segunda-feira, 28 de setembro de 2020

"Nataly Pinho, a ilustradora", de Pedro Salgueiro para O POVO


Nataly Pinho
 

Jamais cogitei escrever deliberadamente “para” crianças, embora sempre tenha lido com prazer autores especialistas ou eventuais do gênero; talvez por achar, ingenuamente, que teria que fazer concessões temáticas e estilísticas para agradar ao público ledor “de menor”. Claro que era não só preconceito, mas principalmente ignorância sobre o assunto.

Um amigo me alertou sobre alguns contos meus em que meninos eram protagonistas, pensei vagamente em reuni-los num livrete pretensamente infantojuvenil, cabotinamente com a intenção de aproveitar a lucrativa onda de escrever para alunos; meu pudor me salvou mais uma vez, resisti até agora quando a Editora Moinhos, capitaneada pelo Nathan Matos, resolveu juntá-los no volume Meninos & outros demônios.

Mas um pouco antes disso criei coragem e retomei certa história que há anos boiava na cabeça, uma improvável amizade entre um garoto de classe remediada e outro que morava no Campo do América, comunidade pobre incrustada milagrosamente no meio dos bairros burgueses de nossa sonsa loirinha destrambelhada pelo sol: desse novelo saiu Beto bola, Beto bala.

Comecei a história, que foi crescendo, virando páginas e ganhando vida própria; e logo em seguida, muito inseguro com o tema e a linguagem, passei a mostrá-la para amigos escritores, e foi numa visita ao poeta Alves de Aquino que meu texto chegou às mãos dessa fantástica artista-plástica Nataly Pinho, ainda cursando Letras na UFC e titubeante em se dedicar de corpo e alma à pintura, muito ligada à faculdade de Letras e, posteriormente, ao magistério no IFCE, onde é uma dedicada professora no Aracati.

Se eu estava temeroso em relação à narrativa, perdi toda a insegurança quando vi os esboços de ilustrações feitos por ela; daquele momento em diante tive certeza que o livro um dia sairia, e certamente “pregados” naquelas ilustrações, que “ainda precisavam de uns retoques”, segundo a minuciosa professora-pintora que nasceu em Fortaleza e se criou em Pacajus.

Da época desse primeiro contato até hoje, a história e os desenhos (competentemente fotografados pelo Pedro Humberto) caminharam juntos por mais de dez anos, entraram na fila de 2 editoras (uma delas me retornou com o “boneco” pronto, mas com outras ilustrações), quando participou de um edital da SecultCE e finalmente virou livro, com um detalhe de que no projeto foram utilizadas todas as pinturas feitas para serem escolhidas apenas algumas, tão empolgado fiquei com a arte da ilustradora.

Agora os 2 autores assinamos a capa, pois – nesse casamento de texto com ilustração – ambos merecem o nome de coautores da obra, visto que andaram juntos desde as fases titubeantes de esboços até esta dolorosa de espera do término da pandemia para que se possa fazer um discreto lançamento conjunto, quando farei questão que Nataly Pinho esteja ao lado autografando, em parceria, esse sofrido, porém prazeroso, projeto de mais de uma década de espinhosa caminhada.



sábado, 26 de setembro de 2020

"Carmélia", de Raymundo Netto para O POVO

 

“1, 2, 3 Carmélia! 1, 2, 3 Carmélia!”

A criançada, como em quase todas as tardes dominicais, se reunia no meio da praça ensombrada de árvores pacatas a enredar-se nas mais diversas brincadeiras infantis, sendo, entre todas, a mais cobiçada a de pique-esconde. Porém não o era para Carmélia, uma menininha desengonçada, magricela e deveras distraída, que mesmo portadora do verme filosófico e do hábito de guardar latas, sentia a curiosa necessidade de convivência com outros, talvez para ter a certeza de que existia de verdade ou que ainda estava viva.

