sábado, 19 de abril de 2014

"Boca de Beijar", um conto de Raymundo Netto, para O POVO


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Era de uma loucura por beijo. Fazia tudo, de tudo, por um beijo. Não lhe negassem um beijo por nada. Antes a morte! Porém, não abriria mão, digo, a boca, do beijo final...
Fosse uma mocinha inexperta, pregada à soleira dos castos anos, a avistar ao longe as possibilidades ainda de uma ingênua paixão, vá lá! Mas ouvir de um homem feito, quarentão, mais vivido e passado do que colarinho de político, o discurso meloso sobre um mero beijo, soava para nós tal qual uma extravagante promiscuidade.
De fato, Nicolau era um homem comum, sem nenhum dote a justificar o aparente sucesso com as mulheres. De novo, apenas aquela devoção à teoria sobre o beijo que, em alguns momentos, para nosso deleite de porta de bar, assumia um tom sobrenatural:
– O beijo, meus amigos, não duvidem, é o mais poderoso afrodisíaco que há na Terra. Escolho as mulheres pelo beijo. Deixo-me vencer por ele que me há de ser sempre doce e profundo, pleno, demoroso, longo e largo como uma toda vida...
Daí, em torno do romeu de olhos cerrados, surgia uma aura frouxa, como rósea névoa, a lhe tomar o rosto, enquanto  naqueles lábios subitamente tácitos, eu juro, podíamos até sentir o fruto etéreo daquela boca fanaticamente desejada.
Não era segredo para ninguém. Aliás, ele mesmo fazia questão de espalhar a sua tara por bocas. Até as mulheres que, por fado, lhe caiam na conversa,  sabiam da sua fama de imodesto e cobiçoso beijador. No começo, foi levado na pândega, mas depois, com o tempo, veio o incômodo da vizinhança. Suas vítimas avolumavam-se dia após dia. O inaceitável é que, após o previsível desenlace, elas sofriam horrores, dignas de uma viuvez de falecido vivo. Maldiziam o desgraçado, choravam às esquinas, mas nunca que jamais o esqueciam. Por toda a região se sabia: "ai de quem as tivesse depois de Nicolau!"
Ó único que parecia não se inquietar com isso era o próprio Nicolau, a se passar tão serelepe quanto antes, entregando os beiços sedentos a novas candidatas seduzidas pela experiência idílica de seu beijo vicioso.
Os outros rapazes, num misto de vergonha e incompetência, passaram a hostilizá-lo, assim como os familiares das ex-namoradas, afinal, lhes parecia inconcebível aquela despudorada e inarredável dependência pela boca alheia.
Assim, o galã se viu obrigado a sair menos às ruas. Quando o fazia, era um rebuliço: as mães cerravam as janelas dos quartos das moçoilas já inclinadas à tentação, enquanto procuravam, com custo, segurar as demais, ainda por ele encantadas, na busca desesperada de uma reconciliação.
Numa manhã, o inevitável: "Nicolau foi encontrado morto, provavelmente a pauladas, numa vereda do boqueirão", contou-nos, com descarado alívio, o delegado, pai de uma das moças beijocadas por Nicolau. Deste modo, muitas mães, eufóricas, abriram com as "boas novas" as cortinas e as janelas das alcovas de suas filhas que, assim como outras surpresas e honradas mulheres, naquela mesma manhã, despertaram, para o espanto geral, sem bocas.

3 comentários:

  1. Nos dias atuais,se este beijoqueiro, andasse por aí à espreita de uma boca,não lhe faltaria pretendentes,visto a escassez de bocas do gênero masculino no planeta. rsrs Gostei do conto,Raymundo Netto.

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    1. Hahaha Eu não digo nada, Zinah. Valeu pela leitura de sempre, minha querida amiga.

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    2. Sou admiradora da sua escrita,sabes muito bem disso.Valeu,querido!

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