Não
há memória para aqueles a quem nada pertence.
(Ecléa
Bosi)
Sentou-se exausta no sofá e olhou
para a irmã como se dissesse: “desisto”. Mas era o que realmente haveria de ser
feito, desistir. O pai, Antero Quijana, seria enterrado descalço. No entanto,
na cidade vizinha, os sapatos que as filhas e a viúva procuravam ainda estavam
na janela de Rosa Branca do Carmo, que não fazia a menor ideia de que os pés de
Antero precisavam deles. Era um par de sapatos sérios, de tons sóbrios, um
típico exemplar da presença masculina que o pequeno quarto de Rosa Branca do
Carmo nunca tivera, e ela explicava, serenamente, a quem perguntava: “quando
cheguei, já estavam aí e aí os deixei”. O pior é que a dona da pensão
também dizia o mesmo, ou seja, os sapatos de Antero Quijana não tinham memória.
Porém, devido à gravidade do
assunto, com o advento do automóvel e do telefone, o resto ainda estaria
por vir, fizeram a filha mais nova bater, naquela mesma noite, à porta da
estudante:
— Vim buscar os sapatos de meu
pai. Devolva-os.
Fechou a porta na cara da filha
mais nova. Ao voltar, estava com o par de sapatos nas mãos, transfigurada
na mulher mais bonita da cidade. Quantas noites não sonhara escolhendo peça por
peça da roupa, cada dobra da saia, o laço da blusa, a lingerie, as cores
da maquiagem, o cheiro do perfume para encontrar ele, o dono do par de sapatos
sérios de tons sóbrios?!
Rosa Branca do Carmo chorou,
ininterruptamente, 18km. Era mais nova que a filha mais nova, fazia o último
ano no colégio de freiras onde era soprano no Coral da Virgem Poderosa, e
escrevia, para pagar seu aluguel, contos eróticos sob o pseudônimo andrógino de
C.C.
Antero Quijana era um homem de um
metro e oitenta e cinco, não era mais moço, mas também não aparentava a idade
que tinha. Era o único varão da família. Perdera o pai ainda menino, fora
criado pela mãe e pelas três irmãs, as quais, também como ele, que tinha quatro
filhas, não geraram filhos homens e, mesmo fora do casamento, as amantes nunca
lhe deram um filho. Conta-se que as filhas de suas filhas tiveram outras
filhas, e essas geraram mais meninas, as mais belas mulheres, as quais se
casaram com estrangeiros ricos e espalharam mais fêmeas pelo Ocidente e pelo
Oriente. Ele mesmo contava que, por gostar demais de mulher, seu sangue era
feminino e fresco, era quente e arredio, seu deitar era morno e manso. Assim,
lhe nasciam mulheres aos montes e lhe chegavam mais para servi-lo.
Rosa Branca do Carmo, ao adentrar
a casa, não sabia que encontraria Antero Quijana coberto de flores e com as
mãos postas. As outras mulheres se entreolharam sem saber de onde ela vinha,
nem porque estava tão bem vestida, imoralmente linda, com os sapatos do
falecido na mão.
Fora o homem mais bonito que vira
em toda sua vida, os cabelos grisalhos, bem arrumados, a pele branca sem sinal
de morte e os pés descalços.
— “Teus cabelos são como um
rebanho de cabras descendo impetuosamente pelas encostas de Galaad. Teus dentes
são como um rebanho de ovelhas… Tua face é como um pedaço de romã… Há sessenta
rainhas, oitenta concubinas e inúmeras jovens mulheres, uma, porém, é a sua pomba, uma só”.
— Louca! — gritou a segunda filha
— Calce os sapatos de meu pai e vá embora!
Como todo corpo que morre, as
extremidades de Antero Quijana incharam. Antero seria enterrado descalço. Rosa
Branca do Carmo, assim como veio, saiu pela porta da frente com os sapatos nas
mãos sob os rumores das outras mulheres. A viúva, pela fresta da porta,
divisou-a cruzando a varanda, o vestido de veludo azul, os cabelos negros, a
pele alva sem tempo.
Mesmo depois de enterrado, Antero
Quijana arrastou o amor de Rosa Branca do Carmo com ele. Sentada no meio-fio,
com os sapatos nas mãos, conversava sozinha, mas não era tida como louca.
Diziam que aquilo passaria com o tempo, afinal, não se morre mais de amor. Mais
tarde, assumiu o pseudônimo andrógino de "C.C." e foi embora para a capital.
Casou-se. Dizem que escreveu novelas para o rádio e a televisão, mas não se
sabe quais ao certo, pois, cuidadosamente, sempre modificava seu nome para que,
como os sapatos de Antero, não lhe restasse memória.
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