domingo, 29 de dezembro de 2013

Pré-Resenha de "Totem e Tabu", por Alfredo Monte (29.12)


Logo no início do terceiro ensaio ("Animismo, Magia e Onipotência dos pensamentos") entre os quatro que compõem Totem e Tabu há uma nota de rodapé que se reveste de uma conotação divertida.
Ali, como em outras passagens, Freud lamenta a necessidade de sintetizar muito sumariamente um vasto material (a maior parte ligado a pesquisas etnológicas e mitológicas). E arremata: “A autonomia do autor apenas se pode manifestar na escolha que fez dos temas e das opiniões” (todas as citações, salvo indicação em contrário, foram extraídas da tradução de Totem e Tabu: algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos [no original "Totem und Tabu.Einege Übereinstinmmugen in Seelenleben der Wilden und der Neurotiker”], realizada por Renato Zwick (L&PM, 2013), com revisão técnica de Paulo Endo; para fins de consulta e comparação, utilizei também as seguintes traduções: 1) de Paulo César de Souza ("Totem e Tabu, Contribuição à História do Movimento Psicanalítico e outros textos", volume 11 de “Sigmund Freud- Obras Completas, Companhia das Letras, 2012)—uma edição um tantinho “enxugada” dessa versão de Totem e Tabu foi publicada à parte pela Penguin/Companhia das Letras (2013); 2) de Órizon Carneiro Muniz ("Totem e Tabu e outros trabalhos", 1913-1914, volume XIII da Edição Standard Brasileira sãs Obras Psicológicas de Sigmund Freud, Imago, 2006).
A diversão fica por conta do “apenas”. Ora, Freud sempre foi um autor muito consciencioso com o material pesquisado; quem leu, por exemplo, “A Interpretação dos Sonhos” lembrará que ele identifica escrupulosamente suas fontes e se vale de abundantes (e muito bem escolhidas) citações, de forma a fornecer realmente uma visão enciclopédica do tema de que está tratando. Mas todo esse escrúpulo não o impede de, ao fim e ao cabo, tratar toda aquela vastidão apenas como território introdutório para o essencial, o realmente novo e desbravador, que vai surgir da “escolha” que fez dos temas e a expressão das “opiniões”; em suma, aquilo que “apenas” lhe coube.
E quando se tem consciência do teor das conclusões de Totem e Tabu, cuja publicação original se tornou centenária em 2013 (ele estava com 57 anos), tão combatidas, ridicularizadas, tidas como escandalosas e fantasiosas, um salto no abismo (mesmo assim entrando na corrente sanguínea das ideias-chave do século XX), afora a própria personalidade do seu autor, aí sim a nota ganha um toque quase malicioso.
 Antes de comentar as ideias centrais dos quatro ensaios enfeixados no volume, arrisco-me a provocar a impaciência do meu leitor ressaltando outra nota de rodapé (a qual se encontra no quarto ensaio, "O retorno infantil do totemismo") muito sensata e esclarecedora. Nela, somos advertidos de que o estudo dos chamados povos primitivos muitas vezes se deu por vias indiretas, que facilitaram visões possivelmente deturpadas e “construídas”: “Não se deve esquecer que os povos primitivos não são povos jovens, e sim, na verdade, tão antigos quanto os mais civilizados, e que não se tem direito a esperar que tenham conservado suas ideias e instituições originais sem qualquer desenvolvimento e distorção para que tomemos conhecimento delas”. Mais adiante: “Assim, a determinação do estado original é sempre uma questão de construção”.
Assumindo esse terreno escorregadio (ou mesmo pantanoso) para as suas construções, ou seja, suas hipóteses avassaladoras, nem por isso Freud estava menos convicto da sua veracidade básica (e já adianto que ele consegue deixar o seu leitor convicto dessa veracidade, apesar de todos os avisos formais e corretos).

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