Dizia Borges que o livro não
passa de papel e tinta, o que lhe dá vida e relevo é o que acontece na mente do
leitor. A leitura é um processo tão complexo que talvez não possa ser
totalmente compreendido. É a relação mais íntima que pode existir entre duas
pessoas, pois o autor se revela em sua plenitude, e o leitor descobre a verdade
ali contida, revelando a si mesmo suas próprias verdades.
O leitor está silencioso, sozinho,
debruçado sobre o livro, numa atenção de grande intensidade, pois qualquer
distração faz cessar a leitura. Ele não sofre de interferências externas que
possam censurar sua visão, sua compreensão ou seus julgamentos. Ele é capaz de
ouvir tudo e qualquer coisa sob o prisma mais pessoal e independente. Ele ouve
a própria voz, mas também ouve a voz do autor, do narrador, dos personagens.
Sua mente funciona da mesma forma que a mente do autor, seus sentimentos e
emoções percorrem as mesmas curvas, ele vê e imagina o que viu e imaginou o
escritor. Um casamento. Por isso, é importante escolher bem o livro que vamos
ler. Mas o próprio livro é indefeso, está aberto a qualquer leitor.
O leitor não deixa de ser ele
mesmo, mas passa a ser o livro durante a leitura, e o mesmo ocorre no sentido
inverso: o livro passa a ser o que o leitor pensa dele. Nessa comunhão secreta
e tantas vezes apaixonada, a mente do leitor aprende a funcionar de uma nova
maneira, ampliando as possibilidades de raciocínio e percepção. A verdade do
livro torna-se uma nova verdade, recebendo e incorporando uma nova
interpretação.
O livro é absolutamente flexível.
Cada leitor transforma o livro naquilo que ele, o leitor, é. Há leitores ingênuos,
leitores críticos, renitentes, eruditos, sentimentais, rancorosos,
concentrados, invejosos, generosos, distraídos, racionais, emotivos, afetivos,
livres, presos, os influenciáveis, autônomos, românticos, desatentos ou
atentos, os deprimidos, os alegres... O livro vai se amoldando. A cada geração
de leitores o livro se amolda, indo de encontro às necessidades interiores do
leitor e relativas ao tempo, à época. A mobilidade de um livro é tão
extraordinária quanto a de seus leitores.
Há livros bons, e livros de pouca
qualidade. Livros de alta literatura, e livros rasos. Livros de arte, de
entretenimento, de conhecimento, de informação, de realidades, de sonhos... Mas
todos têm suas qualidades, para este ou aquele leitor, este ou outro dia, para
esta ou aquela geração de leitores. Muitos livros desconsiderados,
incompreendidos, em outro tempo se tornam clássicos, admiráveis. E grandes
sucessos podem simplesmente desaparecer. Só o tempo é capaz de provar a
qualidade de um livro. Só a insistência necessitada do leitor pode mantê-lo
vivo.
Mas há pessoas que dizem poder
medir a qualidade de um livro. Os sábios dizem que a qualidade de um livro
costuma ser proporcional à quantidade de significados contidos no texto. E
quanto melhor é o leitor mais ele apreende os significados do livro, mais ele é
capaz de penetrar os mistérios de cada palavra. Um bom leitor pode transformar
um livro de baixa qualidade em algo rico, assim como um mau leitor, toldado por
preconceitos, pode fazer exatamente o contrário, tornar um bom livro tão plano
quanto a sua própria mente.
A leitura de um livro de ficção
se dá em infinitos níveis, e processos acontecem ao mesmo tempo, em intensidade
que varia de leitor para leitor. Há a leitura da trama, que costuma ser a mais
superficial, em que se acompanham as ocorrências, os fatos, as descrições. Há
leitores que se resumem a isso.
Mas outros observam o
comportamento humano, e o próprio comportamento, realizando uma leitura da
própria vida, pois os exemplos da vida dos personagens fazem surgir memórias de
fatos semelhantes acontecidos na vida do leitor. É a leitura da memória
pessoal. Há a leitura da imaginação, dos sentimentos dos personagens e do
autor, da linguagem, a leitura gramatical, das formas narrativas, da estrutura,
da biografia, da alma, do ritmo, da cadência, da sonoridade, das pausas e
silêncios, da melodia, das palavras em si, de sua organização, do sentido
estético, da ética, da política, da realidade, do sonho, das fronteiras, da
ideologia, a leitura filosófica, moral, de crença e fé, a da história humana, a
leitura da literatura que traz toda a história do espírito humano, e uma
infinidade de leituras, quase todas inconscientes, profundas. Assim, cada
leitura pode ser uma aula, para o bom aprendiz. Por isso é bom lermos um livro
com o espírito aberto.
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