Contudo, havia naquela brincadeira uma frustração intolerável: era sempre a primeira a ser encontrada! Quando isso acontecia, padecia horrores, e a partir de então, era vê-la ali, no pique, sentada inerte como um poste, assistindo à tardia chegada dos outros participantes. Alguns até conseguiam, com uma incompreensiva habilidade, chegar até o ponto e se salvar. Outros poderiam também ser encontrados pelo pegador, mas só após muito tempo, o que alargava a agonia da menina, sentindo-se diminuída, incapaz, ao contrário dos demais, eufóricos à espera daquele derradeiro redentor a gritar, para desespero do pegador: “1, 2, 3 Salve Todos!” Comum era ela voltar para casa arrasada, se jogando entre as suas latas e pensando alto, num ímpeto belchiórico de amar e mudar as coisas: “Eles verão... no domingo será diferente!”

Assim, naquela tarde, estava mudada – embora ninguém a notasse –, confiante, com ares de segredo. Não sabiam, durante a semana, Carmélia mapeara aquela praça de ponta a ponta, todos os espaços, buracos e esconderijos. Daí, como planejara, enquanto a pegadora fechava os olhos e contava, aos berros e ligeira, até 100, ela já sabia onde seria o seu perfeito escondedouro.

A menina era toda entusiasmo e animação. Ali, em completa escuridão, podia ouvir os passos e a correria seguidos da sentença: “1, 2, 3 João! João!” O menino deveria estar chorando de ódio, pensava. Era o primeiro. Não ela, mas ele. Com o tempo, ouviria um a um dos jogadores sendo denunciados pela pequena pegadora que, provavelmente, já estranhava o seu inexplicável paradeiro.

Roendo as unhas trêmulas, olhos imóveis na sua própria emoção, estampava um sorriso malino: “Não vão me encontrar, não vão!”

Passaram horas, dias, anos e ela prosseguia na brincadeira. Aquele cativeiro quase não a comportava mais, tinha fome, todavia gritava-lhe o espírito vingativo: “Acham que eu sou boba, mas não sou besta não. Eles vão ver...”

Um dia, entediada e incomodada com o silêncio, olhou com cuidado por cima de seu esconderijo e não viu ninguém. Estranhou também não encontrar a árvore escolhida como ponto do pique-esconde. Levantou-se com vagar e mesmo sem saber onde bateria o pique, pulava alto, as lágrimas cascateando nos olhos, numa alegria de circo: “1, 2, 3 Salve todos! Salve todos!... eu ganhei, eu ganhei!” E nenhum de seus coleguinhas apareceu. Ali, apenas alguns pedestres, garis e os pombos se admiravam daquela moça comprida e seminua a balançar o corpo com singular desembaraço.

E foi assim, tropeçando, às gargalhadas e com o coração retinto, que chegou em casa e encontrou a mãe, magra e envelhecida, a colocar a mesa. Vendo a filha despontar na soleira, olhou para o relógio da parede: “Até que enfim, Carmélia, a sopa já estava esfriando.”



segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Lançamento de "Quando o Amor é de Graça!", de Raymundo Netto, no Festival Letras & Músicas (25.9)


Clique na imagem para ampliar!

Festival Letras & Músicas

Data e Horário: 25 de setembro de 2020, às 16h30

Transmissão On-Line

festivalletrasemusicas.com.br

  

Novo livro de crônicas do escritor Raymundo Netto

chega às livrarias apaixonando os leitores.


“Num contraste essencial das coisas verdadeiras,

o amor é de graça e, por isso mesmo, não sai barato!”

(Raymundo Netto, Quando o amor é de graça!, pg. 10)

 

Em Quando o Amor é de Graça! (Ed. Dummar), de autoria do escritor cearense Raymundo Netto (1967), estão reunidas cerca de 50 crônicas, publicadas inicialmente entre 2007 e 2017 no jornal O POVO, em que o amor nos fala baixinho ao pé do ouvido.

Desta vez, o leitor é flechado por um cupido despedaçado, imagem que ilustra a quarta capa do livro, e que nos dá pistas de que muitas vezes histórias de amor não nos são tão românticas quanto parecem. Despedaçado, mas sem perder o humor característico dos seus textos cronísticos, Netto surpreende ao trazer com leveza assuntos, sobretudo, fugidios como a separação, a morte e as desventuras de amores não correspondidos ou findados prematuramente.

Para quem já acompanha o autor nos periódicos cearenses, a obra é um convite para a leitura despretensiosa e apaixonante como um flerte juvenil. Mas para quem ainda não se aventurou nas narrativas do autor, este também pode ser um ótimo primeiro encontro. Afinal, a narrativa curta permite uma leitura mais rápida e fluída de quem já nas primeiras páginas reconhece o caprichoso trabalho linguístico e inventivo do escritor.  É paixão à primeira vista!

