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Das mais variadas formas de narrativas, confesso
ser apaixonado, primeiramente pela crônica e, em seguida, pelo conto. Embora a
"prima pobre" seja minha grande paixão, o conto se revela ao meu ser
como um dos mais belos amantes. E o que é mesmo que mais me atrai no conto? É
sua capacidade de dizer tudo o que se pretende com a maior economia possível de
palavras. Ora, se não é Tchekhov quem nos diz que se uma determinada arma
não será usada no decorrer da narrativa, por qual razão mantê-la na história?
É claro, porém, que nem todo contista consegue
colocar em prática a ideia de Poe (1809-1849), quando discorre sobre a
necessidade que deve existir entre o tamanho do conto e a reação que ele
consegue causar em quem o lê. Eis a famosa "unidade de efeito"
defendida pelo autor norte-americano. Para ele, a obra precisava ser dosada,
para que a excitação provocada pela leitura perdurasse por um determinado
espaço de tempo. Dessa forma, se o texto fosse muito longo, o efeito (a
excitação) seria diluído. A unidade de efeito seria alcançada, então, quando de
uma só assentada, nós, leitores, déssemos conta daquilo a que se propôs o
autor.
Não podemos afirmar que o ponto de vista de
Allan Poe não proceda. Contudo, tendo em vista a correria para o nada do nosso
dia a dia, torna-se quase impossível lermos o que quer que seja duma assentada
só, quando dificilmente temos tempo para sequer sentar. Pela teoria proposta
pelo contista, O Alienista, de
Machado de Assis, jamais seria um conto, como não o é, mas uma novela. E, nem
de longe, podemos reproduzir e aceitar a proposição de Mário de Andrade, quando
diz que "um conto é aquilo que o autor chama de conto". Mas o conto,
e aí concordamos com Cortázar, está para a fotografia assim como o romance está
para o cinema. O conto é o instante, narrado com o maior poder de objetividade,
sem a necessidade de "floreios" de qualquer espécie. É o que
conseguimos perceber nas narrativas contidas em Os Acangapebas (2012), livro de contos do escritor Raymundo
Netto, que se insere na leva dos autores recentemente surgidos no Ceará.
Raymundo Netto incursiona com considerada
desenvoltura pela literatura infantojuvenil, pelo romance e pelo conto. Estaria
ele também flertando com a poesia? É bem provável que sim! Vencedor de inúmeros
prêmios e figura de extrema relevância na Cultura da cidade de Fortaleza, o
referido escritor brindou a todos, em 2012, com as narrativas contidas no seu Os Acangapebas.
O livro saiu pelo selo "Fundo de
Quintal" e traz trinta e nove contos, sendo vencedor do Edital de
Incentivo à Literatura da Secretaria de Cultura de Fortaleza, de 2007, e do
Prêmio Osmundo Pontes de Literatura da Academia Cearense de Letras, de 2011. E
você, caro leitor, pode estar se perguntando que diabos significa
"acangapebas". Pois bem, para poupar-nos o trabalho de sairmos à caça
de tal significado; na abertura da obra, o próprio autor já nos instrui,
dizendo tratar-se de um termo oriundo do Tupi-Guarani, sendo, "acangapeba"
o mesmo que "cabeça-chata". De acanga, cabeça; peba, peva, chata. Trata-se, é óbvio, de uma
clara alusão a alcunha pela qual são tratados os cearenses mundo afora. Isso,
no entanto, não implica em uma geografia, na acepção própria da palavra, seja
ela feita de gente, de terra ou de palavras. Longe disso! O que se tem, na verdade,
é uma espécie de topofilia, tal qual nos propõe Yi-Fu Tuan, ancorada nas
percepções, atitudes e valores do homem cotidiano na sua lida diária com o meio
ambiente, com a vida, com as coisas, com a comunicação ou com a ausência dela.
A epígrafe que abre o livro é de Dante
Alighieri, contida na Divina Comédia,e diz:
"lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": "Abandonai todas as
esperanças, vós que entrais" (tradução nossa). A escolha feita pelo
contista não foi à toa. Compreendemos que sua mensagem é deixar claro que
leitor deverá começar sua leitura de coração aberto, sem o pré-conceito que
costuma se ter frente à uma obra nova. Quando diz para entrarmos na leitura sem
esperanças, infere-se que não há receitas prontas para a feitura da literatura,
cabendo ao leitor descobrir os caminhos propostos pelos imbricamentos da teia
narrativa, sendo perfeitamente possível um estranhamento em qualquer um dos
sentidos existentes.
E assim sendo, a contística de Raymundo Netto
discorre sobre o amor, a vida e a morte por meio de uma simbologia que nos
remete à mitologia daltoniana. Se por um lado Dalton Trevisan construiu toda
uma simbologia que serve de arcabouço para sua literatura, Raymundo Netto
parece trilhar caminho semelhante. Dessa forma, o narrador de Os Acangapebas visita
espaços-lugares que são tão nossos, enquanto cabeças-chatas que somos. A
cidade, "O circo" (p.102) e "A bodega" (116), por exemplo.
E "Vassourando" (p.111), bem que poderia se chamar "Barrendo".
É perceptível a tentativa do autor em fazer com
que seu texto dialogue com outras obras, outros autores e outras ideias. Como
não lembrar, por exemplo, de Moreira Campos (1914-1994) em "Portas
fechadas" (p.51) ou ainda de Pedro Salgueiro, em "Cabelos azuis" (p.62)?
Ao propor tal aproximação, extremamente profícua, ao nosso ver, Raymundo Netto
demonstra estar em dia com as mais novas formas de ver, de sentir e registrar o
mundo.
No que diz respeito à presença recorrente de
símbolos nas narrativas d'Os Acangapebas,
há um mundo deles à espera de decifração. O gato, por exemplo surge em três
contos (p.21, p.31 e p.54); a mulher, em dois (p.31, p.34). Há ainda o sótão
(p.16), o estandarte (p.80), o espelho (p.83) e o relógio (p.90), entre muitos
outros. O próprio termo "acancapeba", que dá nome ao livro,
é eivado de uma imensa gama de possibilidades de compreensão. Contudo, cabe ao
leitor não se limitar àquilo que apenas se mostra, pois, como bem afirma
Fernando Pessoa: "tudo que vemos é outra coisa". Assim sendo, cabe a
esse leitor mergulhar e descobrir a imensidão do iceberg de interpretações
possíveis nas narrativas topofílicas contidas em Os Acangapebas.
E assim, leitura feita, tal qual acangapebas,
vamos nos chegando às janelas da literatura de Raymundo Netto. Através da sua
maneira de contar histórias, assistimos à novela, pedimos um cafezinho e quase
nos vemos escorados nas portas dos bares e dos cabarezinhos desse mundo de meu
Deus. E dessa forma, a leitura d'Os
Acangapebas de Raymundo Netto é como aquele amanhecer capaz de
despertar os passarinhos adormecidos nas nossas mentes em pífanos alegres, no
cheiro quente do cuscuz e do café, proporcionando mais luz, como nos diz
Goethe, para que não terminemos nossos dias a tiquetaquear a vida de forma
mecânica e quase absurda.
Carlos Carvalho é pesquisador e mestre em Literatura Brasileira, professor
da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Serão Central (Feclesc), autor
do livro de crônicas Memória de Peixe.
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