Escrita originalmente em janeiro de 2007.
Seria uma crônica sobre a chuva? Mais uma, dentre tantas, não
fosse o fato de que, ao entranhar a lembrança no pensamento, senti chover-me no
peito a chuvantiga. A quedar-me assim, comecei:
Numa das ruas do Monte Castelo,
seguia um barquinho de papel a correr-lhe pelas águas frias das coxias. Sem
pressa, sem pressa, chuá, chuá, imaginava: todas as aventuras do
mundo cabiam naquele barco a desmanchar-se lentamente enquanto vaguejante por
sobre um céu baço que parecia, na meninice, ser tão grande.
Nas calçadas, buscando bicas,
outros meninos e meninas saltavam felizes a tiritar, braços cruzados ao peito,
inda livre, crentes na simplicidade de uma vida a viver ainda distante e muita.
À praça redonda, as peladas nas
areias corriam entre pernas ligeiras. Os menores piscinavam no antigo chafariz
coberto em mosaicos vermelhos que nem vi crescer, assim como aquelas crianças.
Em volta, pretos guarda-chuvas
cumprimentavam-se com bons-dias domingosos; o peixeiro a cantar para as
freguesas aos portões; encimando os muros baixos, verdes em limos, as
buganvílias, afirmando um vai-e-vem, dançavam; os cães a ladrar o
estranhamento; as águas cortinavam, de cores, arco-íris na varanda; as
empregadas corriam a desroupar o varal: “Chega, menina!”; o cheirinho de terra
molhada entupia as narinas quando os respingos frios — vinham das venezianas do
quarto — jaziam no travesseiro; o tactac repenicado no telhado
acompanhava o grito do vizinho no alto do muro do quintal; o quintal avermelhecido
em acerolas.
Era manhã e na sala inda escura o
café esperava — passado no pano —, com leite, o pão francês quentinho e a
manteiga de lata.
O pai, a mãe, os irmãos: nunca a
mesa fora tão pequena.
Chovi com a chuva a tarde que
ribombava.
“Mundo, mundo, vasto mundo”...
Ah, se eu não me chamasse Raymundo, como vento gemeria, não em prosa, mas em
poesia, todo o vivido retrato que, só no escuro deste quarto, a rasgar os céus
azula-me o clarão, pela janela distraída do nublado coração.
Nenhum comentário:
Postar um comentário