A obra, que foi vencedora do Edital de Incentivo às Artes em sua categoria, conta ainda com apresentação do jornalista, poeta e editor Camilo Pestana e ilustrações do artista plástico Jabson Rodrigues. Prepare o seu coração e boas leituras!


SERVIÇO

Livro: Quando o Amor é de Graça!

Editora: Dummar (EDD)

Gênero: Crônicas

Onde comprar: Livraria Lamarca (Benfica, Fortaleza) e Livraria Dummar (na sede do jornal O POVO, Fortaleza) e também, para todo o país, na livraria digital livrariadummar.com.br

Preço: R$ 38,50

 

SOBRE RAYMUNDO NETTO

Jornalista, escritor, editor e produtor cultural. Entre as obras de ficção, é autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, ganhador do I Edital de Incentivo às Artes da Secult, de Os Acangapebas (contos), ganhador do Prêmio Osmundo Pontes da Academia Cearense de Letras e do Edital de Literatura da SecultFOR, de Crônicas Absurdas de Segunda, ganhador do Edital de Incentivo às Artes da Secult/CE e finalista do Prêmio Jabuti 2016 e de Quando o Amor é de Graça! (crônicas), ganhador do Edital de Incentivo às Artes da Secult/CE. Entre seus ensaios: Cronologia Comentada de Juvenal Galeno (coleção Nossa Cultura da Secult-CE), Centro: um coração mal-amado (coleção Pajeú da SeculFOR), Padre Cícero: o filme (coleção Memória do Audiovisual Cearense da FDR) e Nilto Maciel: perfil biográfico (coleção Terra Bárbara das EDR). Entre os infantojuvenis: A Bola da Vez, A Casa de Todos e de Ninguém; Os Tributos e a Cidade; Boto Cinza Cor de Chuva, pelas Edições Demócrito Rocha. Cronista convidado do caderno “Vida & Arte” do jornal O POVO desde 2007. Coeditor das revistas CAOS Portátil, Para Mamíferos e curador e editor da revista Maracajá (FDR); Coordenador de Políticas do Livro e de Acervos da Secult, responsável pela coordenação editorial das suas coleções (2008-2011), membro do Conselho Curador da IX Bienal Internacional do Livro do Ceará, redator e elaborador do Prêmio Literário para Autor(a) Cearense, coordenador da I Feira do Livro do Ceará em Cabo Verde e membro da Associação Amigos do Museu do Ceará. Recebeu a Medalha Boticário Ferreira em 2012. Desde 2009, mantém o blog AlmanaCULTURA. É gerente editorial e de projetos da Fundação Demócrito Rocha (FDR).





 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

"Os Acangapebas", por Grecianny Carvalho Cordeiro


Crítica literária nunca fui, tampouco pretendo vir a ser. Sou apenas uma leitora inveterada e apaixonada que não se contém quando lê um livro que adora, e por isso mesmo deseja compartilhar seu encanto com outras pessoas.

Os Acangapebas, que em tupi-guarani significa “cabeça-chatas”, de autoria de Raymundo Netto, é justamente o tipo de livro que merece ser compartilhado.

O autor possui um estilo bem original; brinca com as palavras com elegância associada a uma leveza impressionante, capaz de inserir o leitor dentro de cada narrativa como se fora um protagonista. E então nos encontramos e nos perdemos em cada personagem; em cada cena, tão nítida em nossa imaginação que parecemos vivenciá-la; nos mais variados enredos cotidianos com desfechos surpreendentes; ao final, constatamos: a vida é realmente assim.

O pescador orgulhoso pelo filho escolher seguir sua profissão (“Luzeiros”); Cícera, a mulher que perdeu sua identidade com o casamento e não mais se reconhece (“Álbum de Fotografias”); Raimundo Arievaldo, o feliz dançarino que não perdia uma boa dança de salão (“O Tio Dançarino”);  a enfastiada rotina de um homem que quando saía de casa era “uma vontade de ir-se e de chegar-se” (“Em Pregos”); a angústia de alguém em depressão (“Portas Fechadas”); a desimportância de uma idosa, recolhida como lixo (“O Gato da Vovó”). Especialmente marcante é “Gêmeas”, sobre o pai que de tudo fazia para agradar as filhas que se rivalizavam, obrigando-o a uma difícil decisão diante de uma tragédia. Um pai “com a frágil e única esperança de não lhes ter decepcionado mais uma vez.”

