domingo, 16 de fevereiro de 2014

"D.Zenaide e o Carnaval", de Pedro Salgueiro, para O POVO


Dona Zenaide é minha vizinha, dessas que não vivem “propriamente” numa cidade, porém se orgulham de dizer que habitam um bairro. Pois para ela um bairro é uma cidade dentro da cidade, simples assim. Já foi moradora do Parque Araxá, muito antes de jogarem um morto no cacimbão da José Sombra, maculando a fama da região de lugar pacífico com águas milagrosas; veio de marido e cuia para a Gentilândia (nunca a ouvi falar em Benfica) e daqui só sai para o “campo santo”.

Ela é a criaturinha mais charmosa da Gentilândia, capital do Benfica (ri muito quando atribuo essa função ao nosso complicado bairro), mesmo com seus quase noventa anos. Não aceita que ninguém mexa na sua cozinha, apenas ela sabe o lugar de todos os utensílios, quando muito pede a alguém que pegue algo na prateleira mais alta da despensa.

Criou os filhos todos nessa mesma toada, sem afobação nem melindres de mãe coruja (“essas mães exibicionistas que andam por aí se arvorando de boa”, como ela costuma dizer sem afetação), e hoje vive sozinha; mas é a pessoa mais bem acompanhada desse lado da cidade, que não há um único dia que sua casa não tenha gente, seja uma nora saudosa, uma amiga de longas datas, um parente do Interior... e até vizinhos bisbilhoteiros iguais a mim, que passo somente para um dedinho de prosa, uma xícara de chá de capim-santo ou cidreira (do seu café nem falo, para não atrair concorrentes, mas adianto que ainda é torrado e pilado no quintal e tem um sabor divino).

Quando desejo algum conselho, passo pela sua calçada como quem não quer nada, o que ela parece sempre adivinhar, pois nesses dias puxa logo conversa; mas nunca vou direto ao “mote”, circulo pelos arredores; minto: ontem, como não tinha lá muito tempo, fui logo assuntando: “E de Carnaval, dona Zenaide, como tem passado?”, e não sentindo boa recepção em seu semblante, sempre tão sereno, tentei consertar: “Aliás, de pré-carnaval... pois mal viramos o mês”... Ela meio que riu, ou fez uma caretinha antes de balançar bem de leve a cabeça.

Juro que, pela sua fisionomia inexplicavelmente calada, me arrependi da pergunta besta (pela primeira vez em muitos anos fugi dos arrodeios) e tentei mudar logo de assunto... Mas ela já recobrava a calma de sempre, o sorriso entre enigmático e bondoso; então fiquei imaginando que ela devia detestar aquela barulheira de jovens, ou pelo menos a sujeira que ficava nas ruas, o odor de urina e bebidas... enfim, que devia ter um pouco daqueles velhos que inevitavelmente vão envelhecendo ranzinzas, com raiva da juventude...

Ela simplesmente me olhou bem no olho e admitiu, assim no natural, que nunca havia gostado de folia, não, e até desconfiava de gente que necessitava de muita festa para ser feliz. Eu senti a frase dela na moleira, uma pancada para mim, que adoro “sereno” de forró, qualquer festa mesmo, de carnaval a folia de reis, que comemoro meu aniversário o mês de novembro inteiro.
Mas do alto de sua sensibilidade (deve ter percebido o desconcerto em meus olhos) ela mudou logo de assunto: “E a chuva, hein? Parece que não quer vir...”


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