Clique na imagem para ampliar (Fonte: O POVO, de Carlus Campos)!
Publicado,
originalmente, em O POVO, em 2008.
Dados os últimos acontecimentos
fenomenológicos e sísmicos que vêm, literalmente, abalando o Ceará, ouço, todas
as manhãs, falas sobre “vórtice ciclônico de ar superior”, “diminuição da
temperatura no oceano Pacífico”, “zona de convergência intertropical” entre
outros palavrórios pouco convincentes, principalmente após a famigerada noite
pirotécnica de relâmpagos que despertou a cidade de Fortaleza. Digo "despertou",
para os outros, pois eu mesmo nem dormia, e descobri in loco a razão de tudo isso.
Era tarde. Vinha passando ao lado da catedral que, à
solidão da noite, de tão sombria, chegava a dar calafrios. Na barra da saia da
Matriz, demônios com unhas maiores que os dedos, entre cusparadas, invadiam as
virilhas de meretrizes, sugando a alma das jovens criaturas. À ladeira do
Forte, homens e mulheres seminus surgiam embriagados com garrafas na mão e
olhos perdidos.
Pressenti ter que sair logo dali. Contudo, rompeu a
chuva e me abriguei embaixo de uma lona velha da feira. Sons que mais pareciam
os de latas caindo nos telhados, emouqueciam. “Que trovões!”, pensava, relampejava
tanto a ponto da noite quase parecer o dia. Nisso, baratas, escorpiões e os
pombos do Palácio do Bispo se dirigiam a caminho da praia. Morcegos campeavam a
praça dos Leões, enquanto que, na igreja do Rosário dos Pretos, ossadas
esquecidas, intuindo a presença do mal, se arrastavam pela escadaria. Gatos de
cemitério saltavam de todos os lados, como numa peste. Mesmo diante da chuva, o
calor era tão grande que estalavam as paredes e vitrais. No ar, talhos de
galhos secos e linhas comidas por cupins dos telhados históricos. Os bêbados,
os drogados, as prostitutas, os passantes noturnos do centro da cidade clamavam
ao deus do Ceará: “É o fim do mundo, o fim do mundo!”
Sentindo meus pés úmidos, constatei que as águas do
Acaraú, diante da epigênese epifânica da vida, subverteram em trombas d’água na
Fortaleza impassiva, enquanto que, na colina do Marajaik, os verdes abutres
voavam a grasnar ameaçadores.
Do horizonte, uma imensa nuvem de poeira deitou-se
sobre a praça da Sé sufocando a todos, inclusive os comerciantes da feirinha
despejada.
Logo correu a notícia de que outros homens, a entupir
os corredores dos hospitais da aldeia, apareceram com manchas vermelhas, dores
no corpo e olhos injetados em sangue, vítimas de um vírus latente trazido na
poeira da destruição. Foi então que vi, em meio à negra nuvem, a imagem
grotesca de um dragão voador. Lembrei a profecia: “Reza a lenda que o mundo vai
se acabar pelo Ceará. Um dragão monstruoso dormiria silencioso em sua morada
sob uma cidade que, embora tenha muitas igrejas e santos padres, estaria
condenada à destruição. Esta cidade é Sobral!”
Sim, leitor amigo, os tremores de terra em Sobral
foram causados pelo monstro desperto, a cumprir a sentença de pavor e morte,
mandando às favas as placas tectônicas e os vulcões submarinos. Da mesma forma,
aqueles “trovões” eram frutos da inexperiência aeronáutica da criatura que
tombava nas torres da catedral e nas casas velhas da Justiniano de Serpa.
Aliás, não sei se vocês souberam, mas elas desabaram!
Pasmo, assisti à romaria de sobralenses descambando, e
até assumindo cargos públicos, em Fortaleza. Viriam os vivos, viriam todos e tudo,
até o eclipse.
Foi quando chegou um homem magro, pele marcada de
sinais e nariz quase tombando sobre o bigode alvo. Reconheci: era o poeta José
Alcides Pinto.
— Ainda por aqui, Zé? — estranhei.
— Mundico, quem pode afirmar com absoluta certeza se o morto não está vivo, embora
morto esteja? — respondeu, arregaçando as mangas e puxando o cinto da calça.
O cego curandeiro, João da Mata e os tremembés de
Almofala partiram em luta contra os demônios, e muitos, inclusive os filhos de
Janica, foram abatidos.
— Maldição,
maldição, maldição! — gritou, aborrecido, Alcides ao dragão que, ao
reconhecê-lo, pôs-se a vomitar chicotes de fogo que mais pareciam relâmpagos
revelando uma cidade que já não mais dormia.
Zé Alcides
corria e saltava, de um lado para outro, fugindo do dragão. Num momento, arrancou
um pedaço de raio fincado no asfalto que derretia, ostentando-o como
lança diante da fuçalha daquele que o encarava. Eram criador e criatura num
embate final. Foi quando ele abriu a braguilha e, para fúria do lagartão, mijou
em suas patas. Humilhado, o monstro lançou o poeta contra a parede da catedral,
coiçeou, mas ele resistia. Mesmo enfraquecido, Zé Alcides conseguiu lançar, na
venta do dragão, uma garrafa com uma mosca presa, fazendo com que ele se
dobrasse em dor:
— Ainda vai, filho de uma égua? Lascou-se! —
comemorava, alquebrado.
O dragão, como mágica, transformou-se em constelação e
seus demônios renderam-se em cinzas; o sol nasceu brilhante e a esperança
despontou. Aos pés da calçada, em meio à lama do Acaraú, meninos de rua
passaram a catar siris, enquanto as pessoas chegavam desenterrando a cidade. Em
pouco, na falta do que dizer de uma vida monótona, só se falava na noite
chuvosa, nos trovões incomodantes, nas fagulhas dos céus, nos tremores de
terra, na peste da dengue. No centro da praça, entre palhaços, pervertidos e
meretrizes, o poeta, prostrado ao colo da jovem Berenice — senão não seria o Zé
Alcides —, esgotava:
— Não tenho mais nada a fazer no mundo. Vou conviver
com os peixes e as sereias, os corais e as algas, afinal, tudo o que vive se
acaba, tudo que foi criado terá fim!
— Morreu o poeta maldito; bendito seja o poeta! — gritava um louco, enquanto Santana do
Acaraú fechava os olhos, deixando os moradores às escuras...
José Alcides Pinto (1923-2008), o poeta maldito, nasceu no
povoado de São Francisco do Estreito, Santana do Acaraú, Ceará. Abandonou
empregos públicos para se dedicar à literatura. Autor de O Dragão, Os Verdes Abutres da Colina e Diário de Berenice, dentre outros. Alguns dos trechos do texto
foram adaptados da obra de Zé Alcides.
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