Rachel de
Queiroz, uma flor marca a estreia amanhã da escritora Ana Miranda como cronista
do O POVO. Em entrevista, a autora de Dias & Dias apresenta as estampas de memória que deverão servir de mote para suas
crônicas.
Henrique Araújo especial
para O POVO
Se, num lance de ficção, a escritora
cearense Ana Miranda fosse suspensa por uma grua, esses equipamentos que alçam
as câmeras de cinema e captam a imagem sob ângulos inusitados, e levada a um
passeio por Fortaleza, um passeio que vasculhasse os quatro cantos da cidade e
proporcionasse uma panorâmica mas também acurada visão de cada recanto; e se,
passado o susto de enxergar-se sobrevoando uma metrópole que se esparrama
desmesuradamente, lhe fosse pedido um relato em forma de crônica, um texto que
misturasse suas impressões mais vivas da viagem aos pacotes de memórias que a
escritora tem da sua infância na Capital, o que esse relato reservaria aos
leitores? O que essa crônica traria do olhar da autora de Boca do inferno, Dias &
Dias, Desmundo e A última quimera?
A resposta vai na contracapa da edição
de amanhã, 3 de abril, do Vida & Arte.
É lá que Ana Miranda estreia como cronista em O POVO. Após três
anos de seu regresso ao Ceará, de onde saiu para fixar residência primeiro em
Brasília e depois no Rio de Janeiro, a escritora revela o percurso de sua
memória literária. Também estabelece um ponto temático fundamental: “Vai ser um
encontro entre dois seres, uma escritora e uma cidade, ela muito mais forte e
duradoura, mandando em mim, e eu apenas com o poder da palavra, da observação,
e da memória. Vamos ver o resultado”. A crônica inaugural celebra a memória de
Rachel de Queiroz (1910-2003), amiga da escritora, que também faz graça com seu
jeito especial de ser cearense. “Agora, aqui estou eu, de volta a minha terra
natal, movida pelas saudades da Fortaleza de minha infância. E diante da tarefa
de escrever sobre a cidade onde nasci.” As crônicas de Ana Miranda serão
publicadas todas as sextas-feiras.
O POVO - A crônica lida basicamente com o tempo. O dia-a-dia, o cotidiano, as pessoas, a memória. Como esses aspectos se ligam em seus textos? E como eles devem se mostrar em suas crônicas?
O POVO - A crônica lida basicamente com o tempo. O dia-a-dia, o cotidiano, as pessoas, a memória. Como esses aspectos se ligam em seus textos? E como eles devem se mostrar em suas crônicas?
Ana Miranda - Sim, a crônica fala do
dia-a-dia, das pequenas coisas, numa linguagem simples, próxima à literatura. É
o lugar onde o leitor do jornal tem um encontro menos informativo e mais
pessoal, onde circulam conceitos e visões de mundo, linguagens, até sentimento,
sonho e poesia. Gosto de me inspirar no Rubem Braga, que considero o mestre dos
mestres da crônica, o paradigma. Mas vou pedir à Rachel de Queiroz, lá no céu,
que seja a minha madrinha, pois ela já escreveu nestas mesmas páginas. Ela há
de me iluminar. Penso em falar disso mesmo, de lembranças pessoais, por
exemplo, de minha amizade com a Rachel, ou as pedras na praia de Iracema, de
pessoas, como o José de Alencar ou um grande bibliófilo que existe aqui em
Fortaleza, assim como as coisas do dia-a-dia, pequenas ou grandes, uma chuva,
uma árvore podada demais, que me entristeceu... E com o coração na mão, pois
estarei escrevendo para os meus, na minha terra. Tudo isso vai se ligar por um
fio que é Fortaleza. Interessante é que acabo de ler o belíssimo livro de Ohran
Pamuk, Istambul, sobre a sua cidade. O POVO me propôs o tema
Fortaleza, e Fortaleza para mim será o personagem central, que vai guiar o fio
da conversa com os leitores.