 E quando imaginamos que leremos somente crônicas, o “Intermezzo” abre passagem para contos, igualmente magistrais. Destaco aqui, a emocionante história do palhaço Cambalhota, a guardar tantas dores atrás de sua máscara.

Parafraseando Raymundo Netto em “Cadeiras na Calçada”, confesso que, usando da prerrogativa de leitora, fiz uso dessa licença para mergulhar nas entranhas do pensamento e na alma de cada personagem a mim apresentados de uma forma tão encantadora.

Os Acangapebas não é livro para ler com pressa, é para degustar, compassadamente, delicadamente...

Grecianny Carvalho Cordeiro

Promotora de Justiça e romancista




domingo, 13 de setembro de 2020

"Ora, Sapos?", de Raymundo Netto para O POVO


 Pereira gastava muito dinheiro com dermatologistas.

Há tempos, inexplicavelmente, assistia à sua pele engrossar, descamar, tornar-se áspera e grudenta. O porquê daquilo ninguém sabia. Enquanto isso, o homem mais parecia um gato de tanto se lamber e se esfregar com pomadas, cremes, loções e sabonetes por horas intermináveis, e nada resolvia aquela aparente tragédia doméstica. Para piorar, em uma noite sinistra, não conseguiu dormir. Uma coceira profunda tomava-lhe o corpo e o juízo. Na manhã seguinte, ainda torpe, ao confrontar o espelho... Bufo: havia virado um sapo!

Naquele momento, sentiu-se aliviado, pois temia ser algo mais sério. Afinal, a coceira passou e o mistério estava ali resolvido. Retirou o pijama e, ainda diante do espelho, admirava-se. Pensou: “Gosto do verde...” Foi quando sentiu uma sede danada e correu para debaixo do chuveiro, onde se postou por prolongado tempo.

Após o banho, tentou vestir-se para ir ao trabalho, mas sentindo-se sufocado colocou apenas a gravata e o chapeuzinho, saltando apressado para tomar a sua habitual condução.

Nem é preciso dizer o quanto o coitado penou. Não é fácil enfrentar as extensas filas, o empurra-empurra e a multidão que entope os transportes urbanos. Com sua estatura e aquelas patas não conseguia se segurar em canto nenhum. Apenas por um milagre não foi pisoteado no bonde pelo populacho insensível às suas debilidades.

No escritório não seria diferente. Recriminaram o seu atraso e a deselegância de seus trajes. Também se tornou alvo de chacota alheia, logo apelidado de “Pereireca”. Aliás, com os novos e grandes olhos, enxergava melhor do que antes e descobria os colegas que lhe apontavam o dedo, riam-se dele e apostavam naquela demissão.

Pereira sentiu-se humilhado, derrotado, solitário como uma freira. Como nunca, sentia na pele verruguenta um constrangimento moral próprio das coisas desnecessárias da vida.

Seu retorno para casa naquele dia foi devastador. Não havia sapo mais desanimado no mundo. Foi quando passava pela calçada a Rosie, uma moça de cabelos curtos, piercing no nariz e braços tatuadamente coloridos. Ao ver aquele sapo, parnasianamente aguado, arrastando a maletinha, seu coração ambientalista e nerd partiu-se em cacos. Soluçava o Pereira com o dedo em riste e o lábio inferior tremulento: “Meu pai não foi rei!”

Empática, Rosie o abrigou em seus braços sinceros, aduziu a face anfíbia aos seus lábios e admitiu-lhe um beijo largo e quase escatológico.

Daí, aconteceu o que acontece todos os dias quando as mulheres beijam os sapos: eles desencantam! Só que, em vez de príncipe, havia apenas o nosso Pereira.

A Rosie, que não era muito afeita a homens e se dava melhor com os bichos, ali mesmo rompeu a relação, bateu as asinhas e venceu o horizonte para sempre.

