Publicada
originalmente em agosto de 2009.
Saudade.
Palavra bonita, apertosa, ao mesmo tempo, pejada de lembranças. E
foi pela saudade que uns amigos escritores vieram ao Ceará para rever a Ana
Miranda no mês de seu aniversário — alguns deles, bem verdade, não conheciam a
terrinha. Ela, como sempre, convidou seus amigos cearenses para apresentá-los.
Cheguei ao Alto da Escritora na aldeia perdida da
Prainha. Uma casa em forma de arraia que tem jangadas no jardim e um tapete de
mar, com vagas verdes-azuis, rendilhado de brancas espumas. Lá, o vento
avermelha-se de cajus e o luar assoalha a varanda enquanto o marulho de uma
sinfonia antiga acalanta a casa iluminurecida por vaga-lumes desse desmundo de
meu Deus.
Tirante um tipo extraordinário de cupim, os Dedicatorium saramagofagus, do qual a
Ana está sempre atenta, de resto não há do que se queixar.
Mas, que surpresa, ao chegar a casa, encontrei-a
vazia! Na sala, bem no meio dela, ao chão, apenas a florida sopeira — linda —
de sua avó. Esquisito! Abri-lhe a tampa e, como num alçapão, avistei logo uma
comprida escada. Com o cuidado de trazer um lampião, desci os degraus úmidos de
pedra. As paredes eram lisas e escurecidas. Nelas, via pequenas portas,
postigos, e pus-me a abri-los, um por um, na esperança de encontrá-la: "Ana!
Ana Maria!", gritava sem respostas, a não ser o ecoar da própria voz vinda
dos vazios de tempo. “A linguagem guarda o tempo e o lugar...”
Encontrei-a, em pouco, ao atravessar um portal de
buganvílias coloridas por aquarelas e crayon
— lilás, cor-de-telha e púrpura —, bordando ao avesso, ao lado de umas
cabanas de taipa ensombradas por renques de coqueiros.
Ao ser anunciado por Miró, o coelho, levantou-se e
acolheu-me no sorriso, no abraço e na lonjura da palavra: saudade!, levando-me
depois a uma roda de conversas infindáveis de amigos.
Cida, Valdir, as Nóbregas, Inês, Leninha, Aída,
Ingrid, Tércia, Glauco, Pedro, como sempre, falavam barulhosos sobre assuntos
dos mais profundos aos banais. Num canto, dona Irene, acudida pela dona Odete —
enfeitada de cachozinhos de cabelos negros —, abrigava em seus braços uma indiazinha
envolvida em manta.
Entrementes,
naquele dia, a atenção era devotada aos visitantes: Gregório, Augusto, Clarice
e Toninho.
Sentei-me ao lado de Gregório, o mais animado do
grupo, que, fazendo as vezes de anfitrião, pôs-se a servir um púcaro de vinho,
após largar num canto a viola que tangia. Arrumando os cabelos com os dedos,
para disfarçar a testa grande, tratou, o canonista, das apresentações:
— Gregório de Matos e Guerra, um seu criado.
Ana sentou-se ao lado da roda e, enquanto fumava um
charuto cubano, presente de um amigo, anotava num moleskini preto, os ditos interessantes... Antes, porém, falou
sobre a Academia do Cumbe, do seu
programa de instalação — “nada de vaidades, glórias literárias e, em vez de chá,
água de coco” —, do passeio em Aracati, das excursões “literárias” pelos
rincões cearenses.
Clarice, sentada numa cadeira de vime, trazia no rosto
certo ar de indisposição e, ao colo, uma pequena máquina datilográfica. Do
lado, Tércia afagava um gato de rabo complicado que miava: Uaimmm!
— Ah, também há mistério num gato pensante... —
disse-lhe Clarice.
Num canto, de cócoras e pintada de urucum, Temericó
cantava umas cantigas em lembrança ao carajá Tepe Kahok.
Pedro, na tentativa de contar uma graçola, foi logo
interpelado pelo risonho Gregório:
— E então, poeta, o que escreve?
— Eu não sou poeta, (breve suspiro) sou contista. —
desconfiou.
— Ah, é? Que interessante... e quando pensa em
escrever um romance? (silêncio...)Veja, — continuou. — dizem que sou poeta, mas
eu queria mesmo era ser músico. Faço versos para os que não sabem ler!
Augusto estava melancólico, pálido, de pouca conversa.
Ana percebeu:
— Augusto, e você? Sua poesia é des-lum-braaan-te!
Tímido, meio que perdido em suas recordações e fumando
cigarrilhas de eucalipto, bateu as caspas na jaqueta preta e no chapéu nas
pernas, desabafando:
— Pode ser, Ana, mas a maior parte dos meus livros
distribui para críticos, amigos, redações de jornais. Vender mesmo, pouquíssima
coisa. Poesia não rende!
— Ô, Augustinho, meu rapaz, leva a mal não — meteu-se
de permeio o Gregório de Matos. —, mas você devia ter feito era Medicina!
Gonçalves Dias, que se gabava de aniversariar no mesmo
mês da Ana, preferiu sentar-se bem distante do mar — teria algum trauma? —
tomando o excessivo cuidado de enfiar ao pescoço uma boia verde com cara de
dragãozinho. Estava todo entusiasmado — “até ouvindo sabiás em tipuANAS de
flores amarelas”, dizia — por entrar no Vestibular. Folheava um Dicionário Tupi
para a feliz Ana que atentamente filosofava:
— Ah, que lindo, Toninho... A Marlui vai adorar! É
assim mesmo, sabia? Quando gostamos de uma pessoa, gostamos de tudo o que há em
seu mundo.
É, mas quando o assunto voltou-se à literatura, a
confusão foi grande. Tantos livros, tantas histórias, multimundos, confissões
curiosas e verdadeiras aulas do fazer-se escritor e escrever. No meio de tudo,
Clarice pontuou:
— Cada vez mais escrevo com menos palavras. Meu livro
melhor acontecerá quando eu de todo não escrever!
Diante do aparente e lúcido absurdo, Gregório,
completamente bêbado, agarrou o Pedro pelos ombros e, deitando a cabeça em seu peito,
lascou uma estrondosa gargalhada. O Pedro, coitado, que já estava meio
incomodado com o poeta, virou imediatamente o rosto e, cerrando o nariz com os
dedos, resmungou de canto:
— Arre, que boca dos infernos!!!
Ana
Miranda (19 de agosto de 1951), cearense. Seu primeiro
romance, Boca do Inferno, foi publicado em 1989, obra que já foi
traduzida nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha,
Suécia e Holanda, entre outros países. Escreveu também A Última Quimera, Desmundo, Clarice e Dias &
Dias, dentre outros. Alguns dos trechos
do texto foram adaptados da obra de Ana Miranda ou dos demais autores
representados: Gregório de Matos, Clarice Lispector, Gonçalves Dias e Augusto
dos Anjos.
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