quarta-feira, 30 de abril de 2014

"Nilto Maciel: quando se tornou Imortal!", homenagem ao grande escritor (30.04)


"Ora, deixemos esses passados mortos e vivamos o presente. Uliyana chegaria dentro de alguns minutos e eu a pensar em escritores medíocres. Entreguei-me, de olhos fechados, a fantasiar suas feições. Por que teria me procurado? Informou-me, por telefone, ter percorrido quase toda Fortaleza: da estátua de Iracema à feirinha de artesanato da Beira-mar, do centro cultural Dragão do Mar aos caranguejos da praia do Futuro. E por quais vias você me descobriu, ó czarina de meus delírios pós-soviéticos? Ofereceu-se para vir ao Monte Castelo, onde moro. Pode ser agora? Pode ser a qualquer hora. Passadas cinco páginas de Tchekhov, um táxi branco e reluzente deixou diante de minha mansão a mais estonteante das raparigas russas de todas as eras. Joguei o contista sobre o diário e corri a abraçá-la. Trazia livrinho dentro da bolsa vermelha: O senhor pode me dar autógrafo? Percebi logo tratar-se de exemplar da edição russa de Carnavalha."(...)
Era assim a vida animada e fantástica de Nilto Maciel, na sua casa no Monte Castelo, onde residia sozinho, balançando na cadeira em frente à TV, lendo as centenas de livros que lhe chegavam pelo correio, ou debruçado num computador a alimentar famintos blogs e a escrever todotempo o tempotodo.
Por vezes, já pela noitinha, após a sua sopa e remédios éramos vizinhos , ligava apenas para saber se podia desligar seu computador moderno, cheio de mensagens alienígenas, ou se eu achava que daria tempo de retirar dele um valioso pendrive sem o risco de perder a sua irreparável "obra completa".
Deitado num travesseiros de sonhos, ou de ficções, acordava com a cabeça pintada de contos, crônicas, romances, ou mesmo daquelas piadinhas infames ou irônicas que os amigos se acostumaram a ouvir em suas ligações, nas quais com a voz disfarçada, meio gutural, dizia:
Meu amigo... estavam agora mesmo falando mal de você... Sabe quem foi?
Não, Nilto... (Sempre) Não, Nilto... Fala logo... O que foi?
E ele ria uma gargalhada quase que dramática, divertindo-se, e comentava causos que nunca sabíamos se eram verdades ou mentiras. Com ele, sempre era assim, nunca se podia ter a completa certeza. Hoje, durante a triste nova da tarde, tive essa mesma impressão: Será essa apenas mais uma marmota do Nilto Maciel? Verdade ou mentira?
Havia lá suas coisas, seus livros cuidadosamente separados nas prateleiras, sua cadeira de balanço, seus óculos, o fone e os controles da TV ao lado dela. O computador ligado, assim como a luz da sala, provavelmente ele ainda trabalhava, notívago que era. No sofá, a toalha com o brasão do Fortaleza e uma calça, deixada sempre a postos, para o caso de aparecer visita. No quarto, uma coleção de dvds, uma surpresa para as filhas, num deles um adesivo remetia à sua querida "Tusa". Desabei com isso.
Na cozinha, ao trancar a janela, pude ouvir o eco ainda fresco de sua voz: "Netto, quer uma coca-cola, quer? Eu pego a sua coca-cola... Ou quer alguma coisa mais forte?"
Ao lado, na poltrona, a mala feita, separada com antecedência para ir ao Encontro de Literatura Fantástica, em Sobral, onde abriria o evento. No jardim, livros envelopados que ele nunca lerá, de amigos que ele sempre divulgou em seu blog, dentre eles Enéas Athanázio, Geraldo Jesuíno e Francisco Miguel Moura.
Pensei muito num fantasma que me atormenta. Lembrei das vezes que conversamos sobre isso. Como ele nunca reconheceu esse fantasma, nunca me levou a sério. "Era a vida, Nettó."
Hoje, assisti à saída silenciosa de Nilto de sua casa, deixando para sempre os seus livros colecionados durante a vida de literatura e os seus arquivos de uma obra completa que nós também não conheceremos. O vi carregado e imaginei que, ao invés de homens simples do IML, eram aqueles seus admiradores leais, carregando-o nos braços para um pomposo carro à espera da glória da imortalidade (leia-se não esquecimento) almejada por todo persistente escritor. Acenei timidamente, da sala de visitas, entendendo ser aquela a última vez que nos encontraríamos ali. Lamentei, claro, todos os momentos perdidos, mas prefiro agora pensar no que fizemos e rimos juntos.
Vai-se Nilto Maciel, que nos últimos anos de sua vida esforçou-se para não ser esquecido, publicando um livro atrás do outro, inclusive fortuna crítica e memórias. Vai, mas não vai de todo, deixa aqui a sua voz, os seus pensamentos mais ousados, as fantasias, a sua arte, a transgressão e a loucura de viver "sem fronteiras" a sua paixão literária.
Nilto, vai com Deus, irmãozinho. Fica a sua falta, mas a lembrança nos brilha mais.

17 comentários:

  1. Ray, soube pelo e-mail do Sal.
    Lamento estar longe, impossibilitada de me despedir dele, de abraçar vocês. Ainda em choque com tudo isso - hoje dois meses que meu pai também se foi.
    Estou querendo escrever para Nilto, pela cordialidade e doçura que sempre me dedicou - que segundo alguns, era coisa rara em seu humor provocativo. Engasgada ainda com as palavras. Talvez depois.
    Estou longe, Ray. Mas estou aqui... é só "gritar pra fora" q ouvirei!
    Beijos meus!

