Logo no
início do terceiro ensaio ("Animismo, Magia e Onipotência dos
pensamentos") entre os quatro que compõem Totem e Tabu há uma nota de rodapé que se reveste de uma conotação
divertida.
Ali, como
em outras passagens, Freud lamenta a necessidade de sintetizar muito
sumariamente um vasto material (a maior parte ligado a pesquisas etnológicas e
mitológicas). E arremata: “A autonomia do autor apenas se pode manifestar na
escolha que fez dos temas e das opiniões” (todas as citações, salvo indicação
em contrário, foram extraídas da tradução de Totem e Tabu: algumas correspondências entre a vida psíquica dos
selvagens e dos neuróticos [no original "Totem und Tabu.Einege
Übereinstinmmugen in Seelenleben der Wilden und der Neurotiker”], realizada por
Renato Zwick (L&PM, 2013), com revisão técnica de Paulo Endo; para fins de
consulta e comparação, utilizei também as seguintes traduções: 1) de Paulo
César de Souza ("Totem e Tabu, Contribuição à História do Movimento
Psicanalítico e outros textos", volume 11 de “Sigmund Freud- Obras
Completas, Companhia das Letras, 2012)—uma edição um tantinho “enxugada” dessa
versão de Totem e Tabu foi publicada
à parte pela Penguin/Companhia das Letras (2013); 2) de Órizon Carneiro Muniz
("Totem e Tabu e outros trabalhos", 1913-1914, volume XIII da Edição
Standard Brasileira sãs Obras Psicológicas de Sigmund Freud, Imago, 2006).
A
diversão fica por conta do “apenas”. Ora, Freud sempre foi um autor muito
consciencioso com o material pesquisado; quem leu, por exemplo, “A
Interpretação dos Sonhos” lembrará que ele identifica escrupulosamente suas
fontes e se vale de abundantes (e muito bem escolhidas) citações, de forma a
fornecer realmente uma visão enciclopédica do tema de que está tratando. Mas
todo esse escrúpulo não o impede de, ao fim e ao cabo, tratar toda aquela
vastidão apenas como território introdutório para o essencial, o realmente novo
e desbravador, que vai surgir da “escolha” que fez dos temas e a expressão das
“opiniões”; em suma, aquilo que “apenas” lhe coube.
E quando se tem consciência do teor das conclusões de Totem e Tabu, cuja publicação original se tornou centenária em 2013 (ele estava com 57 anos), tão combatidas, ridicularizadas, tidas como escandalosas e fantasiosas, um salto no abismo (mesmo assim entrando na corrente sanguínea das ideias-chave do século XX), afora a própria personalidade do seu autor, aí sim a nota ganha um toque quase malicioso.
E quando se tem consciência do teor das conclusões de Totem e Tabu, cuja publicação original se tornou centenária em 2013 (ele estava com 57 anos), tão combatidas, ridicularizadas, tidas como escandalosas e fantasiosas, um salto no abismo (mesmo assim entrando na corrente sanguínea das ideias-chave do século XX), afora a própria personalidade do seu autor, aí sim a nota ganha um toque quase malicioso.
Antes de comentar as ideias centrais dos
quatro ensaios enfeixados no volume, arrisco-me a provocar a impaciência do meu
leitor ressaltando outra nota de rodapé (a qual se encontra no quarto ensaio, "O
retorno infantil do totemismo") muito sensata e esclarecedora. Nela, somos
advertidos de que o estudo dos chamados povos primitivos muitas vezes se deu
por vias indiretas, que facilitaram visões possivelmente deturpadas e
“construídas”: “Não se deve esquecer que os povos primitivos não são povos
jovens, e sim, na verdade, tão antigos quanto os mais civilizados, e que não se
tem direito a esperar que tenham conservado suas ideias e instituições
originais sem qualquer desenvolvimento e distorção para que tomemos
conhecimento delas”. Mais adiante: “Assim, a determinação do estado original é
sempre uma questão de construção”.
Assumindo
esse terreno escorregadio (ou mesmo pantanoso) para as suas construções, ou
seja, suas hipóteses avassaladoras, nem por isso Freud estava menos convicto da
sua veracidade básica (e já adianto que ele consegue deixar o seu leitor convicto
dessa veracidade, apesar de todos os avisos formais e corretos).
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