Publicado originalmente em O POVO em 2008
No passado, eu afirmava com tolos ares de uma pretensa
certeza, que só me faria presente a casamentos e funerais quando
fosse o convidado principal. Meus amigos, a vida ensina: nem sempre cumprimos o
que dizemos; nem temos a obrigação de fazê-lo, porém, devemos, sim, falar menos!
Estava no Cemitério São
João Batista, a seguir com a família ao derradeiro cortejo de um amigo, quando
perto da “Alameda da Saudade”, percebi que alguém por trás de mim olhava, pelos
ombros, curioso. Era magro, moreno, cabeleira e farto bigode prateados, e,
sobre o narigão, um par de óculos redondos que não disfarçava os olhos míopes
piscantes. Ao pescoço, pendia a medalha de ouro recebida do rei d. Manuel II *
— mistérios d’além túmulo. Estava com os polegares enterrados no bolso do
colete e, descalço, brincava com os artelhos dos pés:
— “O Padre Eterno, segundo
refere a História Sagrada, tirou o mundo do nada, e eu nada tirei do mundo!”
Sem perder tempo com cerimônias
e apresentações — não que fosse necessário — pôs-se a matraquear:
— Sabe, quando eu era menino,
lá em Baturité, o padre Dantas, novo na cidade, precisava colocar umas cartas
no correio, só que ele não sabia onde ficava. Encontrou-me brincando na rua e
perguntou como fazia para chegar lá, e eu o ensinei. Satisfeito, o coitado logo
me convidou para fazer o catecismo na sua paróquia. “Mas para que, seu padre?”,
perguntei. “Para lhe ensinar o caminho do Céu, meu filho”... Aí eu falei para
ele: “Ora, ora, mas se o senhor não consegue chegar sozinho nem no correio!”
Indevidamente, rimos. Os familiares
do falecido passaram a nos reprimir com os indicadores cerrando os lábios, e, mesmo
assim, ele continuou:
— Você é daqui, mesmo?
Nasceu onde?
— No Ceará, felizmente! —
orgulhei.
— Mas felizmente para quem,
para você ou para o Ceará? Porque você sabe que para ser feliz no Ceará, é
preciso nascer burro, viver ignorante e morrer de repente!
Embaraçado pelo tom da
conversa, adiantei o passo, distanciando-me. Percebendo minha estratégia,
perguntou se estava me aborrecendo, ao que respondi, para a minha infelicidade:
— Ah, claro que não... Que
é isso, doutor? Pode dizer aí mais umas quatro besteiras...
— Ah, posso? Então lá vai:
Raymundo, Alves, Ferreira e Netto. Quatro besteiras das grandes, ouviu?
Prevendo uma resposta à
altura da grosseria, rápido, tentou emendar:
— Ah, sim, ia até me esquecendo
de falar... Eu li o seu livro, sabia?
— O senhor o leu? —
surpreendi-me.
— Sim, sim... Mas comecei
do final para ver se valia a pena perder tempo lendo o resto. — ele era um caso
sem jeito... — Olha, Raymundo Netto, também
tenho saudades das rodas de cadeiras na calçada. Mas, uma vez, eu morei numa
casa tão pequena, mas tão pequena, que parecia não ter o lado de dentro. E a cidade, então? Era tão miserável que nas
ruas a gente não encontrava o lado da sombra!
— E por falar em casa: ouvi
dizer que, após a morte de sua esposa, o senhor se casou com sua cunhada, é
verdade?, perguntei.
— Mas é claro, meu filho,
temos que fazer economia de sogra!
O caixão estava baixando à
sepultura, quando o padre, já incomodado, pediu, uma última vez, para que ele
falasse mais baixo, ao que ele rebateu, agitando os braços nervosos:
— E o senhor, seu padre, por
favor, fale mais alto! — demonstrando indignação, voltou-se para mim — Mas,
afinal, Nettinho, quem é o morto, mesmo?
— Bem, doutor Quintino, eu
acho que o morto é aquele que vai lá dentro do caixão...
Vinguei-me!
(*)
Quintino recebeu essa medalha, quando em viagem à Europa, das mãos do rei de
Portugal, como reconhecimento de seu
talento poético, mas, devido às más finanças, teve de vendê-la ao dr. Meton de
Alencar.
Quintino Cunha (24.02.1875 – 01.06.1943) nasceu em São Francisco de
Uruburetama (atual Itapajé), Ceará. Advogado, poeta e escritor ficou mais
conhecido pelo seu gênio para chistes e improvisos. Autor de Pelo Solimões (poesia – publicado em Paris, 1907), Diferentes (contos, 1895) e
outros.
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