quarta-feira, 15 de agosto de 2012

"Quando o Amor é de Graça XVI: Aguente o tranco e vamos simbora!", crônica de Raymundo Netto (14.8)




Cena final de filme, filosofia de vida em para-choque de caminhão: “Espere o melhor, prepare-se para o pior e aceite o que vier!”
Difícil definir vidas, tão diversas em essências e existências que, desprezando os frios conceitos fisiológicos e/ou filosóficos, dentre elas não há uma igual.
Penso na vida sempre como um “ponto zero”. As pessoas não sabem a que vieram, chegando indefesos, via impulsos primitivos voluntários ou não de seus pais, e sem condições de escolha. Vivem, simplesmente, porque existem, com a garantia de que “existir” não significa “viver”. Para alguns, sem dúvida, o parto é o certificado de sua condenação eterna. Certa mesmo na vida, sem exceção, apenas a morte, figura malquerida por uns, ambicionada por outros, experimentada todos os dias pelos mais afoitos e relaxados, mas também por todos nós, a cada dia cumprido. A vida, sem engano, nos apresenta a morte.
Tive e tenho amigos suicidas. A maioria apenas praticante — os “bungee jumpers”, outros poucos, entretanto, alcançaram êxito em seu ritual de adeus. São pessoas solitárias e ensimesmadas, mesmo quando entre amigos — muito seletos — aparentam espirituosidade e alegria. Em geral, são queridíssimas, gostam de dar conselhos, preocupam-se com outros, distribuem esperança. Irônico isso: distribuem aquilo que não trazem ou será que assim se esvaziam de toda ela?
Para mim é claro que a recusa dessas pessoas não é à vida, mas, sim, à Humanidade, este ser misterioso, interesseiro e hipócrita, semeador de mentiras, ganâncias, vaidades, exploração e maldade misturada com a mania de ter e consumir. Os seres humanos, coitados, em milhares de anos de uma discutível “evolução”, tornaram-se mecânicos, frívolos, capazes de acreditar e repetir discursos manipuladores e clichês, de defender avidamente os mais torpes princípios dos outros, inconsistentes, incapazes de pensar por si, de entender os outros, de perceber a essência das coisas e das pessoas, de descobrir que a vida é colorida pela diferença e não pelo padrão.
Da mesma forma, muitos vão, religiosamente, aos seus templos sagrados movidos pelo supremo egoísmo, rogando apenas por si e pelos familiares, esperando com as suas “bocas escancaradas e cheias de dentes” a gloriosa salvação de céu doirado, enquanto fora do vestíbulo navicular chutam cachorro magro, acumulam seu usufruto, fecham os olhos ao sofrimento alheio e espalham o preconceito e a superficialidade.
Quando me empaterneci, passei a sentir todas as crianças ao redor como minhas. É uma sensação engraçada. Emocionam-me as crianças, mesmo as desconhecidas, com uma ternura que antes não conhecia, de forma que o sofrimento do filho alheio passou a tocar-me profundamente. Talvez esse amor pelos filhos seja o único que nos consiga desviar o pensamento do absoluto ego.
Assim, o caso do garoto João Felipe, de 17 anos, brasileiro, arrastado pelo mar revolto e frio da Nova Zelândia enquanto escalava uma rocha do Parque de Paritutu, com amigos e instrutores de uma escola, deixou-me inquietado.
Hoje, “dia dos pais”, data festejada e alegre, não consigo deixar de pensar como seu pai, o Célio, deve estar se sentindo. Li sua declaração na confiança de ainda encontrarem o filho: “Ele (o filho) é um cara danado”. Nesse momento, sei, tantas imagens passaram-lhe à frente, coisas que o mar não conseguiria levar. Como deve ser difícil soltar a mão delas e simplesmente ultimar o aceno à esperança. Eu também acredito na volta de seu filho. Como acredito. Porque a volta nada tem a ver com a partida. A volta é simplesmente um nó que não se desfaz, onde o tempo, o espaço e a matéria não existem. A volta é a certeza do reconhecimento de um amor verdadeiro e dedicado por toda uma vida. Vi um vídeo do garoto na internet e percebi que ele já conhecia o que muitos procuram, em vão, por longeva vida... e era muito feliz!

10 comentários:

  1. Cronica muito bonita. um presente no dias dos pais. obrigada. Clelia

    ResponderExcluir
  2. "Talvez esse amor pelos filhos seja o único que nos consiga desviar o pensamento do absoluto ego."

    Talvez justamente o contrário, talvez o próprio ego, afinal, nos eternizamos em nossas criações, e o filho é uma delas.

    Contudo, isso não tira o fato do ser humano se compadecer com o próximo, filho ou não.

    Achei muito perspicaz a parte dos suicidas, gostei bastante.

    Tenho minhas dúvidas se os conceitos fisiológicos ou filosóficos são tão frios assim, há tanta admiração e deslumbramento em descobrir a verdade. Ou não, talvez o mundo seja frio mesmo.

    Gostei, em especial, desse trecho que tenho de citá-lo: "Vivem, simplesmente, porque existem, com a garantia de que “existir” não significa “viver”."

    Massa!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Marcos, não sei se você é pai. Tem que ser para entender o que digo. Mas concordo que muitos, pelo ego, transformam os filhos numa espécie de continuum ego... rsrsrs Mas a doação de pais aos filhos, a atenção voltada ao outro, mesmo que por uma volta a si, é um movimento que pouco encontro de outra forma.
      Quanto ao descobrir a verdade, desconfio que isso seja possível. Parece-me que verdades são muito pessoais sempre. Podem rotular-se no senso comum ou não, mas o que se conceitua, geralmente se condena. As palavras são pequenas para coisas grandes demais.
      Obrigado pela leitura, Marcos.

      Excluir
  3. Bonito.
    Singular é a analogia entre suicidas potenciais e o dia dos Pais.

    ResponderExcluir
  4. Suas crônicas tem sempre um toque muito pessoal (quais não tem?), mas muito mais num sentido de que você sempre se deixa levar e nessa todo seu potencial paterno ainda falou mais alto... Muito bonita essa esperança pelo novo apesar de tudo que ele (não)revela.
    “Espere o melhor, prepare-se para o pior e aceite o que vier!” Sempre fez muito sentido pra mim esse pensamento, acho até que me peguei um pouco sendo citada nos exemplos (não revelarei qual momento)... Passarei a esperar essa volta (em tudo talvez), nunca a tinha pensado assim...

    ResponderExcluir
  5. A volta é um sentido de vida. Voltar nada tem a ver com a partida. Voltamos todos os dias ou não, mesmo quando estamos no mesmo lugar. É meio que quando desistimos de viver, algo inconsciente que nada tem a ver com a morte, como se vivesse por meio de aparelhos, como celulares, TVs, carros... rsrsrs Meio louco isso.

    ResponderExcluir
  6. Parabéns. Texto muito bonito. Eu moro na NZ e tenho 2 filhos. Eu também me sensibilizei bastante pelo que aconteceu a este menino e tem sido difícil tirar da minha cabeça como somos vulneráveis e como temos tão pouco (ou nenhum) controle sobre as coisas da vida e da morte. Não paro de pensar no sofrimento dos pais do Felipe. Ë muito triste. :-(

    ResponderExcluir
  7. Jeanine, você mora na Nova Zelândia? Como tomou conhecimento desse texto e do blogue? Por curiosidade... Agradeço pela leitura e pela sensibilização. Humanidade e empatia são avlores indispensáveis. Abraço.

    ResponderExcluir