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O livro de
contos Os acangapebas (Expressão
Gráfica e Editora, 2012), de Raymundo Netto, obteve o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura,
da Academia Cearense de Letras. O autor é conhecido cronista do
jornal O POVO, de Fortaleza, e atualmente é editor adjunto das Edições
Demócrito Rocha.
As narrativas do
livro são compactas, breves, não passando de página e meia, em sua grande
maioria. O sugestivo “Luzeiros”, que abre o volume, tem como protagonista um
ex-pescador que produz “a canivetes” pequenas jangadas para vender aos
turistas. O filho Francisco, que também se volta para o mar, representa a
continuidade da tradição – ou a permanência da miséria dos que, nas praias
cearenses, sobrevivem da pesca.
Carmosina, de “O
mistério do sótão”, é uma personagem ambígua, enigmática. Ao mesmo tempo que é
vista pelos feirantes como uma mulher áspera e “de fibra”, com seus “ataques
matinais”, é também solitária, com uma profunda carência afetiva que a faz ter
apego por uma boneca antiga, “de cabelos desgrenhados”, à qual se abraça,
dizendo coisas do tipo: “– Oh, meu bebê, o que andou fazendo hoje, hein? Que
saudade. E eu estava tão sozinha...”. Dramática personagem.
Apagada e
infeliz no casamento, Cícera, de “Álbum de fotografias”, é uma personagem muito
bem elaborada. Expressa a vida de mulheres que apostam e se anulam nos
relacionamentos, que não crescem socialmente, inviabilizadas e/ou imobilizadas
pela falta de liberdade. “Álbum de fotografias” é, nessa perspectiva, um texto
exato, agudo.
“Gato”, além do
tema da solidão, a de um velho que tem como único e verdadeiro amigo um gato,
joga com os interesses humanos. No caso, com a avidez dos que, decepcionados,
esperavam obter a herança deixada pelo velho.
“A ventura de um
morto”, em seu primeiro movimento, lembra “Uma vela para Dario”, de Dalton
Trevisan – o indivíduo que, na rua, agoniza e recebe a indiferença dos
transeuntes ou tem seus objetos surrupiados por aqueles que supostamente o
“acolhem”. Mas no conto de Raymundo Netto a impiedade parece se intensificar.
Diz o narrador: “Uma senhora, passando na calçada, o viu estirado, empastado,
sujo e, aproveitando o sinal, o arrastou até uma viela próxima. Chegando lá,
examinou à sua volta. Não viu ninguém. Arrancou-lhe um olho, correndo com um
sorriso maroto nos lábios: uma córnea!”.
“Os pregos”
retrata a rotina, as relações de trabalho desestimulantes e desfiguradoras do
homem no mundo moderno.
No kafkiano
“Trégua”, a protagonista não vira barata, mas é ameaçada o tempo todo pelos
insetos na quitinete obscura onde passa a viver. Conto de atmosfera
angustiante.
“Tragédia” tem
um velho viúvo como protagonista. O viúvo tem grande apreço por sua estante de
livros, de onde, certo dia, despenca um volume intrigante. Conto sobre solidão
e loucura.
“Os
acangapebas”, que dá título ao livro, é um conto triste, trágico. Uma nota, no
pórtico, informa que a palavra “acangapeba” significa “cabeça-chata”. Assim, o
conto metaforiza a migração cearense, nordestina. A morte da criança, ao final,
ritualiza as perdas que, historicamente, os deslocamentos acarretam. Remete,
por exemplo, à situação vivida por Bentinho e sua família em O quinze, de
Raquel de Queiroz.
Em “A bodega” o
contista flerta com o cronista (para não dizer com o sociólogo). Conto que traz
diálogos rápidos e reproduz as falas e costumes da gente simples de um bairro
de Fortaleza em contato com o acolhedor e carismático bodegueiro Toinho. Um
retrato do modo de ser e viver de vários tipos da capital cearense, flagrados,
com sensibilidade e certo humor, no universo de uma verdadeira instituição da
cidade: a
bodega.
E seguem assim
os contos de Raymundo Netto, que tem como marca estilística importante a
invenção, aqui e ali, de neologismos, a exemplo de “saudadejavam”,
“tempotodotodotempo”, “calmacalmacalma”, etc. Neologismos que surtem efeito
positivo, enriquecem a frase.
O conto de
Raymundo Netto, reitero, é compacto, sugestivo. Conto urbano, que flagra
uma série de situações típicas do mundo atual. E que, seguramente, coloca o
autor entre os bons contistas nordestinos contemporâneos.
Rinaldo de Fernandes, para o Blog da Beleza (http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/)
Escritor e crítico. Doutor em Letras pela UNICAMP e professor de
Literatura da Universidade Federal da Paraíba. Organizador do livro O Clarim e a Oração: cem anos de Os
Sertões (Geração Editorial, 2002). Como pesquisador, fez os textos da antologia
Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, organizado por José Nêumanne
Pinto (Geração Editorial, 2001). Autor de diversos livros de contos, como O Caçador (1997), O Perfume de Roberta (2010), Rita
no Pomar (2009) e O Professor de
Piano (2011) – os dois últimos foram finalistas do Prêmio São Paulo de
Literatura. Organizador das antologias Contos
Cruéis (Geração Editorial, 2006), Quartas
Histórias (Garamond, 2006) e Capitu
Mandou Flores (Geração Editorial, 2008). Escreve para os suplementos Rascunho (Curitiba) e Correio das Artes (João Pessoa).
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