domingo, 27 de abril de 2014

"Suburbano Coração", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO


Quando cheguei à fria madrasta Fortaleza, encontrei em alguns bairros suburbanos um consolo: quase uma cópia fiel de minha saudosa cidadezinha do interior. E me acostumei naturalmente com o “sul” da capital, talvez por ser mais perto geograficamente de minha “Pasárgada” de infância, uma espécie de “saída de emergência”. Benfica, Jardim América, Montese, Damas, Parangaba etc. Até hoje, passados trinta e tantos anos, a “minha” Fortaleza se localiza praqueles lados; e me sinto quase um estranho quando ando em outras direções.
A familiaridade com esse lado “sul” da cidade não se mostra apenas nos simples conhecimento das ruas: nos rastros que se vai fazendo ao andar; mas muito mais se baseia na intuição: caminho por essas bandas de olhos fechados, pois sou capaz de entrar num ônibus, trancar os olhos e mesmo assim reconhecer onde estou — me localizo com facilidade, atravesso ruas sem observar, reconheço locais já bem fixados nesse misterioso “saco sem fundo” que é a memória.
Claro que já tentei morar em outras localidades, seguindo preferencialmente as mudanças da repartição onde trabalho há vinte e quatro anos: Aldeota, até mesmo o esnobe Meireles. Mas juro que nunca me acostumei com esses assépticos bairros de novos ricos: meu coração é mesmo — e irremediavelmente — suburbano.
Dia desses o amigo Gylmar Chaves me convidou para escrever um livrete sobre um recanto de nossa capital, numa coleção que tem tudo para se estender para a totalidade gigantesca dessa estranha metrópole “sem beira nem fim” que se tornou Fortaleza. Pontuei que não era pesquisador nem nada, que pouco sabia especificamente dos bairros, mas apenas generalidades; ao que ele retrucou que queria mesmo era “esse olhar enviesado” de cronistas, poetas, músicos, geógrafos etc., etc. Prometi-lhe que tentaria; e ele imediatamente me pegou pela palavra, mostrando-me logo as poucas opções que restavam, quase não me dando oportunidade de escolha. E dessas raras opções escolhi um bairro que muito me agradava pelos anos 80 do século passado, quando aqui aportei.
As bucólicas mangueiras do Pici, a antiga Faculdade de Agronomia, que frequentei por dois anos e meio, a casa de uma tia na cabeceira da lagoa da Parangaba, e até meu querido “Leão do Pici”, onde tantas vezes fui sonhar de ser jogador na “Escolinha do Moésio” e até mesmo bisbilhotar as piscinas e carnavais na velha “Sede Social” da rua Belo Horizonte.
Quase um ano de leituras variadas, perigosas visitas ao bairro (uma delas acompanhado por diversos amigos), conversas com moradores novos e antigos, consultas aos colegas escritores que guardavam lembranças de lá, várias idas ao importante arquivo do Nirez e leitura dos jornais O POVO e Diário do Nordeste, finalmente o livrinho vem a público numa edição caprichada, patrocinada pela Secretaria da Cultura da Prefeitura de Fortaleza. E que espero tenha uma distribuição razoável, que encontre leitores apaixonados e — principalmente — pesquisadores mais abalizados que descubram neles as falhas e tratem de fazer outros melhores.


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