Só posso dizer que o Pereira um dia encontraria alguém que o amasse do jeitinho que ele era, homem ou sapo, e que nas noites de chuva, após tórrido instante amoroso, poderíamos ouvi-lo a coaxar, enquanto comia moscas, na beira do rio.




sábado, 12 de setembro de 2020

"A Hora do Pobre", de Pedro Salgueiro para O POVO

 


O Presidente Vargas, nosso simpático PV (o estádio de futebol mais querido do Ceará), virou um importante hospital no combate ao Covid-19. Simples e aconchegante, possui a vantagem de estar situado num bairro central, o Benfica, mais precisamente na Gentilândia, capital amorosa do citado bairro. Amado por todos, mas bastante negligenciado pelo Poder Público e mesmo pelos próprios frequentadores, vivia rachado em suas estruturas de cimento, feio e sujo por fora e por dentro, uma lástima: seus muros e bilheterias serviam de banheiro público para os feirantes da pracinha ao lado.

Porém todos se sentiam bem, apesar da sujeira e desorganização que reinavam. Era, podia se dizer, um estádio popular, com tudo de bom e de ruim que isso possa significar. Preços mais baixos, acesso facilitado pra carros, bicicletas, e até mesmo a pé, pois chegavam turmas de torcedores de vários bairros em caminhadas, verdadeiras peregrinações.

Além da simplicidade, acesso facilitado, barzinhos próximos, “churrasquinhos de gato” à vontade, me comovia de verdade o advento da “hora do pobre”, quando o portão lateral situado na rua Paulino Nogueira era aberto aos mais necessitados, estudantes e até vendedores ambulantes, faltando uns quinze minutos para o término da partida.

Uma multidão se formava ao pé do muro da Escola Técnica a olhar impaciente e alguns mais afoitos começavam a esmurrar a negra lâmina de aço mal começava o segundo tempo. De vez em quando um guarda vinha à calçada e olhava feio para os apressados, levando uma costumeira vaia.

Era o horário exato em que eu passava voltando da faculdade, então me escorava no poste e puxava conversa a respeito do andamento do jogo; os que tinham radinho de pilha nos informavam sobre os lances e gols, sempre exagerados pela voz estridente dos narradores. Em muitos anos fiz amizades com diversos frequentadores daquele ritual de paixão pelo futebol, conhecendo alguns até pelo nome. Quando finalmente se abria a “porta da esperança” corríamos, cada um por si: quem tinha bicicleta levantava-a acima da cabeça e seguia desajeitado, quem carregava apenas o radinho levava vantagem na disputa dos últimos espaços ao pé do alambrado.

Dependendo do resultado do jogo podíamos ser recepcionados pelos torcedores que já estavam no estádio de maneira completamente diferente. Vezes havia em que éramos vaiados sem dó nem piedade, chamados de “lisos”, “pobreza” e até presenteados com sabugos de milho, latas de refrigerante, líquidos suspeitos; em outras raras ocasiões chegávamos a ser recebidos por palmas, geralmente quando o resultado era favorável.

Naturalmente não havia tempo para procurarmos lugar na arquibancada, queríamos logo era chegar à primeira, segunda ou terceira fila ao pé do alambrado. A confusão de cabeças se movendo lateralmente tentando desviar as outras à frente na busca do lance de perigo era um balé de loucos, as vozes aceleradas dos diversos locutores formavam uma sinfonia confusa de ruídos; mas os olhos acesos, alegres ou frustrados buscavam até o último fiapo do derradeiro segundo de desconto alguma esperança ou alívio.

Depois do apito final, desciam desorganizados os afoitos torcedores de “cima”, já os de “baixo” apenas se viravam, tímidos, procurando a saída. Então todos, agora indistintos e misturados que nem cupins, seguiam juntos na direção da saída.


P.S.: Depois da reforma do nosso querido PV desapareceram, quase que por encanto, a maioria dos “pobres”; hoje o asséptico estádio parece destinado apenas à remediada classe média: a classe mais baixa persiste somente em forma de vendedores, cambistas e descuidistas que insistem em participar de um espetáculo que cada vez menos é feito para eles.




quarta-feira, 2 de setembro de 2020

"Herói. Morto. Nós", de Lourenço Diaféria


  [Crônica publicada em 1º de setembro de 1977]

 

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher.

Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que – como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem – não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos – mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis – tarde demais.