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Eis que me
chega pelo correio, de Fortaleza, um livro de contos de Raymundo Netto, curador
da última bienal daquela cidade. Não se faz necessário colocar maiúsculas em
títulos ou titulações, cargos, exercícios ou funções, apenas em nomes próprios.
E seu livro tem nome próprio: Os
Acangapebas. Os “cabeças-chatas”, em tupi-guarani. Os cabeça-chata, no
singular, soaria bastante autêntico, em Sampa ou em latitudes nordestinas.
Explico: as singularidades parecem cabíveis numa compreensão de gênero de vida:
fado ou matriz existencial.
No telhado das
casas de uma vila, aqui perto, miam os gatos. Se o cio humano ao menos deles se
aproximasse, com a frequência com que cantam o acasalamento, seríamos todos
erotômanos, a julgar pela curvas do gráfico sonoro que me é apresentado. E
tendo esse afinado coro ao fundo, eu me debruço pelos cerca de quarenta contos
deste livro em papel reciclado. Papel-pólen sempre me soa bem aos olhos e ao
tato. Também prezo essas coisas em livro impresso: como tu, leitor, sou idiossincrático.
Ao ler contos
curtos, espero que as palavras tremulem. Procuro sonoridades. Encontro-as, em
todo o conjunto. Espero desfechos, com ou sem fecho, e aqui estão eles, incisivos ou cirúrgicos. Alguns
evocam sorrisos. Onde parece haver lacunas, entendamos: personagens são
lacunares, como alguns de nossos balbucios do dia a dia deixam entender. Ou
não? Assim se dá nos primeiros “Luzeiros” do livro, o conto inicial. A voz
rouca dos corais pode arrematar a fala humana.
Espero, no
entrever de luzes e sombras da palavra escrita, uma voz que soe própria.
Raymundo Netto a tem, sem que me remeta a outros Raymundos Nonatos. Nonada. Em
textos regionalistas podemos pecar pelo excesso de caricaturas. Não vejo
excesso, mas certa poiesis na construção das falas e dos temperamentos. As
mulheres todas me parecem bastante verossímeis, o que é virtude na pena de
autor macho. Revela percuciência, no mínimo. Empatia, por certo, neste caso.
Os textos
fazem eco ao coro dos gatos: incansáveis, ambos. Há muitos gatos pisando macio
ou cinicamente por estes contos. Um sorriso outro, mais cínico ou cigano, que o
sorriso do gato de Alice. Não é texto de voos, mas de rasgos e planitudes chãs.
Seu vocabulário é construído na medida da necessidade suscitada pelos dizeres,
daí a poeisis, sem artifícios. “A Mulher de Antes” aponta para uma
anterioridade circular que lhe permite ser espelho para si mesma, sem precisar
se mover. Quase. “A Mulher dos Gatos” faz lembrar dos gatos que ouço aqui
mesmo, enquanto escrevo. Mas há um “Gato”, solitário, em conto próprio que
remete a certas disputas humanas e a certa troça de tudo isso, que não se
confunde com o roçar febril das mucosas em perpétuo cio. “Cadeiras na Calçada”,
“Bodega”, “Circo”, “Os Acangapebas”, revelam vozes fidedignas em suas
ambiências, com o toque sintático-semântico de quem os apresenta. “O Homem que
Virou Relógio” e o “Filho do Cão” maximizam nossos pactos, tantas vezes
implícitos, para que se tornem legíveis em verboimagem. Nada é gratuito. Assim,
o “Intermezzo” invertendo as cores de papel e texto, branco sobre negro, tem
sua razão exposta ali mesmo, e reconfirmada ao término. Se Goethe clamava por
luz ao estertorar, e se Van Gogh murmurava “não ter fim o sofrimento” na
condição de tentar dar cabo ao seu [qual um Buda cego que chegasse ao veredito
da existência-como-dor, sem saber como encaminhar o fato], Raymundo Netto
apresenta sombras plenas de lume nelas embutido. Lumes adejando saudades. Ou
“saudadejando de distâncias o horizonte”, como ele diria, no meu lugar.
Nasceu em São Paulo, em 1961. Considera-se um psicanalista que
escreve. Estudou música: Violão clássico e teoria musical. Publicou Cidade de Atys (Ateliê Editorial,1998). Tem um blog
de poesia e outro de prosa poética, ambos já concluídos, segundo sua ideia de
quatro anos atrás de fazer blogs finitos. Tem um blog-ensaio sobre ferimento
narcísico e proscrição: “O Olho Que Nos Olha Nos Olhos”, a ser concluído em
novembro de 2012. Não pretende mais publicar livros, pois está satisfeito com a
escrita digital. Também colabora com a Revista
Corsário. Blog de poesia:http://olugarqueimporta.blogspot.com.br/.
Você é um presepeiro das letras, Raymundão.
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