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  2. Obrigada por sua linda homenagem, Raymundo Netto.
    Um abraço

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  3. RECOLHIMENTOS
    Belvedere Bruno

    por tempo
    indeterminado
    recolho
    as alegrias
    dou férias
    aos meus sorrisos
    e me entrego
    aberta
    às tristezas
    de minhas perdas
    sangria inútil

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  4. Lamento muito a morte do Nilto. Ainda tô chocado, uma sensação de vaziez.

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  5. Nilto Maciel, encantou-se, encontrou-se com sua imortalidade, adquirida durante a vida, onde menos viveu, pois com luz maior dedicou-se a arte de fiar palavras. Desde de quando entrei na faculdade que eu era seu leitor. Nilto é nome fundamental da literatura cearense contemporânea e também referencia indispensável para os estudos de literatura fantástica. Enviei meu primeiro livro para ele, muito atencioso ele escreveu um comentário sobre o "Lá nas Marinheiras e outras crônicas'' que publiquei na capa traseira do meu segundo livro "A menina da chuva" . Nisso fixamos o contanto via e-mail e correio. Cerca de 15 dias atrás ele escreveu uma crônica sobre ''A menina da chuva'', e, publicou no seu blog, na ocasião também me mandou um e-mail bem bacana com outras observações. Tenho quase toda sua obra, que ele me presenteou. Não o conhecia pessoalmente, mas o tinha como um professor, agora, eterno.

    Bruno Paulino.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Netto,
    o livro que ele me enviou chegou ontem, com um bilhete, quando ele já havia partido e eu não sabia. Deixei para lhe telefonar hoje pela manhã; mas, ao invés disso, recebo a triste notícia de seu falecimento. O texto que você escreveu o trouxe de volta, parecia que ele estava realmente conversando com você.
    Em breve escreverei uma carta para ele (coisa que não se usa mais), já que não posso fazê-lo por telefone, contando-lhe o que aconteceu ontem, ao receber seu livro Sôbolas Manhãs.
    Que manhã triste, a de hoje!

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  8. Raymundo Netto, assim é que se ama um amigo. Amar é não deixar morrer. Você está certo, Nilto Maciel se tornou imortal.

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  9. "Acenei timidamente, da sala de visitas, entendendo ser aquela a última vez que nos encontraríamos ali."

    Raymundo Netto, meu coração está contigo.

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  10. Caro Raymundo,
    Uma notícia chocante... Uma perda sem tamanho...
    Que mais dizer?

    Dercio Brauna

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  11. Amigo Raymundo Netto, parabéns, belíssima homenagem em prosa e verso, como NILTO gostaria! Assim é que se ama um amigo.

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  12. Nossa Raymundo, ainda ontem, recebi pelos Correios o último livro dele. Há uns vinte dias enviei dois livros para ele em agradecimento pelos últimos presentes que enviara a Natal, para mim. Estava achando estranha o silêncio dele, mas sabia que vinha trabalhando muito, com muita obra para resenhar, fora tudo mais que escrevia. Havíamos combinado a apresentação de um livro meu de contos, que deixei com uma editora...vínhamos sempre nos falando, principalmente porque eu estava dando notícias de nosso amigo Túlio. Agora, será assim: um buraco, uma saudade, sem as palavras de incentivo que sempre recebi dele, por e-mail e em meu blog! Agora, "encantou-se", para sempre....

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  13. Raymundo Netto,
    publiquei artigo seu sobre a partida do amigo Nilto Maciel para a Imortalidade. Lembro dele em pessoa numa viagem que fizemos juntos a Cuba de Fidel.Lá não falamos em política, aqui também não.Nosso caso era (e é) a Literatura. Que triste que ficou Fortaleza, os Estados Vizinhos (escrevo de Teresina - PI) e o Brasil inteiro.Lembrança,memória, vou escrever um artigo na próxima semana (internete e jornal de papel), ainda estou olhando o último livro que me mandou "Sôbolas Manhãs", rico em literatura,falando de nós mesmos e de nossas idéias e palavras: seu humor às vezes corrosivo, outras não, mas sempre humor. Não levava a vida a sério, da vida só a literatura, os amigos e os livros e nada mais valia nada. Assim me lembro, e se me lembro! E dos seus belos e inventivos contos! Do seu real realismo fantástico e maravilhoso.
    É isto que temo que fazer,ler, escrever, lembrar os amigos, Nilto e outros até que chegue a nossa vez.
    Até mais....
    Chico Miguel de Moura

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  14. Raymundo Netto, belo e comovente seu texto, despedindo-se do amigo Nilto Maciel. Fui tomada pela emoção e pela lembrança da presença dele: sempre circunspecto, procurando como que ler a alma das pessoas. Talvez para transformá-las em personagens de seus livros tão apreciados. Encantou-se o nosso Nilto, mas de lá, dessa galáxia, ele nos vê, embora custe-nos acostumar com a ausência dele.

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  15. Um texto lindo, bem à altura do que representava Nilto. O impacto que recebi quando da notícia da morte foi tamanho porque no mesmo dia o mais novo livro dele chegou na minha casa, com a carinhosa e habitual dedicatória. Sem palavras. Evoé, Nilto! Abraços, Raymundo!

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