sexta-feira, 18 de abril de 2014

"Viçosalianas", de Raymundo Netto, para os 5 anos do AlmanaCULTURA.


Publicada originalmente em O POVO, em 11 de setembro de 2009.

Ao amigo Ronald e seus irmãos Tereza, Adail, Helder, Ana Maria, Juarez e Dario umas poucas palavras em respeito a outras.

Não há nada no mundo que me fale mais ao coração do que a surpresa de “humanidade” em alguém. No corre-corre de todos os nossos dias fabris, o tempo não permite que descubramos, entre tantas mazelas e idiossincrasias, a frágil beleza do ser. Daí, sempre dizer: “Posso perder tudo, menos as pessoas.”
Há tempos, uns quatro anos, recebi por presente, um livro: “Viçosalianas”. De cara, fiquei curioso do título, cujo autor, Juca Fontenelle, um senhor de oitenta e cinco anos, “viçosense de excelente cepa”, me ofertava “com apreço” em letras tremulantes de vida e histórias.
Foi numa tarde de calçadas, acompanhado de ninguém, que o li.
Um livrinho de título “deveras estrambótico” dedicado, “de modo especial”, à esposa Nilza e cujos donos seriam seus filhos, “verdadeiros achados”, que o incentivaram a escrever, pelo desejo, cria, de ver seu nome em “letra de forma” na capa.
Do livro, nos salta Viçosa do Ceará, às terras do Lambedouro, “o único lugar no mundo onde o Céu e o Cemitério são vizinhos”. Foi ali que nascera, em 1920. Dentre as narrativas viçosalianas, Juca conta e reitera o orgulho do início da leitura por intervenção da mãe, D. Rosa, descendente e representante de uma linhagem de professores.
Já casado, e para garantir a educação dos filhos, veio a Fortaleza. Trabalhou com o contista Moreira Campos no Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará, e, passado mais algum tempo, no Campus da Pici, até a chegada indesejável da “expulsória”, como diz da compulsória.
Sempre afirmando sua preguiça de escrever, escreve, tomado por memórias vivas, pilhérias, lendas e causos da cidade natal. Entre tantos, e outros relembramentos, conclui: seus amigos morreram cedo, ou ele é que vivera tempo demais.
Em “A Beata e o Inferno”, Juca descreve uma mulher fervorosa e hipocondríaca, que, como outras, transforma a religião em “filosofia religiosa para uso privado”, chegando ao exagero de, quando da passagem de três padres de outras paróquias na cidade, dar um jeito de se confessar com os três.
Em “Afilotar”, lembra Filomena, ou melhor, Filó, uma mulher já estabelecida no “caritó”, rotineiramente convidada para tomar conta das filhas alheias nas festas em que os pais não poderiam estar presentes. Com o tempo, nos bailes, habituou-se a ouvir das mocinhas a seus pretendentes, naquele linguajar colorido de interioranos: Só danço a Filó “tando”. Essa ladainha, exigência paterna, ecoava pelos salões: Só danço a Filó “tando”, Só danço a Filó “tando”. Foi quando um rapaz mais ousado, e entupido de coragem de garrafas, agarrou a jovem pela cintura e respondeu: “Pois sim, que eu também sei afilotar!”
Há também o caso do padre com mania de receitar à freguesia. Durante a procissão uma beata começa a espirrar e ele, imediatamente, indica-lhe um chá. Ela desdenha, diz que não carece de tal chá, pois tem fé em Deus, e pronto. O Padre retruca: “Ter fé em Deus é muito bom, minha filha, mas é sempre mais seguro tomar o chá!”
Conta do Eudes, um analfabeto, a relatar que um velhinho da cidade morreria a qualquer momento, pois estaria vitimado de um dos “três quês” que matam: queda, catarro e caganeira. Juca o emenda: “Mas, Eudes, caganeira não se escreve com ‘q’...”. Eudes coça, então, a cabeça e responde: “Isso eu não sei, mas que a bichinha mata, mata!”
Outros casos são o de José Avelino que, atravessando uma noite escura de chuva de pingos tão grossos que bastava um para banhar-se por inteiro, decidiu abrigar-se no telheiro da “Cruz do Soldado”, quase matando um “caboclo” de susto, certo de estar diante de alma de outro mundo, e o da Câmara de Vereadores de Viçosa que, durante a I Grande Guerra, decidiu declarar combate à Alemanha.
 Enfim, a obra é polvilhada de crônicas e narrativas de uma Viçosa do tempo em que não havia carro nem estrada e em que as almas, em dia de finados, se divertiam ao som da vitrola-de-gabinete do seu Afonso Marques, de inocentes passeios no açude, do Chinoca, do Zévictor Fontenelle, do Dedé Fontenelle Pacheco, do Assis Pindaíra, do Padre Carneiro, das reuniões em torno dos noticiários da BBC por um rádio a bateria no Bar do Aluísio (nas quais os moradores acertavam os relógios), do Chico Caldas, do Antônio Urano, do exótico Pedro Bozon, do Alfredo Miranda, tocador de pífano de taboca e proprietário da famosa “Casa dos Licores”, do “caminho do caranguejo”, das aventuras de caçador de Mané Pereira, do Chico Jacaré, dos casos de crimes e das procissões, dos sítios (Olaria, Jaguaribe, Cujá, Cacimbinha...), das festas dançantes no “Gabinete Viçosense de Letras”, do Saldanha, o fuxiqueiro, do jumento do correio aos domingos, da Pedra do Itaguruçu, das desmemórias de João Sacristão, do Clube Roial (sic), da história do papagaio que se chamava... papagaio! e de tantas outras mais ilustradas por fotos do casario antigo da viçosaliana cidade queridinha do Juca.
Pois sim, soube, há apenas duas semanas, que o Juca deixou “sempiternamente” a Aldeia do Ibiapaba. Foi numa quadra de abril. Soube também que estava prestes a lançar um segundo livro e que iriam emprestar seu nome, em homenagem, à Escola Estadual de Educação Profissional de Viçosa.
Fiquei triste. Apesar de gentil convite, postergado pela pressa, toda a boa conversa que poderia ter com o Juca, ficou de restos naquela calçada, naquele dia de mais ninguém.
Que os bons ventos e as vozes “ararenas” da Vila Viçosa Real d’América levem essa crônica-lamento, e que ela flua suave pela sua Lamartine Nogueira, por seus vales de águas em bicas perenes, por sua lagoa doce de mel redondo, pelas folhas das mangueiras da Clóvis Beviláqua, terra do Céu adormecido encimado por Cristo iluminado em redenção, até cobrir d’ouro lustrado as tijoleiras de sua Matriz.


José Victor Fontenelle Filho (1920-2009). Autor de Viçosalianas. Teve diversas participações no “jornal do leitor” de O POVO.

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