terça-feira, 15 de outubro de 2013

"Surtando no Divã", crônica de Raymundo Netto para O POVO (16.10)


Diante da revelação da amiga a lancetar em meu espírito as pseudomazelas de uma fingida solidão, larguei a covardia selada num trauma passado, juntamente com um molho de manias e manoias, saltei do trampolim e busquei ajuda profissional. Não sabia lá o que seria de mim: se me curasse, parasse de me vitimar, de reclamar, o que me restaria, assistir à TV?
Dentre alguns misteres adquiridos na experiência matrimonial, acostumei a não falar tudo o que pensava. Após separação, contudo, esforcei-me para fazer justamente o contrário, descobrindo que o estado civil nada tem a ver com os dissabores advindos de tamanha translouquice, pois o mundo está preparado, sim, é para a mentira, a omissão, nunca para a sinceridade falsamente tão querida. Outra grande e fulminante descoberta foi a de que eu nunca serei o que penso ser. Numa relação é assim, onde o companheiro não possui tal certeza, a companheira, não tem dúvida: ele será sempre o que ELA pensa.
Chegando ao consultório, dei por mim numa acanhada sala com alguns vasos de plantas, um quadro de gosto duvidoso e, por detrás de desatualizadas revistas de assinaturas, alguns olhos desconfiados. Num momento de empatia, pensei: “Por que não lhes poupam do constrangimento e abolem aquela antessala?”. Sentei-me, após a secretária anunciar em bom som o meu nome e a minha colocação naquele páreo.
Um vizinho simpático perguntou-me se era a primeira vez e logo se apresentou: “Raymundo, prazer. Meu nome é Gerúndio.” “Gerúndio?”, ri. “Sim, este é o meu nome. Vê, não poderia estar em outro lugar, poderia?” Envergonhado, me desculpei e perguntei-lhe de quem fora a ideia do nome: “De meu pai, enquanto ouvia os gritos do parto de minha mãe. Ele me contou que a empregada, que acompanhava a parteira, aparecia de vez em quando à porta e só repetia: ‘Tá nascendo, nascendo, nascendo.’ Foi tudo muito demorado e difícil. Ele já estava maluco, quando finalmente veio à luz seu filho: eu! Então, com lágrimas nos olhos, meu pai sentenciaria: ‘Vai ser Gerúndio, em homenagem ao santo’.”
O Peixoto, um outro sujeito, com pernas compridas e olhos azuis, na escuta da conversa, impulsivo, não se conteve: “Tudo em nome do amor, meu amigo. Do amor. Sabe o que penso? Pois sim, o amor é um despropósito! Só serve para nos tolher a liberdade e nos tomar de nós mesmos. Aqueles que lhes estão à sombra, são inevitavelmente arrastados à rósea infelicidade.”
Uma senhora, com a neta a tiracolo, asseverou: “Meu senhor, me desculpe, mas eu conheço muitos outros que amam e se dizem felizes...” “Os outros, ora os outros – respondeu-lhe na oratória mórbida dos que sofrem –, muitos, minha cara, não sabem absolutamente nada sobre tal monstruosidade. E, vem cá, a senhora ainda crê em felicidade, é? E em Papai Noel, também crê?”
Eu, obsessivo, intitulei: “Só os egoístas serão felizes!” Mas a senhora, pobrezinha, puxou um lenço de papel e, com olhos perdidos numa esquina do infinito que vem de dentro, surpreendeu: “Não, meu senhor, felicidade não existe. O que existe é algodão-doce.” A netinha, numa inocência lúcida e pragmática, impressionou: “Algodão-doce é bom, mas enquanto adoça a boca apodrece os dentes.”
“Contraditório, não?” – acrescentou o Gerúndio, enquanto o Peixoto caía os olhos amorosos na pródiga menina: “A contradição, mocinha, é o combustível do planeta. Sem ela, nada se move, nada se cria. O exagero é a verdade zenital e o sincretismo é uma merda! Nem de café com leite eu gosto. Por isso eu vim aqui, para arrebatar de vez esse furúnculo de mim!”
Todos calaram solenemente, por uns instantes. Eu, que havia visto o diabo de perto, corpo fechado de flores do mal, incompreendido de mim, preferi não desfolhar meu malmequer. Melhor.
Por fim, um a um dos “debatedores”, chamados formalmente pela secretária, entravam na sala da analista. Primeiro o Gerúndio – “estou chegando...” –, a netinha da senhora e, então, o Peixoto. Impossível exigir deles o mínimo aceno de adeus na saída. Vinham mexidos, transtornados, vermelhos, chorosos, inconformados, sei lá. Veio então o fatal:
– Senhor Raymundo Netto, pode entrar.
– Eu?
Sim, era a minha vez, a primeira em que encontraria a doutora K. Chamo de doutora, mesmo quando ela dispensou o tratamento formal, mas achei de ocasião manter a distância. De cara, literalmente, um alivio: era adjetivalmente feia, com toda a gravidade do termo, o que me pouparia desvio da atenção durante as sessões, se eu tivesse coragem de continuar, assim como espero ter a coragem de expurgar esta primeira sessão na próxima crônica, é claro, pois agora: água com açúcar e lenços de papel!


Nenhum comentário:

Postar um comentário