quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

FlashBack-Block: "No Bordado do Olhar", entrevista de Henrique Araújo com a nova cronista de O POVO: Ana Miranda.


Rachel de Queiroz, uma flor marca a estreia amanhã da escritora Ana Miranda como cronista do O POVO. Em entrevista, a autora de Dias & Dias apresenta as estampas de memória que deverão servir de mote para suas crônicas.

Henrique Araújo especial para O POVO

Se, num lance de ficção, a escritora cearense Ana Miranda fosse suspensa por uma grua, esses equipamentos que alçam as câmeras de cinema e captam a imagem sob ângulos inusitados, e levada a um passeio por Fortaleza, um passeio que vasculhasse os quatro cantos da cidade e proporcionasse uma panorâmica mas também acurada visão de cada recanto; e se, passado o susto de enxergar-se sobrevoando uma metrópole que se esparrama desmesuradamente, lhe fosse pedido um relato em forma de crônica, um texto que misturasse suas impressões mais vivas da viagem aos pacotes de memórias que a escritora tem da sua infância na Capital, o que esse relato reservaria aos leitores? O que essa crônica traria do olhar da autora de Boca do inferno, Dias & Dias, Desmundo e A última quimera? 
A resposta vai na contracapa da edição de amanhã, 3 de abril, do Vida & Arte. É lá que Ana Miranda estreia como cronista em O POVO. Após três anos de seu regresso ao Ceará, de onde saiu para fixar residência primeiro em Brasília e depois no Rio de Janeiro, a escritora revela o percurso de sua memória literária. Também estabelece um ponto temático fundamental: “Vai ser um encontro entre dois seres, uma escritora e uma cidade, ela muito mais forte e duradoura, mandando em mim, e eu apenas com o poder da palavra, da observação, e da memória. Vamos ver o resultado”. A crônica inaugural celebra a memória de Rachel de Queiroz (1910-2003), amiga da escritora, que também faz graça com seu jeito especial de ser cearense. “Agora, aqui estou eu, de volta a minha terra natal, movida pelas saudades da Fortaleza de minha infância. E diante da tarefa de escrever sobre a cidade onde nasci.” As crônicas de Ana Miranda serão publicadas todas as sextas-feiras.

O POVO - A crônica lida basicamente com o tempo. O dia-a-dia, o cotidiano, as pessoas, a memória. Como esses aspectos se ligam em seus textos? E como eles devem se mostrar em suas crônicas? 
Ana Miranda - Sim, a crônica fala do dia-a-dia, das pequenas coisas, numa linguagem simples, próxima à literatura. É o lugar onde o leitor do jornal tem um encontro menos informativo e mais pessoal, onde circulam conceitos e visões de mundo, linguagens, até sentimento, sonho e poesia. Gosto de me inspirar no Rubem Braga, que considero o mestre dos mestres da crônica, o paradigma. Mas vou pedir à Rachel de Queiroz, lá no céu, que seja a minha madrinha, pois ela já escreveu nestas mesmas páginas. Ela há de me iluminar. Penso em falar disso mesmo, de lembranças pessoais, por exemplo, de minha amizade com a Rachel, ou as pedras na praia de Iracema, de pessoas, como o José de Alencar ou um grande bibliófilo que existe aqui em Fortaleza, assim como as coisas do dia-a-dia, pequenas ou grandes, uma chuva, uma árvore podada demais, que me entristeceu... E com o coração na mão, pois estarei escrevendo para os meus, na minha terra. Tudo isso vai se ligar por um fio que é Fortaleza. Interessante é que acabo de ler o belíssimo livro de Ohran Pamuk, Istambul, sobre a sua cidade. O POVO me propôs o tema Fortaleza, e Fortaleza para mim será o personagem central, que vai guiar o fio da conversa com os leitores.

OP - Em que tipo de personagem Fortaleza se converte em seus textos? Com que roupa a cidade vai aparecer? 
Ana Miranda - É ela quem vai decidir, vou apenas ficar sensível às mensagens que a cidade me mandar, mas pelo que eu me conheço, e da cidade, minha tendência sempre será iluminar os lados positivos, as qualidades, as coisas boas da cidade e de seus moradores, as lindíssimas memórias que guardo, das bordadeiras, dos bailes de minha mãe, dos coqueirais, a grande força cultural que Fortaleza conserva, apesar do caráter inovador do cearense, e suas características tão especiais de cidade que é ao mesmo tempo metropolitana e interiorana. , pois aqui quase todos têm um pé no interior, uma tia, uma família, um sitiozinho, porque a colonização do Ceará deu-se pelo interior. Tem as jangadas, as velas do Mucuripe, as cadeiras nas calçadas, como fala o livro lindo, de Raymundo Netto, tem o lado do humor, e do humor ácido tão bem trabalhado pelo Pedro Salgueiro, o lado cosmopolita e universal da cidade, narrado com a sensibilidade de Tércia Montenegro, e tantos outros escritores. Vai ser um encontro entre dois seres, uma escritora e uma cidade, ela muito mais forte e duradoura, mandando em mim, e eu apenas com o poder da palavra, da observação, e da memória. Vamos ver o resultado. 

OP - E as outras memórias... Elas se entrelaçam num contínuo? Ou cada tempo, cada cidade, cada instante requer sua porção especial, única de atenção?
Ana Miranda - Tudo se entrelaça, tudo se comunica, continuamente, a realidade é tão ampla que se torna inapreensível, nada pode apreender a realidade, o que as palavras podem fazer é delimitar um momento, uma situação, um lugar, um tempo, coisas pequenas, que dão a mostra do inapreensível. Nós escritores adoramos uma frase do Tolstoi que diz, “Se queres falar sobre o mundo, fala sobre a tua aldeia”. Fortaleza já é uma aldeia grande demais, será preciso ir nas suas minúcias, nos seus desvãos, nos seus segredos, mas também nos seus esteios, nunca é demais bater na tecla das riquezas naturais e culturais de Fortaleza, tão faladas, o vento, a luz, a cor do mar, Iracema, as pequenas prostitutas, também a rua da minha tia, a oca da minha amiga psiquiatra, uma coleção de rendas... o que surgir.

OP - Em seus romances, há trabalho ficcional sobre uma camada de história. Podemos esperar algo parecido de suas crônicas? 
Ana Miranda - Certeza, sim, não ficção sobre passado, mas a minha relação com os livros. Adoro as descobertas que faço nos livros, histórias acontecidas com José de Alencar, ou relatos sobre plantas medicinais nas farmácias vivas, ou uma velha crônica escrita por Drummond, um poema de Cecília Meireles... A minha obra tem muito de vida, de experiência, mas ela se relaciona com o meu amor pelos livros.

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