quinta-feira, 16 de agosto de 2012

"Alma Gêmea", de Marcelo Novaes (16.08)



Vilma está com as quatro patas no chão, com aquele ventre inchado e a cloaca voltada para o céu, a perniciosa e vadia. Ela tem faltado ao trabalho e eu deixo recados no celular. Está alienada e inválida e cheia de querer ser, perdeu seu fraco traço humanitário, a perspectiva de uma função social, a chance de ter alguma formulação bonita sobre as coisas, o ensejo de virar os doentes no leito e limpar-lhes as bundas. Ela está sem perspectivas e sem Deus, mas com meus manuscritos e minhas cartas de amor. E quando alguém me diz, "olha, você sabe quão poucas pessoas gostam de você, e Vilma é uma delas", eu adianto que nessa terra para alguns as coisas se encaminham para o nada, as amizades as fidelidades tudo se encaminha para o zero, e que elas não se importem nem gastem seu verbo porque para alguns desses chega a véspera do fim, o último amigo a derradeira esperança de consolo, e depois a miséria a noite o inverno de agosto, e passar a língua no dente cariado como último passatempo, e que esse dia é o dia definitivo de uma beleza contundente e terminal, e que não se preocupem em gastar saliva neurônios argumentos, porque eu já cheguei lá nesse lugar inóspito sem oxigênio, eu já cheguei ao heliotrópio negro invertido que é o ponto de breu em torno do qual o sol gira e some [o ponto no qual gira e some o sol]. A Vilma não trabalha mais, não atende aos doentes, e agora rouba as palavras dos outros, ela diz que são dela, diz que somos almas gêmeas, qual o quê. Quando eu deixo recado na secretária, ela liga de algum orelhão e berra esbraveja sem nenhuma noção, "sua estúpida filha de uma égua, isso aqui é meu, são minhas de direito as palavras, nós somos gêmeas mas você é quase pior do que eu", sem nenhuma noção nenhum critério e desliga. Assim vamos e assim não vamos. Toda impossibilidade de alcançá-la e meter-lhe a mão e arrancar-lhe os dentes. Devia ter uma atitude afirmativa desde lá atrás, desde quando vestia minha espiga de milho com uma saia, furava-lhe os olhos com tachinhas, e lhe chamava "minha filha, minha filha".

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