Publicada originalmente em O POVO, em 11 de setembro de 2009.
Ao amigo Ronald e seus irmãos
Tereza, Adail, Helder, Ana Maria, Juarez e Dario umas poucas palavras em
respeito a outras.
Não
há nada no mundo que me fale mais ao coração do que a surpresa de
“humanidade” em alguém. No
corre-corre de todos os nossos dias fabris, o tempo não permite que
descubramos, entre tantas mazelas e idiossincrasias, a frágil beleza do ser.
Daí, sempre dizer: “Posso perder tudo, menos as pessoas.”
Há tempos, uns quatro anos, recebi por presente, um
livro: “Viçosalianas”. De cara, fiquei curioso do título, cujo autor, Juca
Fontenelle, um senhor de oitenta e cinco anos, “viçosense de excelente cepa”,
me ofertava “com apreço” em letras tremulantes de vida e histórias.
Foi numa tarde de calçadas, acompanhado de ninguém,
que o li.
Um livrinho de título “deveras estrambótico” dedicado,
“de modo especial”, à esposa Nilza e cujos donos seriam seus filhos,
“verdadeiros achados”, que o incentivaram a escrever, pelo desejo, cria, de ver
seu nome em “letra de forma” na capa.
Do livro, nos salta Viçosa do Ceará, às terras do Lambedouro,
“o único lugar no mundo onde o Céu e o Cemitério são vizinhos”. Foi ali que
nascera, em 1920. Dentre as narrativas viçosalianas, Juca conta e reitera o
orgulho do início da leitura por intervenção da mãe, D. Rosa, descendente e
representante de uma linhagem de professores.
Já casado, e para garantir a educação dos filhos, veio
a Fortaleza. Trabalhou com o contista Moreira Campos no Centro de Humanidades
da Universidade Federal do Ceará, e, passado mais algum tempo, no Campus da
Pici, até a chegada indesejável da “expulsória”, como diz da compulsória.
Sempre afirmando sua preguiça de escrever, escreve,
tomado por memórias vivas, pilhérias, lendas e causos da cidade natal. Entre
tantos, e outros relembramentos, conclui: seus amigos morreram cedo, ou ele é que
vivera tempo demais.
Em “A Beata e o Inferno”, Juca descreve uma mulher
fervorosa e hipocondríaca, que, como outras, transforma a religião em “filosofia
religiosa para uso privado”, chegando ao exagero de, quando da passagem de três
padres de outras paróquias na cidade, dar um jeito de se confessar com os três.
Em “Afilotar”, lembra Filomena, ou melhor, Filó, uma mulher
já estabelecida no “caritó”, rotineiramente convidada para tomar conta das
filhas alheias nas festas em que os pais não poderiam estar presentes. Com o
tempo, nos bailes, habituou-se a ouvir das mocinhas a seus pretendentes, naquele
linguajar colorido de interioranos: Só danço a Filó “tando”. Essa ladainha,
exigência paterna, ecoava pelos salões: Só danço a Filó “tando”, Só danço a
Filó “tando”. Foi quando um rapaz mais ousado, e entupido de coragem de
garrafas, agarrou a jovem pela cintura e respondeu: “Pois sim, que eu também
sei afilotar!”
Há também o caso do padre com mania de receitar à
freguesia. Durante a procissão uma beata começa a espirrar e ele, imediatamente,
indica-lhe um chá. Ela desdenha, diz que não carece de tal chá, pois tem fé em
Deus, e pronto. O Padre retruca: “Ter fé em Deus é muito bom, minha filha, mas
é sempre mais seguro tomar o chá!”
Conta do Eudes, um analfabeto, a relatar que um velhinho
da cidade morreria a qualquer momento, pois estaria vitimado de um dos “três
quês” que matam: queda, catarro e caganeira. Juca o emenda: “Mas, Eudes,
caganeira não se escreve com ‘q’...”. Eudes coça, então, a cabeça e responde:
“Isso eu não sei, mas que a bichinha mata, mata!”
Outros casos são o de José Avelino que, atravessando uma
noite escura de chuva de pingos tão grossos que bastava um para banhar-se por
inteiro, decidiu abrigar-se no telheiro da “Cruz do Soldado”, quase matando um
“caboclo” de susto, certo de estar diante de alma de outro mundo, e o da Câmara
de Vereadores de Viçosa que, durante a I Grande Guerra, decidiu declarar
combate à Alemanha.
Enfim, a obra é
polvilhada de crônicas e narrativas de uma Viçosa do tempo em que não havia carro
nem estrada e em que as almas, em dia de finados, se divertiam ao som da
vitrola-de-gabinete do seu Afonso Marques, de inocentes passeios no açude, do
Chinoca, do Zévictor Fontenelle, do Dedé Fontenelle Pacheco, do Assis Pindaíra,
do Padre Carneiro, das reuniões em torno dos noticiários da BBC por um rádio a
bateria no Bar do Aluísio (nas quais os moradores acertavam os relógios), do Chico
Caldas, do Antônio Urano, do exótico Pedro Bozon, do Alfredo Miranda, tocador
de pífano de taboca e proprietário da famosa “Casa dos Licores”, do “caminho do
caranguejo”, das aventuras de caçador de Mané Pereira, do Chico Jacaré, dos casos
de crimes e das procissões, dos sítios (Olaria, Jaguaribe, Cujá, Cacimbinha...),
das festas dançantes no “Gabinete Viçosense de Letras”, do Saldanha, o
fuxiqueiro, do jumento do correio aos domingos, da Pedra do Itaguruçu, das
desmemórias de João Sacristão, do Clube Roial (sic), da história do papagaio que se chamava... papagaio! e de
tantas outras mais ilustradas por fotos do casario antigo da viçosaliana cidade
queridinha do Juca.
Pois sim, soube, há apenas duas semanas, que o Juca
deixou “sempiternamente” a Aldeia do Ibiapaba. Foi numa quadra de abril. Soube
também que estava prestes a lançar um segundo livro e que iriam emprestar seu
nome, em homenagem, à Escola Estadual de Educação Profissional de Viçosa.
Fiquei triste. Apesar de gentil convite, postergado
pela pressa, toda a boa conversa que poderia ter com o Juca, ficou de restos
naquela calçada, naquele dia de mais ninguém.
Que os bons ventos e as vozes “ararenas” da Vila
Viçosa Real d’América levem essa crônica-lamento, e que ela flua suave pela sua
Lamartine Nogueira, por seus vales de águas em bicas perenes, por sua lagoa
doce de mel redondo, pelas folhas das mangueiras da Clóvis Beviláqua, terra do Céu
adormecido encimado por Cristo iluminado em redenção, até cobrir d’ouro lustrado
as tijoleiras de sua Matriz.
José Victor Fontenelle Filho (1920-2009). Autor de Viçosalianas. Teve diversas participações no “jornal do leitor” de O POVO.
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