Diante da
revelação da amiga a lancetar em meu espírito as pseudomazelas de uma fingida
solidão, larguei a covardia selada num trauma passado, juntamente com um molho
de manias e manoias, saltei do trampolim e busquei ajuda profissional. Não
sabia lá o que seria de mim: se me curasse, parasse de me vitimar, de reclamar,
o que me restaria, assistir à TV?
Dentre alguns
misteres adquiridos na experiência matrimonial, acostumei a não falar tudo o
que pensava. Após separação, contudo, esforcei-me para fazer justamente o
contrário, descobrindo que o estado civil nada tem a ver com os dissabores
advindos de tamanha translouquice, pois o mundo está preparado, sim, é para a
mentira, a omissão, nunca para a sinceridade falsamente tão querida. Outra
grande e fulminante descoberta foi a de que eu nunca serei o que penso ser.
Numa relação é assim, onde o companheiro não possui tal certeza, a companheira,
não tem dúvida: ele será sempre o que ELA pensa.
Chegando ao
consultório, dei por mim numa acanhada sala com alguns vasos de plantas, um
quadro de gosto duvidoso e, por detrás de desatualizadas revistas de
assinaturas, alguns olhos desconfiados. Num momento de empatia, pensei: “Por
que não lhes poupam do constrangimento e abolem aquela antessala?”. Sentei-me,
após a secretária anunciar em bom som o meu nome e a minha colocação naquele
páreo.
Um vizinho
simpático perguntou-me se era a primeira vez e logo se apresentou: “Raymundo,
prazer. Meu nome é Gerúndio.” “Gerúndio?”, ri. “Sim, este é o meu nome. Vê, não
poderia estar em outro lugar, poderia?” Envergonhado, me desculpei e perguntei-lhe
de quem fora a ideia do nome: “De meu pai, enquanto ouvia os gritos do parto de
minha mãe. Ele me contou que a empregada, que acompanhava a parteira, aparecia
de vez em quando à porta e só repetia: ‘Tá nascendo, nascendo, nascendo.’ Foi
tudo muito demorado e difícil. Ele já estava maluco, quando finalmente veio à
luz seu filho: eu! Então, com lágrimas nos olhos, meu pai sentenciaria: ‘Vai ser
Gerúndio, em homenagem ao santo’.”
O Peixoto,
um outro sujeito, com pernas compridas e olhos azuis, na escuta da conversa,
impulsivo, não se conteve: “Tudo em nome do amor, meu amigo. Do amor. Sabe o
que penso? Pois sim, o amor é um despropósito! Só serve para nos tolher a
liberdade e nos tomar de nós mesmos. Aqueles que lhes estão à sombra, são
inevitavelmente arrastados à rósea infelicidade.”
Uma
senhora, com a neta a tiracolo, asseverou: “Meu senhor, me desculpe, mas eu
conheço muitos outros que amam e se dizem felizes...” “Os outros, ora os outros
– respondeu-lhe na oratória mórbida dos que sofrem –, muitos, minha cara, não
sabem absolutamente nada sobre tal monstruosidade. E, vem cá, a senhora ainda
crê em felicidade, é? E em
Papai Noel , também crê?”
Eu,
obsessivo, intitulei: “Só os egoístas serão felizes!” Mas a senhora,
pobrezinha, puxou um lenço de papel e, com olhos perdidos numa esquina do
infinito que vem de dentro, surpreendeu: “Não, meu senhor, felicidade não
existe. O que existe é algodão-doce.” A netinha, numa inocência lúcida e
pragmática, impressionou: “Algodão-doce é bom, mas enquanto adoça a boca
apodrece os dentes.”
“Contraditório,
não?” – acrescentou o Gerúndio, enquanto o Peixoto caía os olhos amorosos na
pródiga menina: “A contradição, mocinha, é o combustível do planeta. Sem ela,
nada se move, nada se cria. O exagero é a verdade zenital e o sincretismo é uma
merda! Nem de café com leite eu gosto. Por isso eu vim aqui, para arrebatar de
vez esse furúnculo de mim!”
Todos
calaram solenemente, por uns instantes. Eu, que havia visto o diabo de perto,
corpo fechado de flores do mal, incompreendido de mim, preferi não desfolhar
meu malmequer. Melhor.
Por fim, um
a um dos “debatedores”, chamados formalmente pela secretária, entravam na sala
da analista. Primeiro o Gerúndio – “estou chegando...” –, a netinha da senhora
e, então, o Peixoto. Impossível exigir deles o mínimo aceno de adeus na saída.
Vinham mexidos, transtornados, vermelhos, chorosos, inconformados, sei lá. Veio
então o fatal:
– Senhor
Raymundo Netto, pode entrar.
– Eu?
Sim, era a
minha vez, a primeira em que encontraria a doutora K. Chamo de doutora, mesmo
quando ela dispensou o tratamento formal, mas achei de ocasião manter a
distância. De cara, literalmente, um alivio: era adjetivalmente feia, com toda
a gravidade do termo, o que me pouparia desvio da atenção durante as sessões,
se eu tivesse coragem de continuar, assim como espero ter a coragem de expurgar
esta primeira sessão na próxima crônica, é claro, pois agora: água com açúcar e
lenços de papel!
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