OP - Em que tipo de personagem Fortaleza se converte em seus textos?
Com que roupa a cidade vai aparecer?
Ana Miranda - É ela quem vai decidir, vou
apenas ficar sensível às mensagens que a cidade me mandar, mas pelo que eu me
conheço, e da cidade, minha tendência sempre será iluminar os lados positivos,
as qualidades, as coisas boas da cidade e de seus moradores, as lindíssimas
memórias que guardo, das bordadeiras, dos bailes de minha mãe, dos coqueirais,
a grande força cultural que Fortaleza conserva, apesar do caráter inovador do
cearense, e suas características tão especiais de cidade que é ao mesmo tempo
metropolitana e interiorana. , pois aqui quase todos têm um pé no interior, uma
tia, uma família, um sitiozinho, porque a colonização do Ceará deu-se pelo
interior. Tem as jangadas, as velas do Mucuripe, as cadeiras nas calçadas, como
fala o livro lindo, de Raymundo Netto, tem o lado do humor, e do humor ácido
tão bem trabalhado pelo Pedro Salgueiro, o lado cosmopolita e universal da
cidade, narrado com a sensibilidade de Tércia Montenegro, e tantos outros
escritores. Vai ser um encontro entre dois seres, uma escritora e uma cidade,
ela muito mais forte e duradoura, mandando em mim, e eu apenas com o poder da
palavra, da observação, e da memória. Vamos ver o resultado.
OP - E as outras memórias... Elas se entrelaçam num contínuo? Ou cada
tempo, cada cidade, cada instante requer sua porção especial, única de atenção?
Ana Miranda - Tudo se entrelaça, tudo se comunica, continuamente, a realidade é tão ampla que se torna inapreensível, nada pode apreender a realidade, o que as palavras podem fazer é delimitar um momento, uma situação, um lugar, um tempo, coisas pequenas, que dão a mostra do inapreensível. Nós escritores adoramos uma frase do Tolstoi que diz, “Se queres falar sobre o mundo, fala sobre a tua aldeia”. Fortaleza já é uma aldeia grande demais, será preciso ir nas suas minúcias, nos seus desvãos, nos seus segredos, mas também nos seus esteios, nunca é demais bater na tecla das riquezas naturais e culturais de Fortaleza, tão faladas, o vento, a luz, a cor do mar, Iracema, as pequenas prostitutas, também a rua da minha tia, a oca da minha amiga psiquiatra, uma coleção de rendas... o que surgir.
Ana Miranda - Tudo se entrelaça, tudo se comunica, continuamente, a realidade é tão ampla que se torna inapreensível, nada pode apreender a realidade, o que as palavras podem fazer é delimitar um momento, uma situação, um lugar, um tempo, coisas pequenas, que dão a mostra do inapreensível. Nós escritores adoramos uma frase do Tolstoi que diz, “Se queres falar sobre o mundo, fala sobre a tua aldeia”. Fortaleza já é uma aldeia grande demais, será preciso ir nas suas minúcias, nos seus desvãos, nos seus segredos, mas também nos seus esteios, nunca é demais bater na tecla das riquezas naturais e culturais de Fortaleza, tão faladas, o vento, a luz, a cor do mar, Iracema, as pequenas prostitutas, também a rua da minha tia, a oca da minha amiga psiquiatra, uma coleção de rendas... o que surgir.
OP - Em seus romances, há trabalho ficcional sobre uma camada de
história. Podemos esperar algo parecido de suas crônicas?
Ana Miranda - Certeza, sim, não ficção sobre
passado, mas a minha relação com os livros. Adoro as descobertas que faço nos
livros, histórias acontecidas com José de Alencar, ou relatos sobre plantas
medicinais nas farmácias vivas, ou uma velha crônica escrita por Drummond, um
poema de Cecília Meireles... A minha obra tem muito de vida, de experiência,
mas ela se relaciona com o meu amor pelos livros.
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