Dona
Zenaide é minha vizinha, dessas que não vivem “propriamente” numa cidade, porém
se orgulham de dizer que habitam um bairro. Pois para ela um bairro é uma
cidade dentro da cidade, simples assim. Já foi moradora do Parque Araxá, muito
antes de jogarem um morto no cacimbão da José Sombra, maculando a fama da
região de lugar pacífico com águas milagrosas; veio de marido e cuia para a
Gentilândia (nunca a ouvi falar em Benfica) e daqui só sai para o “campo
santo”.
Ela é a
criaturinha mais charmosa da Gentilândia, capital do Benfica (ri muito quando
atribuo essa função ao nosso complicado bairro), mesmo com seus quase noventa
anos. Não aceita que ninguém mexa na sua cozinha, apenas ela sabe o lugar de
todos os utensílios, quando muito pede a alguém que pegue algo na prateleira
mais alta da despensa.
Criou os
filhos todos nessa mesma toada, sem afobação nem melindres de mãe coruja
(“essas mães exibicionistas que andam por aí se arvorando de boa”, como ela
costuma dizer sem afetação), e hoje vive sozinha; mas é a pessoa mais bem
acompanhada desse lado da cidade, que não há um único dia que sua casa não
tenha gente, seja uma nora saudosa, uma amiga de longas datas, um parente do
Interior... e até vizinhos bisbilhoteiros iguais a mim, que passo somente para
um dedinho de prosa, uma xícara de chá de capim-santo ou cidreira (do seu café
nem falo, para não atrair concorrentes, mas adianto que ainda é torrado e
pilado no quintal e tem um sabor divino).
Quando
desejo algum conselho, passo pela sua calçada como quem não quer nada, o que
ela parece sempre adivinhar, pois nesses dias puxa logo conversa; mas nunca vou
direto ao “mote”, circulo pelos arredores; minto: ontem, como não tinha lá
muito tempo, fui logo assuntando: “E de Carnaval, dona Zenaide, como tem
passado?”, e não sentindo boa recepção em seu semblante, sempre tão sereno,
tentei consertar: “Aliás, de pré-carnaval... pois mal viramos o mês”... Ela
meio que riu, ou fez uma caretinha antes de balançar bem de leve a cabeça.
Juro que,
pela sua fisionomia inexplicavelmente calada, me arrependi da pergunta besta
(pela primeira vez em muitos anos fugi dos arrodeios) e tentei mudar logo de
assunto... Mas ela já recobrava a calma de sempre, o sorriso entre enigmático e
bondoso; então fiquei imaginando que ela devia detestar aquela barulheira de
jovens, ou pelo menos a sujeira que ficava nas ruas, o odor de urina e
bebidas... enfim, que devia ter um pouco daqueles velhos que inevitavelmente
vão envelhecendo ranzinzas, com raiva da juventude...
Ela
simplesmente me olhou bem no olho e admitiu, assim no natural, que nunca havia
gostado de folia, não, e até desconfiava de gente que necessitava de muita
festa para ser feliz. Eu senti a frase dela na moleira, uma pancada para mim,
que adoro “sereno” de forró, qualquer festa mesmo, de carnaval a folia de reis,
que comemoro meu aniversário o mês de novembro inteiro.
Mas do
alto de sua sensibilidade (deve ter percebido o desconcerto em meus olhos) ela
mudou logo de assunto: “E a chuva, hein? Parece que não quer vir...”
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