quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

FlashBack-Block: "Ana Crônica", de Raymundo Netto, para os 5 anos do AlmanaCULTURA


Publicada originalmente em agosto de 2009.
Saudade. Palavra bonita, apertosa, ao mesmo tempo, pejada de lembranças. E foi pela saudade que uns amigos escritores vieram ao Ceará para rever a Ana Miranda no mês de seu aniversário — alguns deles, bem verdade, não conheciam a terrinha. Ela, como sempre, convidou seus amigos cearenses para apresentá-los.
Cheguei ao Alto da Escritora na aldeia perdida da Prainha. Uma casa em forma de arraia que tem jangadas no jardim e um tapete de mar, com vagas verdes-azuis, rendilhado de brancas espumas. Lá, o vento avermelha-se de cajus e o luar assoalha a varanda enquanto o marulho de uma sinfonia antiga acalanta a casa iluminurecida por vaga-lumes desse desmundo de meu Deus.
Tirante um tipo extraordinário de cupim, os Dedicatorium saramagofagus, do qual a Ana está sempre atenta, de resto não há do que se queixar.
Mas, que surpresa, ao chegar a casa, encontrei-a vazia! Na sala, bem no meio dela, ao chão, apenas a florida sopeira — linda — de sua avó. Esquisito! Abri-lhe a tampa e, como num alçapão, avistei logo uma comprida escada. Com o cuidado de trazer um lampião, desci os degraus úmidos de pedra. As paredes eram lisas e escurecidas. Nelas, via pequenas portas, postigos, e pus-me a abri-los, um por um, na esperança de encontrá-la: "Ana! Ana Maria!", gritava sem respostas, a não ser o ecoar da própria voz vinda dos vazios de tempo. “A linguagem guarda o tempo e o lugar...”
Encontrei-a, em pouco, ao atravessar um portal de buganvílias coloridas por aquarelas e crayon — lilás, cor-de-telha e púrpura —, bordando ao avesso, ao lado de umas cabanas de taipa ensombradas por renques de coqueiros.
Ao ser anunciado por Miró, o coelho, levantou-se e acolheu-me no sorriso, no abraço e na lonjura da palavra: saudade!, levando-me depois a uma roda de conversas infindáveis de amigos.
Cida, Valdir, as Nóbregas, Inês, Leninha, Aída, Ingrid, Tércia, Glauco, Pedro, como sempre, falavam barulhosos sobre assuntos dos mais profundos aos banais. Num canto, dona Irene, acudida pela dona Odete — enfeitada de cachozinhos de cabelos negros —, abrigava em seus braços uma indiazinha envolvida em manta.
 Entrementes, naquele dia, a atenção era devotada aos visitantes: Gregório, Augusto, Clarice e Toninho.
Sentei-me ao lado de Gregório, o mais animado do grupo, que, fazendo as vezes de anfitrião, pôs-se a servir um púcaro de vinho, após largar num canto a viola que tangia. Arrumando os cabelos com os dedos, para disfarçar a testa grande, tratou, o canonista, das apresentações:
— Gregório de Matos e Guerra, um seu criado.
Ana sentou-se ao lado da roda e, enquanto fumava um charuto cubano, presente de um amigo, anotava num moleskini preto, os ditos interessantes... Antes, porém, falou sobre a Academia do Cumbe, do seu programa de instalação — “nada de vaidades, glórias literárias e, em vez de chá, água de coco” —, do passeio em Aracati, das excursões “literárias” pelos rincões cearenses.
Clarice, sentada numa cadeira de vime, trazia no rosto certo ar de indisposição e, ao colo, uma pequena máquina datilográfica. Do lado, Tércia afagava um gato de rabo complicado que miava: Uaimmm!
— Ah, também há mistério num gato pensante... — disse-lhe Clarice.
Num canto, de cócoras e pintada de urucum, Temericó cantava umas cantigas em lembrança ao carajá Tepe Kahok.
Pedro, na tentativa de contar uma graçola, foi logo interpelado pelo risonho Gregório:
— E então, poeta, o que escreve?
— Eu não sou poeta, (breve suspiro) sou contista. — desconfiou.
— Ah, é? Que interessante... e quando pensa em escrever um romance? (silêncio...)Veja, — continuou. — dizem que sou poeta, mas eu queria mesmo era ser músico. Faço versos para os que não sabem ler!
Augusto estava melancólico, pálido, de pouca conversa. Ana percebeu:
— Augusto, e você? Sua poesia é des-lum-braaan-te!
Tímido, meio que perdido em suas recordações e fumando cigarrilhas de eucalipto, bateu as caspas na jaqueta preta e no chapéu nas pernas, desabafando:
— Pode ser, Ana, mas a maior parte dos meus livros distribui para críticos, amigos, redações de jornais. Vender mesmo, pouquíssima coisa. Poesia não rende!
— Ô, Augustinho, meu rapaz, leva a mal não — meteu-se de permeio o Gregório de Matos. —, mas você devia ter feito era Medicina!
Gonçalves Dias, que se gabava de aniversariar no mesmo mês da Ana, preferiu sentar-se bem distante do mar — teria algum trauma? — tomando o excessivo cuidado de enfiar ao pescoço uma boia verde com cara de dragãozinho. Estava todo entusiasmado — “até ouvindo sabiás em tipuANAS de flores amarelas”, dizia — por entrar no Vestibular. Folheava um Dicionário Tupi para a feliz Ana que atentamente filosofava:
— Ah, que lindo, Toninho... A Marlui vai adorar! É assim mesmo, sabia? Quando gostamos de uma pessoa, gostamos de tudo o que há em seu mundo.
É, mas quando o assunto voltou-se à literatura, a confusão foi grande. Tantos livros, tantas histórias, multimundos, confissões curiosas e verdadeiras aulas do fazer-se escritor e escrever. No meio de tudo, Clarice pontuou:
— Cada vez mais escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever!
Diante do aparente e lúcido absurdo, Gregório, completamente bêbado, agarrou o Pedro pelos ombros e, deitando a cabeça em seu peito, lascou uma estrondosa gargalhada. O Pedro, coitado, que já estava meio incomodado com o poeta, virou imediatamente o rosto e, cerrando o nariz com os dedos, resmungou de canto:
— Arre, que boca dos infernos!!!

Ana Miranda (19 de agosto de 1951), cearense. Seu primeiro romance, Boca do Inferno, foi publicado em 1989, obra que já foi traduzida nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia e Holanda, entre outros países. Escreveu também A Última Quimera, Desmundo, Clarice e Dias & Dias, dentre outros. Alguns dos trechos do texto foram adaptados da obra de Ana Miranda ou dos demais autores representados: Gregório de Matos, Clarice Lispector, Gonçalves Dias e Augusto dos Anjos.


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