paciência.”

Todavia, o certo é que nem Solange conseguia que o Zé tomasse qualquer coisa, como nem aqueles poucos sussurros se ouviam mais. Ela apelaria, então, ao jovem pároco local. Ele, de cara, denunciava a ausência divina no coração daquele homem que, inclusive, nunca pisara a soleira da igreja e não cumpria sequer com os seus sacramentos.

Em uma primeira visita, tentou extrair, inutilmente, uma tal confissão. Depois, clamando aos surdos céus, o provocou a levantar-se dali, ameaçando-o até de excomunhão. Nada! “Está endemoninhado, só pode. Contra as forças do Todo-Poderoso ninguém pode, dona Solange. E como deixar de atender a uma esposa tão amável, caridosa e temente a Deus como a senhora? Só endemoninhado!” E abraçava àquela mulher, que nem tinha ideia de que era aquilo tudo, e cuja face pousava agora menos inocentemente na sacra batina quase tão cerrada quanto a rede do Zé.

No domingo, uma romaria se quedava em torno da encolhida rede de Zé Panapanã. Dezenas de fiéis da paróquia, empunhando missais, velas de todos os calibres, terços e rosários, cantavam hinos e rezavam pela cura do marido de Solange, que já trazia ares de viúva, mas uma viúva bem fornida, disposta, aparentemente melhor do que antes da crise, sempre ao lado do padre, cuja oratória – confessava – lhe causava um certo frenesi.

Foi ali, naquele instante divinal, que alguém apontou de joelhos para a rede que se abria lentamente. Todos, boquiabertos, se abraçando ou fazendo o sinal da cruz, testemunharam sair da fresta aberta da rede uma borboleta cujas asas batiam incessantes, carregando a criaturinha para onde avermelhava o horizonte e para longe daqueles barulhosos vizinhos.